O famoso biólogo e ateu Richard Dawkins jamais imaginou que seu livro iria alcançar o público árabe em seu próprio idioma. Quando o escritor Kacem El Ghazzali encontrou Dawkins na Denkfest organizado pela Associação Suíça de Livre Pensadores, ele ficou surpreso quando Ghazzali disse que tinha lido Deus, um delírio em árabe. Ele não estava ciente da tradução, e nem havia tido qualquer pedido oficial para ele. Ghazzali contou que tinha sido um trabalho feito por um amigo iraquiano chamado Bassam Al-Baghdadi, que vive na Suécia.
O trabalho de Bassam foi muito bem recebido, o PDF foi baixado mais de 10 milhões de vezes, sendo 30% na Arábia Saudita. Bassam contou que teve mais de 1.000 downloads no primeiro dia após o upload do arquivo, e os downloads não apenas aumentaram como a tradução foi largamente compartilhada em blogs, websites e fóruns de ateus árabes conhecidos.
O livro provocou polêmicas e debates sem precedentes nos mundos árabe e islâmico. O tradutor recebeu ameaças de morte e acusações de conspirar com os sionistas para corromper a juventude. Ele foi forçado a fechar suas contas nas redes sociais e parar de postar por um tempo. Inúteis tentavivas através de artigos e livros apologéticos foram feitas para resistir às ondas da razão, agora chegando até as margens árabes. Existe até mesmo um livro chamado “Ateísmo, um delírio” ou “A ilusão ateísta” (em tradução livre) publicado pela Universidade de al-Azhar, em Cairo.
Na tradução arábica do título original “The God Delusion”, Bassam acrescentou as palavras: “Este livro é proibido em países islâmicos”. O bom é que na Era da informação a proibição de livros no mundo muçulmano não é mais viável e eficiente. Ghazzali disse que já era capaz de ler o livro enquanto ainda estava em Marrocos, onde nasceu. Alguns de seus amigos ateus conseguiram adquirir o livro até mesmo na Arábia Saudita. Os tempos sombrios da censura, na qual o conhecimento para as pessoas era limitado a livros e recursos cuidadosamente escolhidos, se foram e nunca mais vai voltar.
Ghazzali conta a história de que, quando mais novo, acabou encontrando por acaso uma tradução francesa do livro O Gene Egoísta, de Richard Dawkins, na casa de seu tio. Na época ele não conhecia o autor a fundo, nem muito sobre o tema do livro. Como seu tio não estava lá para lhe explicar, ele pegou o livro e levou para sua aula de biologia, onde perguntou esclarecimentos sobre certos aspectos. Então o professor confiscou o livro dele e, olhado quase com medo, gritou: “Não traga essa imundície aqui novamente! É apenas besteira!”.
“Será que o meu professor realmente acredita que o livro era tão ruim assim? Ou havia outra razão para a sua reação? Talvez ele estava com medo. Eu sei que há professores ateus em Marrocos que são obrigados a fingir serem muçulmanos na frente dos alunos. Mas duvido que este era o caso aqui, porque eu acho que sua reação teria sido provavelmente mais calma e equilibrada”, diz Kacem El Ghazzali.
Apesar disso, o respeito e admiração que Ghazzali adquiriu por Richard Dawkins foi quando leu, pela primeira vez, o livro Deus, um delírio em árabe. A partir de então ele começou buscar por seus artigos e documentários no YouTube. Ele afirma que, no início, se sentiu desconfortável ao ler o livro. Mesmo ele já afirmando ser um livre-pensador, livre de dogmas religiosos, o livro lhe tocou profundamente e teve uma profunda influência sobre a formação de seus pensamentos e ideias. Quanto mais lia, mais sentia que tinha uma profunda conexão com o autor, até mesmo uma conexão pessoal, como se o livro tivesse sido escrito por alguém que ele conhecia de perto. Era como se o autor estivesse falando seus pensamentos e dúvidas internas.
Ele também lembra que o livro o provocava a pensar, quebrando equívocos e argumentos falhos. Foi um marco importante na sua jornada intelectual para a liberdade e na sua vida pessoal, que vem de uma família religiosa conservadora. Quando criança, seu pai o levou para fora da escola por um ano para que eu pudesse estudar jurisprudência islâmica e memorizar o Alcorão, para atender os desejos do avô que queria que ele fosse um imã (autoridade religiosa do islã). Paradoxalmente, este estudo intensivo da sua fé foi um dos maiores fatores que contribuíram para o abandono da mesma.
Ele leu Deus, um delírio quando estava no colégio. O nome de Dawkins, junto de outros grandes pensadores, se tornaram um sinônimo para racionalidade e liberdade de pensamento para ele que admirava os conceitos de liberdade de pensamento e expressão, conceitos que os escritores ocidentais e seus leitores consideram como certos, porém são tabus e até mesmo crimes no mundo do qual ele veio.
“Mesmo hoje em dia, muito tempo depois de deixar o mundo árabe para trás, o nome Richard Dawkins traz o mesmo sentimento de medo compulsivo, quase como um transtorno de estresse pós-traumático”, afirma Ghazzali. “Aqueles que nunca viveram sob tais circunstâncias podem até achar que é difícil de compreender ou apreciar esse sentimento. Tente se imaginar lendo um livro proibido em segredo e, em seguida, vai para a rua ou beber chá com a sua família sempre na espreita, com o medo persistente de que as coisas criminosas você tem lido irá, de alguma forma, se voltar para você, expondo a sua crueldade e traição para todo mundo. Imagine a culpa de ter tais pensamentos entre pessoas que te acham mal ou até mesmo perigoso, caso elas descubram”.
“Eventualmente, eu não conseguia manter meus pensamentos ‘criminosos’ para mim mesmo por mais tempo, e eu pago o preço para a minha honestidade e meu amor pela liberdade. É por isso que eu estou escrevendo estas palavras não a partir de Marrocos, mas a partir da Suíça. Devo uma tremenda dívida de gratidão com Richard Dawkins, e para os outros que guiaram minha jornada dos infernos do dogma religioso para o oásis do livre pensamento e da iluminação.”
Entrevista disponível na Richard Dawkins Foundation.