Por Samuel Fernando
O cérebro humano e seus 86 bilhões de neurônios, conectados por 10¹² sinapses, é a última fronteira das ciências da vida [1]. A neurociência desde a publicação de “De morbis nervorum” em 1735, pelo médico holandês Herman Boerhaave (1668 – 1738), tradicionalmente um ramo apenas das ciências biológicas, tem feito muitos avanços na compreensão e explicação dos mecanismos cerebrais e os fenômenos que deles derivam, isto é, a mente, o comportamento e os transtornos mentais. Conhecemos atualmente, com alto nível de detalhamento, os estágios de desenvolvimento cerebral humano, mapeamos dezenas de funções, deciframos o armazenamento da memória, realizamos implantes cerebrais, conhecemos o efeito de drogas em diferentes sítios corticais e compreendemos como o cérebro toma decisões, aprende, adapta e controla todos as funções vitais do organismo; além das descobertas dos correlatos neurais da linguagem, emoções, sensação, percepção, motivação, imitação, aprendizagem e, especialmente, no contexto dessa matéria, as bases neurais e o processamento dos transtornos mentais [2]. E, não apenas no escopo das ciências biológicas, a neurociência se tornou uma ciência associada com outras áreas, como a física, computação, química, matemática, psicologia, antropologia, educação, linguística e engenharia.
Assim, podemos afirmar que a neurociência é a principal ciência do comportamento. De fato, todo o conhecimento que temos hoje do comportamento, cognição e mente passa, necessariamente, pela neurociência, e a mesma é um importante arcabouço teórico para os psicólogos, neurologistas, terapeutas e psiquiatras.
Um dos grandes desafios da neurociência é o diálogo com uma área médica especializada nos distúrbios mentais, prevenção, atendimento, diagnóstico, tratamento e reabilitação das diferentes formas de sofrimentos mentais: a psiquiatria.
A obra que marca o início da psiquiatria, enquanto área especializada da medicina, foi escrita por Philippe Pinel (1745 – 1826), o “Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie”. A psiquiatria evoluiu como campo médico e no século XX houve uma revolução do entendimento biológico das doenças mentais, introdução de classificações para os transtornos e descobertas de medicamentos psiquiátricos [3].
Há de se apontar algumas razões que tornam o diálogo entre a psiquiatria e a ciência do cérebro deveras complexo. A primeira, de cunho filosófico, encerra-se no conhecido “Problema Mente x Corpo”, explícito no dualismo cartesiano, mas que o antecede século antes. A origem do problema remonta à Idade Média. A mente, vista como uma entidade abstrata, incorpórea, separada do organismo, só poderia ser domínio do “espírito”; o conceito teológico de “alma” encerrava a sede da esfera mental de um indivíduo, portanto, inacessível a uma investigação científica. Assim, qualquer perturbação ou disfunção mental, por não ter um sítio físico externo e palpável, eram consideradas como ”manifestações espirituais”. Como conhecer as causas, mecanismos e tratamento de algo situado externo ao cérebro? Esse era o desafio [4]
Para Agostinho e os medievalistas, os transtornos mentais eram ”manifestações da ira divina”, consequência do ”pecado original”; a eliminação da disfunção passava pela penitência do perdão. Mais tarde, com o nascimento da psicanálise, Freud elaborou sua teoria para a origem dos transtornos e para o conceito de normalidade psicopatológica. O inconsciente freudiano estava no centro das origens e manutenção dos transtornos [5].
Hoje, com o avanço das técnicas em neurociência, podemos usar o método científico para analisar os transtornos mentais, a estatística, matemática e computação na modelagem de seus mecanismos e sua epidemiologia, técnicas avançadas nos diagnósticos e intervenções farmacológicas no tratamento. Os transtornos possuem bases celulares, fisiológicas, bioquímicas, genéticas e evolutivas, não importando aqui qual teoria epistemológica ou ontológica se adote na relação mente-cérebro, que ainda é um problema central para a filosofia da mente. Não obstante temos que lidar com um movimento negacionista que visa criticar, reformar e problematizar a psiquiatria: a antipsiquiatria. Termo que passou a ser usado na década de 60, para designar uma corrente doutrinária e ideológica na área de saúde mental, que tinha como característica principal contestar a validade da ciência médica para tratar os problemas psiquiátricos [6].
Michel Foucault [1926-1984] deu uma grande contribuição para a formação da ideologia antipsiquiátrica em suas obras: História da Loucura na Idade Clássica [1961], As Palavras e As Coisas [1966], Arqueologia do Saber [1969].
Em pleno século XX, com todos os avanços na neurociência e medicina, Foucault sugeriu que os transtornos fossem meras “construções sociais”, que não existem, a rigor, doenças mentais, e que a conceituação médica psiquiátrica não passa de um conjunto de rótulos. Na esteira do desconstrutivismo, o movimento antipsiquiatria bebeu a água da dialética e crítica marxista, que, verdade seja dita, não trouxe nenhuma contribuição efetiva para o conhecimento científico em nenhuma área; o que parece ser verdade é que onde as diferentes corrente ”pós-moderna” (de onde deriva a antipsiquiatria) tocou, houve um empobrecimento teórico-científico, uma distorção da lógica e uma letargia do conhecimento.
No artigo “A fabricação da loucura: contracultura e antipsiquiatria” (Vaz de Oliveira, 2010) o autor disserta sobre antipsiquiatria:
Segundo o psicólogo João Francisco Duarte Júnior (1983), a antipsiquiatria decorreu de estudos revolucionários sobre o comportamento humano. Reiterando as ideias de Roudinesco, Duarte Júnior mostra que ela surgiu no final da década de 1940 e se desenvolveu na seguinte, inicialmente nos EUA (Gregory Bateson) e depois na Europa (David Cooper, Franco Basaglia e Ronald David Laing). Em poucas palavras, a antipsiquiatria negava praticamente tudo o que a psiquiatria tradicional afirmava a respeito da doença mental. Por isso mesmo, o fundamento da ideologia antipsiquiátrica era a total extinção dos manicômios e a eliminação da própria ideia de doença mental.
Quais estudos revolucionários seriam esses? Seriam estudos científicos formais e empíricos? O autor não esclarece, repetindo apenas o discurso superficial, carregado da ideologia que pretende afirmar e que é defendida por dezenas de outros autores do movimento. Qual a base para a negação da psiquiatria e até da conceituação de doença mentais? Como ficam os pacientes afetados severamente por transtornos?
É preciso ressaltar que temos razões para aceitar e endossar partes da critica antipsiquiatra, no que se refere a denuncia e problematização de modelos terapêuticos e da realidade dos hospitais psiquiátricos tradicionais que persistiram até o século passado. Ninguém, em sã consciência, defenderia o uso indiscriminado da terapia eletroconvulsiva, trepanação e lobotomia, tampouco os maus tratos, exclusão e crueldade no tratamento de doentes mentais. Também não se trata de “reducionismo” ontológico, de reduzir o ser humano aos seus neurônios e a sua bioquímica e nem de enxerga-lo como um fenômeno científico em um laboratório.
Mas também temos razões suficientes para rechaçar veemente todas as outras premissas do movimento da antipsiquiatria. Todas as teorias, afirmações e teses de seus proponentes, como David Cooper, David Laing, Gregory Bateson, Michel Foucault, Erving Goffman, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Thomas Szasz (que chegou a afirmar que as doenças mentais eram ”mitos”) são cientificamente infundadas, sem nenhuma comprovação empírica [7-12]. Uma montanha de elucubração, retórica e mentiras, todas incompatíveis com o conhecimento científico e acadêmico. Entendemos que esse movimento não acrescentou nada de útil para o conhecimento psiquiátrico. Além do mais, contribuiu para o estereótipo da prática psiquiatra, da figura do especialista, como um sujeito cruel, que utiliza seus pacientes como cobaias, e da completa banalização da realidade patológica das doenças da mente.
O que advogamos e defendemos aqui é apenas o óbvio, porém baseado em milhares de pesquisas científicas empíricas realizadas no mundo inteiro durante mais de um século.
O comportamento humano funcional e disfuncional possui bases neurais. Comportamento é inseparável do cérebro. Kaplan & Sadock (2007), um clássico da psiquiatria, em seu compêndio dedica quase 100 páginas para tratar da neurociência funcional e comportamental, além de enfatizar a neuroimagem, genética, fisiologia e bioquímica na descrição da etiologia de cada transtorno, sejam transtorno anestésicos, psicóticos, de humor, personalidade ou de neurodesenvolvimento. E assim é em toda a produção científica da área.
Os aspectos comportamentais do sistema límbico são cruciais para o entendimento de transtornos de personalidade e de humor. A neurofisiologia dos canais iônicos, transmissores e receptores são a base da farmacologia psiquiátrica. As técnicas de neuroimagem e EEG fazem parte da rotina de diagnósticos em um atendimento psiquiátrico. A genética molecular fornece muitos modelos de patologias hereditárias. Há milhares de doenças e traços herdados que podem ser conhecidos molecularmente isolando um determinado gene, etc. Modelos animais do comportamento também são imensamente usados nos teste de agentes farmacológicos [13].
Finalmente, temos os modelos computacionais e estatísticos que podem ser utilizados no diagnóstico ou na investigação profunda dos correlatos neurais de diferentes transtornos mentais, que são indispensáveis na pesquisa e uma das mais avançadas formas técnicas em neurociência, para a reconstrução do sistema que se pretende estudar e para o teste de hipóteses sobre um determinado fenômeno comportamental e cognitivo.
Há evidências concretas de lesões corticais em alguns transtornos de personalidade, de desregramento nos neurotransmissores e neuromoduladores em todos os transtornos do humor, além de muitas evidências fisiológicas, hormonais, genética e anatômicas associadas com todos os transtornos mentais [14].
Negar tudo isso é negar a pesquisa científica. Negar os surtos psicóticos, o deficit do desenvolvimento, linguagem e percepção, os delírios, alucinações e a gravidade das crises emocionais severas em pacientes com algum distúrbio psicológico e psiquiátrico, que simplesmente destroem a qualidade de vida, saúde mental e também física, é negar a realidade. Apenas a teimosia, o fanatismo ideológico e desonestidade permitem a negação descarada de milhares de pesquisas nas áreas médica-biológicas.
Não existem transtornos mentais ou qualquer disfunção psíquica que possam ser descritos ignorando bases e fatores biológicos. Não há, categoricamente, nenhuma diferença entre patologias mentais e as demais patologias do organismo. E, portanto, na maior parte dos casos, a intervenção farmacológica é obrigatória e essencial para o tratamento dos doentes [15] e os principais modelos de terapias eficientes são aqueles com certo respaldo científico, como é o caso da Terapia Cognitivo-Comportamental [16].
A psicanálise e psicoterapias holísticas, místicas e esotéricas, bem como os tratamentos alternativos, alguns beirando o absurdo, como a grafoterapia, cristais, constelação familiar, etc. não possuem absolutamente nenhum rigor científico e não contribui em nada para o diagnóstico e tratamento das doenças mentais, devendo ser totalmente descartadas, ignorados e combatidos, bem como a maior parte da produção do movimento antipsiquiatra, suas dezenas de obras, autores e milhares de artigos, exceto aqueles que tratam exclusivamente de aspectos sociais, humanistas e políticos em relação aos hospitais e atendimento psiquiátrico.
O cérebro humano é um sistema biológico, como tal, seus mecanismos, dinâmica, funções e estruturas podem descritas em uma linguagem científica, que independe das teorias das sociais que possam ser criadas. O cérebro é a sede do pensamento, mente e comportamento, incluindo as disfunções desses mecanismos, i.e. os transtornos mentais. Como diria Hipócrates (460-377 a.C), que já suspeitava que a epilepsia e algumas outras doenças se originavam no cérebro:
“Os homens deveriam saber que é do cérebro, e de nenhum outro lugar, que vêm as alegrias, as delícias, o riso e as diversões, e tristezas, desânimos e lamentações.”
Referências
[1] LENT, R. et al. How many neurons do you have? Some dogmas of quantitative neuroscience under revision. European Journal of Neuroscience. v 35. n. 1. jan. 2012.
[2] Kandel ER. Fundamentos de neurociência e do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2000.
[3] Shorter, E. A History of Psychiatry: From the Era of the Asylum to the Age of Prozac. New York: John Wiley & Sons; 1997.
[4] Fava, G & Sonino, N.. Psychosomatic medicine: emerging trends and perspectives. Psychotherapy and Psychosomatics, 2000.
[5] Brown, T. M. Emotions and disease in historical perspective. National Library of Medicine. 1997.
[6] Dicionário de Psicanálise; Roudinesco, E. e Plon, M.; Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editor; 1998.
[7] Hall, Stuart, and Tony Jefferson. Resistance through rituals: Youth subcultures in post-war Britain. Psychology Press, 1993.
[8] Rissmiller, David J., and Joshua H. Rissmiller. “Open forum: evolution of the antipsychiatry movement into mental health consumerism.” Psychiatric services (2006).
[9] Barros, Maria Elizabeth, and Juan Carlos Peixoto Pereira. “Uma anotação à clínica: Gilles Deleuze, esquizofrenia e sua positividade.” Fractal: Revista de Psicologia 22.2 2010.
[10] Szasz, Thomas. Myth of mental illness. Vol. 15. New York, 1961.
[11] Laing, Ronald David, and Aaron Esterson. “Sanity, madness, and the family: Families of schizophrenics.” (1970).
[12] Sander, Jardel. “A caixa de ferramentas de Michel Foucault, a reforma psiquiátrica e os desafios contemporâneos.” Revista Psicologia & Sociedade 22.2 (2010).
[13] Kircher, Tilo, and Anthony David. The self in neuroscience and psychiatry. Cambridge University Press, 2003.
[14] Martin, Joseph B. “The integration of neurology, psychiatry, and neuroscience in the 21st century.” American Journal of Psychiatry (2002).
[15] Schatzberg, Alan F., and Charles B. Nemeroff. The American Psychiatric Press Textbook of Psychopharmacology. American Psychiatric Association, 1995.
[16] Premkumar, Preethi, et al. “Orbitofrontal cortex, emotional decision-making and response to cognitive behavioural therapy for psychosis.” Psychiatry Research: Neuroimaging 231.3 (2015).