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Questões sociais são óbvias?

Hoje, mais do que nunca, expor nossas opiniões e avaliações acerca de reportagens, notícias e pesquisas, se tornou algo relativamente fácil e corriqueiro. Você já deve ter feito isso e com certeza já leu diversos comentários em páginas do Facebook. Também se tornou comum ver pessoas expondo suas ideias como se fossem óbvias em relação a ideias diferentes e consideradas estúpidas, principalmente se tratando de questões relativas ao comportamento humano e a sociedade.

Duncan Watts, em seu ótimo livro “Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta”, conta que desde que se tornou sociólogo, foi questionado diversas vezes por leigos sobre o que a Sociologia tem a dizer que uma pessoa inteligente não poderia ter concluído sozinha?

Parece um questionamento justo e, para responde-lo, Watts cita uma experiência de outro autor, Paul Lazarsfeld, que 60 anos atrás já tentava demonstrar que essa é uma concepção equivocada da natureza da Ciência Social.

Lazarsfeld estava escrevendo sobre “The American Soldier”, um estudo com mais de 600 mil soldados realizado pela divisão de pesquisa do departamento de guerra durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Para defender sua ideia, o autor listou seis descobertas desse grande estudo que considerava importantes, dentre elas, a número dois dizia que “homens de origem rural geralmente se mantinham em um melhor estado de espirito durante a vida militar em comparação com os soldados de origem urbana”.

Um leitor imaginário poderia pensar “ah, mas isso faz todo sentido, homens de origem rural da década de 1940 deviam estar acostumados com condições de vida mais pesadas e mais trabalho físico, por que precisamos de um estudo para dizer isso? ”

E isso era o que Paul Lazarsfeld esperava, na verdade, o resultado era justamente o contrário, quem se adaptou melhor durante a guerra foram os homens de origem urbana, não os de origem rural. Porém, é claro, se Lazarsfeld tivesse dado a resposta correta primeiro, o mesmo leitor imaginário poderia considerar igualmente óbvia e associado com outras justificativas, como “os homens da cidade estão mais acostumados a trabalhar em multidões, em corporações, com hierarquia de comando, etc.”

Então Lazarsfeld concluiu que, falando sobre Ciência Social, quando toda resposta e seu oposto são igualmente óbvios, então algo está errado com todo argumento de obviedade. Apesar de Lazarsfeld estar falando sobre Ciência Social, Watts defende que a mesma ideia é válida para qualquer atividade que envolva o entendimento, previsão, mudanças ou reação ao comportamento das pessoas, pois, geralmente, quando falamos sobre esses assuntos, as pessoas tendem a acreditar serem questões respondidas pelo senso comum.

No dia a dia, o senso comum se adapta para lidar com todo tipo de complexidade que surge, nesses casos ele é realmente bom. Porém, situações mais amplas envolvendo empresas, culturas, mercados, etc., apresentam um outro tipo de complexidade e, nessas situações, o senso comum acaba sofrendo desvios que sistematicamente nos enganam. Mesmo assim, são raros os fracassos de sua lógica que nos são aparentes e muitas vezes surgem apenas como algo que não sabíamos até então, mas que se olharmos em retrospectiva, se tornam óbvias igualmente. Assim, a questão se torna um paradoxo, o senso comum nos ajuda a dar sentido ao mundo, mas, ao mesmo tempo, ele pode minar nossa habilidade de compreendê-lo

Você pode estar pensando, “sim, já percebi isso, as pessoas acreditam em muitas coisas que na verdade não sabem nada”. Porém, essa mesma lógica pode ser aplicada a você e a mim mesmo. Watts conta em seu livro que mesmo quando seus colegas concordavam com as ideias apresentadas, não aceitavam o mesmo fato sobre alguma de suas próprias crenças, diziam que não se sentiam ameaçados por isso, como se o fracasso da lógica do senso comum, fosse apenas o fracasso da lógica dos outros.

Mas a realidade é que o que se aplica a todos, provavelmente deve se aplicar a nós também, muitas de nossas convicções mais arraigadas devem incorporar falácias, pois senso comum é como um saco de crenças logicamente inconsistentes, geralmente contraditórias, tais crenças se encaixam em algum momento, mas não garantem que estarão certas em outro.

A questão não é que devemos abandonar tudo o que acreditamos e começar do zero, mas precisamos suspeitar de nossas crenças. Como o próprio Watts conta, ele se considera um motorista acima da média, mesmo sabendo que, estatisticamente, metade das pessoas que pensam isso estão erradas. Porém, mesmo não podendo evitar pensar isso, tenta prestar atenção nos momentos em que comete erros e nos momentos que outras pessoas erram. Assim, ficará mais fácil aceitar o fato de que nem todo acidente é culpa “dos outros”.

Desafiando nossos pressupostos sobre o mundo, quando percebemos que estamos fazendo afirmações que nem sabíamos, podemos modificar nossas crenças. Mesmo que não sejam alteradas, o próprio exercício de desafia-las, pode demonstrar nossa própria teimosia. Não é fácil, porém, é o primeiro passo na formação de novas crenças, isso porque as chances de estarmos certos sobre tudo que acreditamos são nulas.

Referência

  • WATTS, Duncan J.. Tudo é óbvio, desde que você saiba a resposta: como o senso comum nos engana. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2013.
Armando de Lima

Armando de Lima

Sou acadêmico do curso de Psicologia e monitor da disciplina de Psicologia Comportamental, do laboratório de Psicologia Experimental, da Universidade do Vale do Itajaí, SC.