Ao mensurar o predomínio histórico do cristianismo, é comum ver teólogos afirmarem que o desenvolvimento da civilização ocidental tem uma dívida impagável com a fé e a cultura cristã.
Bilhões de pessoas parecem crer fielmente que a revelação divina é a melhor explicação para tamanho êxtase religioso. Mas, se quisermos compreender os primeiros fatores responsáveis pelo alvorecer dessa gigantesca religião, deixemos de lado as supostas intervenções sobrenaturais e façamos uma breve viagem pela história.
A começar pelos últimos dias de Jesus Cristo, parte da elite romana, também formada por autoridades judaicas, fez oposição contra o homem então aclamado pelo povo como o verdadeiro messias. Por onde passou, Jesus acolheu pobres, enfermos e minorias para com eles dividir pães e peixes e iluminá-los com exemplos de sabedoria. Seus sermões eram uma heterodoxia aos rituais estabelecidos pelas leis mosaicas, e logo um núcleo de líderes judeus pressionou Pôncio Pilatos, que governava a província da Judeia, a sentenciar o suposto filho de Deus a uma das penas mais perversas da época: a morte por crucificação. O objetivo era sufocar aquele ousado sistema de crenças, amamentado no seio herético do judaísmo, até fazê-lo desaparecer do Império Romano. Todavia, crucificar o líder que tanto inspirou o populacho trouxe efeitos indesejáveis para a ordem dominante. Pouco tempo depois, o nazareno foi transformado em mártir, um ícone da plebe urbana. Mas, como ficaria evidente, não foi somente o santo sacrifício que atrairia novos prosélitos.
Do século I ao início do século IV d.C., difunde-se em diversas províncias romanas o movimento popular mais tarde denominado como cristianismo primitivo. Costuma-se descrever seus correligionários como criaturas humildes, cuja formação moral se baseava em atos de cooperação, afeto e caridade. Dizem ainda que eles eram tolerantes e de temperamento inteiramente dócil. Mas um retrato menos angelical da fé cristã não esconde as imperfeições de sua prática. Afinal, inseridos num ambiente de discórdia repleto de idólatras de deuses romanos, é natural que os incipientes cristãos os demonizassem quase ininterruptamente. Tertuliano exclamava que uma das mais regozijantes recreações do paraíso era contemplar, lá de cima, o sofrimento dos que iriam arder no fogo do inferno. “Como não irei admirar-me e rir e rejubilar-me e exultar ao ver tantos monarcas soberbos e tantos deuses falsos gemendo no mais fundo abismo das trevas”, disse ele.
Mesmo menosprezando o politeísmo, os ensinamentos de Cristo eram acessíveis a quem se dispusesse a aceitá-los. Pelas periferias e centros do Império Romano, ainda que a contragosto e embaraço, monoteístas se esforçavam para instruir seus adversários quanto aos recentes preceitos divinos. Ao apostatarem da idolatria politeísta, os novos fieis se amontoavam aos crescentes sectos judaico-cristãos. Além disso, e por mais insólito que pareça, os cenários de enfermidade epidêmica garantiram ao cristianismo uma notável simpatia das multidões. Quando epidemias infernizavam a população romana, os cristãos primitivos, em sua maioria mulheres, faziam linha de frente no cuidado aos moribundos, garantindo, consequentemente, uma imensa quantidade de admiradores. O elo entre eles era tão forte a ponto de as inúmeras campanhas de perseguição religiosa fracassarem na missão de enfraquecer as primevas comunidades. Era mais vantajoso ser torturado e morto na vida terrena do que renunciar à promessa de vida eterna do Todo Poderoso.
Ainda durante os três primeiros séculos após a crucificação de Cristo, sectários dos deuses gregos e romanos tentavam satisfazer os prazeres efêmeros desta vida, enquanto os servos do messias buscavam algo mais duradouro e etéreo no post-mortem. Eles tinham a mais intensa certeza na ressurreição, na conseguinte ascensão de Jesus aos céus e, sobretudo, na derradeira promessa de que ele, desta vez em esplendor e glória, viria salvar seus escolhidos. Paulo de Tarso, por exemplo, acreditava fielmente que viveria tempo suficiente para prestigiar o segundo advento de seu mestre. A tarefa de preparar o mundo para o iminente Dia do Juízo era entregue a cada recém-convertido. Todos precisavam cumprir seu dever missionário de evangelizar os vizinhos, parentes, amigos, forasteiros, bandidos, escravos, bárbaros, enfermos e incréus. Não havia crueldade maior do que recursar-se a espalhar as boas-novas de vida eterna e salvação. Não fosse o impacto dessas crenças fundamentais, os cristãos certamente não teriam conquistado a devoção de tantos defensores.
O que sucede o Édito de Milão (313 d.C.) e a presença do Imperador Constantino no I Concílio de Niceia (325 d.C.) lançaria a cristandade na grande disputa pela hegemonia espiritual. A partir daí, encontrar um adversário à altura ficaria cada vez mais raro. Prova disso é que o longo milênio que demarcou o período da Idade Média fez do direito romano, da filosofia grega e de inúmeras instituições monárquicas meros apêndices de imponentes organismos eclesiásticos. Apóstolos inspirados nas palavras do messias, alguns deles inseridos no próprio cristianismo primitivo, compuseram uma teologia que mais tarde se tornou a essência do Novo Testamento bíblico e o fundamento de toda atividade intelectual posterior. Nas gerações seguintes, querelas públicas, concílios ecumênicos, fogueiras santas, caças às bruxas e técnicas criativas de tortura formariam o vasto repertório de sincretismo clerical.
Embora a historicidade de Jesus seja contestável, mais se discutiu sobre seu caráter, se ele era Deus ou homem, do que sobre todas as ciências naturais juntas. Polêmica semelhante também afetou o preparo do pão da Eucaristia: alguns o queriam bem fermentado, outros sem fermento algum. Para os pais da Igreja, negligenciar tais assuntos, por mais escrupulosos e extravagantes que fossem, era consentir em passar a eternidade acorrentados aos demônios do inferno. Se em meados do século XX o cristianismo granjeou quase um terço da humanidade, não foi porque o poder do Espírito Santo se manifestou em nossos corações, ou porque Jesus pregou com lábios divinos, mas sim porque, a princípio de tudo, os cristãos primitivos, resistindo a pressões inimagináveis, semearam as ideias que tornaram possível a sobrevivência de suas crenças. Se devemos agradecê-los ou amaldiçoá-los pela herança que deixaram, isso cabe discutir em outra ocasião.