Cultura* e genética são tradicionalmente vistas como dois processos distintos, de áreas de conhecimento completamente diferentes uma da outra. Entretanto, pesquisadores têm percebido que elas estão intimamente relacionadas, cada uma influenciando a progressão natural da outra.
A “coevolução gene-cultura” vem sendo argumentada por teóricos de genética de populações a mais de 30 anos. Mas o que essa união significa? Se conseguirmos entender como a cultura influência a composição genética então podemos compreender melhor como as nossas ações como sociedade atual poderiam influenciar o nosso futuro e o de outras espécies. Um dos casos mais bem conhecidos de coevolução gene-cultura é a seleção de anemia falciforme pela malária em determinadas populações que cultivam inhame.
A malária é uma doença infecciosa causada por protozoários do gênero Plasmodium, que tem como principal vetor mosquitos do gênero Anopheles. De acordo com o CDC (Centro de Controle de Doenças e Prevenção), no ano de 2015 ocorreram 214 milhões de casos de malária ao redor do mundo, sendo 438.000 casos fatais, com a grande maioria ocorrendo na África.
Pessoas afetadas por uma doença genética autossômica recessiva denominada anemia falciforme, aparentavam ter uma forte defesa natural contra a malária. As hemácias de pessoas portadoras de anemia falciforme tem formato de uma lua crescente ou foice, diferente de células vermelhas normais que assemelham a discos achatados. Devido ao formato diferente dessas células, a doença pode levar a bloqueios de vasos sanguíneos, que causam dor e danos aos órgãos.
Sob condições normais, o alelo da anemia falciforme possui uma baixa frequência nas populações, já que ela é altamente prejudicial e diminui a expectativa de vida. Porém, esse mesmo formato de célula que prejudica o indivíduo, pode proteger contra o protozoário causador da malária. Então, em partes do mundo em que as taxas de infecção por Malária são extremamente altas, como a África, a seleção natural atua a favor das hemácias falciformes, já que os heterozigotos e homozigotos para este alelo teriam maiores condições de sobreviver à malária do que os indivíduos com alelos normais.
Mas o que a anemia falciforme tem a ver com o cultivo de inhame? Comunidades que cultivam inhame possuem uma alta frequência para o gene da anemia falciforme em comparação a comunidades próximas que tem diferentes práticas agrícolas. O cultivo do inhame levou a devastação da área florestal próxima à comunidade, e com a remoção das árvores houve o aumento de água parada durante os períodos de chuvas, que proporcionou um ambiente ideal para a proliferação de mosquitos portadores de malária.
Quanto maior o número de mosquitos vetores de malária, mais a seleção natural age a favor do alelo da anemia falciforme. E existem diversos outros exemplos de coevolução gene-cultura: a tolerância à lactose em adultos, que surgiu há 9.000 anos e é mais frequente em populações que tem histórico de beber leite; habilidades de linguagem e aprendizado vocal que podem estar relacionadas às habilidades sociais; metabolismo energético devido a dispersão das populações ancestrais e adaptação local.
Todos os exemplos citados ocorreram com populações humanas, mas e outros animais que possuem um complexo cultural mais rudimentar? Como essa coevolução influenciaria nossos genes em um futuro próximo? Um dos grandes desafios atualmente é identificar onde a genética influência a cultura e vice-versa, mas sem dúvidas este é um campo vasto em que muitas descobertas ainda devem ser realizadas.
Cultura*: O conceito de cultura aqui relatado é o de complexo de crenças, valores, comportamento e tradições associadas a uma população particular, logo a cultura é a informação capaz de afetar o comportamento dos indivíduos, e no qual adquirem de outros indivíduos através de ensinamento, imitação e outras formas de aprendizagem social.
Referências
- LALAND, Kevin N.; ODLING-SMEE, John; MYLES, Sean. How culture shaped the human genome: bringing genetics and the human sciences together. Nature Reviews Genetics, 2010.
- TEMPLETON, Alan R. Genética de populações e teoria microevolutiva – Ribeirão Preto, SP: Sociedade Brasileira de Genética – SBG, 2011.
- GOLDMAN, Jason G. How human culture influences our genetics Acesso em 23 de agosto de 2016.
- CDC – Centers of disease control and prevention Acesso em 23 de agosto de 2016.