Há quase um mês, foi publicado um texto aqui criticando o artigo de uma colunista da revista Carta Capital e a teoria de gênero de forma geral. Apesar de não ser um texto com muitas pretensões acadêmicas, avaliamos que teve seu objetivo principal alcançado: gerou um debate entre nossos leitores, diversos comentários e muitas contribuições produtivas. No entanto, também tivemos reações negativas (o que é normal) e, tendo em vista que o texto já era muito extenso, não foi possível esclarecer determinadas posições. Propormos, portanto, responder a algumas dessas críticas e tornar o mais claro possível o que foi defendido naquele artigo. Reunimos dois dos principais argumentos apresentados e as nossas réplicas.
Argumento 1: “ O binário de Burigo nada tem a ver com o binário da lógica”
Este argumento parece confundir as coisas. A questão da lógica foi trazida à tona no nosso texto porque Burigo parte da premissa equivocada de que binário é maniqueísta, logo, teria uma origem religiosa de separação de coisas entre o bem e o mal. Como foi demonstrado, binário não vem do pensamento maniqueísta e não estabelece automaticamente a) hierarquia entre as categorias e/ou b) que uma delas é boa e a outra é má. É interessante porque a partir dessa premissa a autora assume que o pensamento binário é ruim e que outras formas de pensar (lógica dialética, por exemplo), seriam boas, o que faz com que ela caia em um paradoxo.
Argumento 2:”Este texto está estimulando e legitimando comportamentos homofóbicos, machistas, transfóbicos etc”
Essa crítica é sintomática, porque revela que a teoria de gênero não é de fato um campo de estudo objetivo, científico, mas uma extensão de militância ideológica. Ou seja, é uma teoria que está ali para legitimar movimentos sociais, não para descobrir fatos acerca do gênero na espécie humana, o que já coloca uma série de problemas epistemológicos para os seus teóricos.
Retomando o argumento, em primeiro lugar, em diversos momentos do texto foi dito que o maior erro de raciocínio do senso comum – que tende ao preconceito – é de tomar o estatístico por necessário. Um machista vai achar que toda mulher deve ser de uma forma e todo momento que se deparar com uma “exceção”, ao invés de rever o enunciado “toda mulher age de forma x”, prefere ou forçar a mudança daquele comportamento fora da curva ou negar que aquele indivíduo é uma mulher. Um homofóbico faz a mesma coisa, assim como um transfóbico. Na verdade, creio que boa parte dos preconceitos que criamos são baseados nessa atitude de não rever nosso conhecimento face às exceções.
O único conhecimento que não opera desse modo são as definições, que são o ponto de partida para a construção de um campo de saber. Por exemplo, a biologia parte da definição do que é ser vivo e a partir daí começa a observar quais características os seres vivos compartilham entre si. Nesse sentido, definições são necessárias, porque são verdades analíticas [1].
Como foi dito no nosso artigo, a definição de gênero não pode ser a soma de determinadas características, porque essas características são dadas a partir da frequência com que aparecem em indivíduos de determinado sexo biológico.
Muitos daqueles que defendem discriminação de mulheres, gays e trans são pessoas que acreditam que os gêneros e comportamentos são absolutamente escolhas individuais que podem ser modificadas a partir da cultura, criação dos pais etc. Nesse ponto, tanto a teoria de gênero quanto os conservadores que ela visa criticar estão de acordo. É dessa visão que surge a ideia de “cura gay”, de que “ele é assim por falta de pancada” ou de que é possível que um kit educativo influencie as crianças a tornarem-se homossexuais.
Já o nosso texto demonstrou que a ciência conta uma história diferente [2]: há cada vez mais evidências de que tanto a homossexualidade [3] quanto diferentes comportamentos de gênero têm uma origem preponderante na biologia, não na cultura (que não é excluída como fator, mas não chega a ser determinante), o que acaba por sendo mais um argumento contrário aos preconceituosos.
Em segundo lugar, teorias não devem ser formuladas a fim de legitimar lutas políticas ou ideológicas. Teorias são formas com que buscamos explicar os fenômenos e, conforme elas são confrontadas com evidências, revelam algum conhecimento sobre o objeto estudado (mesmo que seja um conhecimento negativo, do tipo que revoga a própria teoria).
Em suma, o interesse principal de qualquer teoria é tentar explicar um fenômeno, não dizer como ele deve ser [4]. Desse modo, o conhecimento sobre a realidade não está interessado nas consequências que vai ter na sociedade, é um fim em si mesmo. O que a sociedade vai fazer com aquele conhecimento é um problema da política, da cultura, mas não se pode negar um conhecimento só porque ele aparentemente vai na direção contrária das nossas crenças, daquilo que achamos ser certo.
A natureza não tem moral e o universo não se importa com as nossas crenças e valores. A descoberta de um fato na natureza que é imoral para uma sociedade não significa que tal fato deve deixar de ser considerado imoral. Se a ciência diz, por exemplo, que possuímos evolutivamente uma tendência ao estupro, isso não significa que estupro deve ser considerado algo moralmente aceitável na nossa sociedade.
Assim, nem o nosso artigo afirmou algo que pode ser usado por pessoas preconceituosas contra mulheres, gays ou trans e, mesmo que o fizesse sem o querer, tratava-se de um texto descritivo, não prescritivo. Em nenhum momento foi usado o argumento de que porque existem diferenças de gênero determinadas pela biologia devemos ter uma sociedade desigual, que não dá os mesmos direitos e oportunidades às pessoas.
Reafirmamos, então, que nem o artigo aqui publicado nem a própria autora defendem um posicionamento à favor da discriminação das pessoas homossexuais, trans e/ou das mulheres. O que foi feito foi uma crítica à teoria de gênero como ferramenta teórica para compreender o fenômeno do gênero na espécie humana.
Bolsonaro e a teoria de gênero
O que infelizmente muitos leitores pensaram foi que o nosso texto estaria legitimando o discurso conservador e de deboche de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro. Para completar, na manhã deste domingo (01/05), começaram a circular imagens na web em que o filho do deputado, Eduardo Bolsonaro, segura uma placa dizendo “Só existe XX e XY”, com a clara intenção de atingir o público LGBT por meio de um deboche rasteiro e desinformado.
Como foi dito no nosso texto e muitas páginas de biologia no Facebook apontaram, existem síndromes genéticas em que essa configuração é diferente (XXX, XXY, X0 e por ai vai). O que acontece é que para definir o macho e a fêmea o critério é determinado pela presença ou não de um gameta diferente, mas esse não é o critério para definir homem e mulher, hétero e gay, cis e trans. Ou seja, além de XX e XY não serem as únicas configurações genéticas possíveis, elas não determinam se o indivíduo será homem ou mulher e, principalmente, não determinam se uma pessoa deve comportar-se e/ou identificar-se de certa forma.
https://www.youtube.com/watch?v=sED5qymZck0
É justamente por conta do fato de que não podemos definir homem e mulher pela soma de algumas características que não podemos dizer que alguém é menos mulher por não possuir as características x, y e z, por exemplo. Um indivíduo XY e com corpo masculino que se identifique com o corpo feminino, por exemplo, tem todo o direito de identificar-se socialmente como mulher, mesmo que a maioria dos indivíduos com essa configuração genética se identifique como homem. Essa é uma liberdade que conservadores como a família Bolsonaro querem negar aos transsexuais e que não encontra nenhum respaldo científico ou jurídico.
Do mesmo modo, um indivíduo XX, com o corpo feminino e que se sinta atraído por pessoas do mesmo sexo biológico deve ter toda a liberdade para expressar sua sexualidade e jamais pode ser considerado menos XX por isso ou menos mulher se assim se identifique. A configuração genética não imprime um dever sobre como as pessoas devem comportar-se, mas é tão somente uma forma de classificação que as ciências biológicas utilizam para entender como as dinâmicas sexuais e de gênero operam nos seres vivos.
Dessa forma, ainda que não existissem síndromes genéticas e Eduardo Bolsonaro estivesse correto em apontar que “só existe XX e XY”, nossa resposta seria: “e daí?”. O que isso tem a ver com os direitos LGBT? O que isso tem a ver com violência contra as mulheres? Nada, porque esses direitos relacionam-se com uma ética humanista, que entende que todos os seres humanos são iguais em termos de direitos e deveres, independente de sexo, gênero, cor, orientação sexual e pensamentos, possuindo a liberdade para fazer o que bem entenderem desde que não se prejudique terceiros. Não tem nada a ver com a nossa configuração genética e a família Bolsonaro deveria definitivamente estudar um pouco de biologia e de filosofia também, especialmente para não cair em argumentos falaciosos.
Referências
[1] Ver https://sites.google.com/site/dicionarioenciclopedico/juizo-analitico-juizo-sintetico
[2] Ver http://www.theguardian.com/commentisfree/2010/may/03/biology-sexist-gender-stereotypes
[3] http://www.livescience.com/50058-being-gay-not-a-choice.html e http://www.livescience.com/37139-facts-about-gay-conversion-therapy.html
[4] Ver Lei de Hume, diferença entre afirmações descritivas e prescritivas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_Hume