Por Sean Carroll
Publicado no Preposterous Universe
George Tiller, médico e profissional de aborto no Kansas, foi baleado e morto em sua ida à Igreja, no domingo. A grande maioria das pessoas, de ambas as posições sobre o aborto, ficaram compreensivelmente horrorizadas com um evento do tipo. Isso, no entanto, configura um dilema retórico para quem leva a sério a alegação de que o aborto é assassinato. Se George Tiller realmente era um “assassino de bebês” comparável a Hitler e Stalin, seria difícil expressar absoluta tristeza por seu assassinato. Assim, vemos Randall Terry, fundador da Operação Resgate, admitindo o pesar – porém alegando que Tiller foi um assassino em massa que “não teve tempo para preparar adequadamente sua alma para enfrentar a Deus”.
Nas raras ocasiões em que eles tentam realmente falar uns com os outros, as pessoas em lados opostos do debate do aborto geralmente acabam falando um do outro. Os defensores dos direitos ao aborto falam na linguagem da autonomia da mãe e seu direito de controlar seu próprio corpo: “Se você não gosta do aborto, não aborte”. Os oponentes do aborto falam em termos da personalidade do feto. (Sim, Dr. Seuss, do Horton e o Mundo dos Quem! “Uma pessoa é uma pessoa, não importa quão jovem seja” – que é usado para ensinar este ponto às crianças católicas, sob objeções de Theodor Geisel). A oposição do direito ao aborto também pode ser uma manifestação do desejo de controlar a sexualidade das mulheres, mas vamos nos concentrar naqueles cuja oposição se baseia numa crença moral sincera de que o aborto é assassinato.
Se alguém acredita que o aborto é realmente assassinato, falar da liberdade reprodutiva da mãe não vai levar muito peso – ninguém tem o direito de assassinar outra pessoa. Os defensores do direito ao aborto não dizem “Não, este é um caso em que o assassinato é completamente justificado”. Em vez disso, eles dizem: “Não, o feto não é uma pessoa, então o aborto não é assassinato”. A questão crucial (eu sei, isso não é exatamente uma visão nova e surpreendente) é se um feto é realmente uma pessoa.
Não tenho nada de original para acrescentar ao debate sobre quando “a personalidade” começa. Mas há algo a dizer sobre como decidimos questões como essa. E isso nos leva de volta diretamente à discussão anterior sobre casamento e a física fundamental. O resultado disso é: Como você pensa sobre o universo, como você conceitua o mundo natural ao nosso redor, realmente vai ter um enorme impacto sobre como você decide perguntas como: “Quando começa a personalidade?”
Em um mundo pré-científico, a vida era – compreensivelmente – pensada como algo intrinsecamente diferente da não-vida. Esta visão poderia ser levada a diferentes extremos; Platão deu voz a uma tradição popular, afirmando que a alma humana era uma entidade distinta e incorpórea que realmente ocupava um corpo humano. Nos dias de hoje, sabemos muito mais do que eles sabiam naquela época. A ciência nos ensinou que os seres vivos e os objetos não-vivos são, no fundo, os mesmos tipos de coisa; Todos nós somos feitos dos mesmos elementos químicos, e todos os nossos constituintes obedecem às mesmas leis da Natureza. A vida é complicada, rica, fascinante, e não muito bem compreendida – mas não obedece a regras separadas para além das do mundo não-vivo. Os organismos vivos são apenas reações químicas muito complicadas, e não vasos que dependem de essências sobrenaturais ou místicas, essenciais, para mantê-las unidas e funcionando. Exceto “apenas” por um advérbio terrivelmente enganador neste contexto – organismos vivos são, verdadeiramente, surpreendentes reações químicas muito complicadas. Saber que somos feitos do mesmo material, e obedecemos às mesmas regras que o resto do universo, não diminui o valor ou o significado da vida humana, de qualquer forma.
Há uma tentação em alguns círculos de esquecer, ou pelo menos ignorar, a melhor compreensão do mundo que a ciência nos deu, quando se trata de abordar questões morais e éticas. Parte disso é um impulso saudável – a ciência realmente não nos diz como distinguir o certo do errado, nem poderia, possivelmente. A ciência trata de como o mundo funciona, não de como deve funcionar, e apesar de séculos de tentativa, é impossível derivar o “dever” do “ser”.
Mas, ao mesmo tempo, seria loucura não levar em consideração nossa compreensão científica do mundo, quando refletimos sobre questões morais. Se você pensa em um feto como parte de uma complicada reação química em curso, deve, com nenhuma surpresa, chegar a conclusões muito diferentes de alguém que pensa que Deus respira o espírito da vida em um óvulo fertilizado no momento de sua concepção.
É por isso que é igualmente louco acreditar que a ciência e a religião são dois magistérios distintos que não se sobrepõem e que simplesmente nunca abordam as mesmas questões. Essa bizarra perspectiva foi avançada por Stephen Jay Gould em Rocks of Ages, mas se você ler o livro com cuidado, perceberá que sua definição de “religião” é simplesmente “filosofia moral”. Que não é o que a palavra significa, ou como as pessoas usam, ou como as pessoas religiosas reais pensam sobre suas crenças. A religião faz afirmações sobre o mundo real, e algumas dessas afirmações – apesar de não todas – podem ser julgadas de forma muito direta pelos critérios da ciência. Nós não precisamos invocar espíritos sendo inspirados em ovos fertilizados para entender a vida, por exemplo. E o fato de que a ciência nos ensinou muito sobre o funcionamento do mundo tem enormes consequências sobre como devemos pensar sobre questões morais e éticas, mesmo que ela não possa responder a essas perguntas por si só.
Por exemplo, a ciência é impotente para nos dizer quando a “personalidade” começa – mas nos diz algo muito crucial sobre como responder a essa pergunta. Em particular, ela nos diz que não há um momento mágico em que uma alma incorpórea ocupa residência em um corpo. De fato, o conceito de “pessoa” não se encontra em nenhum lugar do mundo natural; É uma categoria que é conveniente para apelar, pois tentamos dar sentido ao mundo. Mas não há, no que diz respeito à ciência, qualquer resposta correta ou errada à questão de quando a vida de uma pessoa começa – do ponto de vista da natureza, é apenas uma reação química após a outra.
Neste ponto, um monte de pessoas impacientes declaram que moralidade e a ética são simplesmente impossíveis em um mundo assim, gerando uma torrente de frustração. Mas este é o mundo em que realmente vivemos, de modo que uma “torrente de frustação” não é uma resposta produtiva. Moralidade e ética são possíveis, mas não podem ser encontradas na Lei Natural – são a criação de seres humanos, raciocinando juntos, com base em seus sentimentos e experiências compartilhadas. Os seres humanos não são placas em branco, nem são blocos imutáveis; Nascemos num mundo com certos desejos, aspirações e reações naturais aos eventos, e esses sentimentos podem se adaptar e mudar ao longo do tempo, em resposta ao aprendizado e ao raciocínio. Assim, nos reunimos, nos comunicamos, compreendemos que nem todos concordam necessariamente em como o mundo social deve ser organizado, e tentamos negociar algum tipo de compromisso mútuo. (Ou, alternativamente, tentar impor nossa vontade pela força. Mas eu gosto mais da abordagem de compromisso mútuo). É assim que o mundo realmente funciona.
“O momento em que um feto começa a acumular os direitos que concedemos a pessoas pós-nascimento” é algo que nós, como sociedade, temos que decidir; A resposta não irá ser encontrada na revelação, nem na fé, nem na contemplação filosófica da natureza da alma, nem no mundo natural. Este ponto de partida não é necessariamente prejudicial ao que a resposta final pode ser; Posso certamente imaginar um grupo de pessoas se unindo e concordando que, aos fetos recém-concebidos, devem ser concedidos todos os direitos de qualquer pessoa. Eu argumentaria contra eles, com base no fato de que os interesses de uma mãe autônoma e plenamente consciente devem pesar muito mais do que os da proto-pessoa que carregam. Mas não posso dizer que estejam inequivocamente errados, da mesma forma que uma afirmação errônea sobre a lógica ou mesmo sobre o mundo empírico pode ser dita como “errada”.
Se o arranjo social e político de um grupo enfatiza a autonomia de seus membros individuais responsáveis (o que a nossa faz, e eu gosto desse jeito), decidir quais são os critérios para ser julgado um “membro individual responsável” é de primordial importância. Quem pode votar? Quem consegue dirigir um carro? Quem decide quando desconectar o respirador? Quem possui uma “mente sã”? Quem é uma pessoa? Estas são perguntas difíceis, com respostas incompletas e secas. Mas podemos ser enganados ao pensar que algumas das respostas são bastante diretas, se acreditarmos em noções ultrapassadas de espíritos sendo soprados em nós por Deus.
Há muitas razões pelas quais é incoerente pensar em ciência e religião como simplesmente separadas e sem sobreposição [uma à outra]. Elas são diferentes, mas certamente sobrepostas. A maior realização intelectual do último milênio é a cosmovisão naturalista: tudo é construído com os mesmos blocos de construção básicos, obedecendo às mesmas regras, sem qualquer recurso ao sobrenatural. Apreciar essa visão não nos diz como devemos nos comportar, mas não percebê-la pode facilmente levar as pessoas a se comportarem mal.