Introdução
Na antiguidade, a democracia grega era baseada na tentativa de resolução de problemas por meio do diálogo. Através de assembleias – reuniões de cidadãos – os discursos se confrontavam e os mais persuasivos eram aproveitados para a tomada de decisões. Nesse sentido, o domínio sobre o Lógos – enquanto “discurso” – estava relacionado ao aumento de poder social e político. Surgiram, por conseguinte, os profissionais do convencimento, os oradores, que cobravam para ensinar técnicas de persuasão e para compor sofisticados discursos (MARCONDES, 2007, p. 41).
Nesse contexto, Górgias foi uma figura de grande notoriedade. Além de ter sido um renomado orador, foi considerado um dos maiores mestres em retórica de sua época. Embora tenha nascido na Sicília, viveu grande parte de sua vida viajando pela Grécia de cidade em cidade cobrando por sua atuação como professor e orador. Ao longo da história, vários de seus textos foram perdidos, como o Sobre o não-ser, que foi parafraseado por Sexto Empírico. Dentre os discursos integrais que se salvaram, está seu famoso Elogio de Helena (MARCONDES, 2007, p. 43-44).
Em contrapartida, um dos textos mais famosos em que Górgias aparece, e que foi intitulado com seu nome, é obra do filósofo Platão. Com viés pretensamente biográfico, Platão diferencia o discurso socrático, que é filosófico, do gorgiano, que é retórico, através da descrição de uma conversa entre Sócrates, Cálicles, Querefonte, Polo e Górgias. Indubitavelmente, é tarefa complexa estabelecer até que ponto Górgias não seria filósofo, e sim orador. Parece existir uma espécie de “filosofia” gorgiana, que foi tratada historicamente como mera sofística por conta da importância do pensamento platônico. Podemos enxergar, em Górgias, uma “ontologia” e uma “ética” que se correlacionam mutuamente, e que possuem como eixo central a sua interpretação sobre as propriedades do Lógos. Em todo caso, esse “Górgias filosófico” ficará mais evidente ao nos depararmos com as suas constatações sobre a linguagem e as limitações humanas em relação ao conhecimento.
O nadificar do ser
No Adversus Mathematicos (VII, 65-87), do filósofo Sexto Empírico (presente na copilação O efeito sofístico, de Barbara Cassin), há uma paráfrase do pensamento de Górgias acerca de sua concepção ontológica sobre o Lógos. Em resumo, Sexto Empírico explica que
Em seu escrito, Sobre o não-ser ou sobre a natureza, ele [Górgias] coloca em questão três preceitos que se seguem: um, o primeiro, que nada é; o segundo, que mesmo que se é, não pode ser apreendido pelo homem; o terceiro, que mesmo se pode ser apreendido, não pode, portanto, ser reformulado e explicado a seu próximo (2005, p. 283).
Podemos perceber três pontos centrais no argumento gorgiano: o nadificar do ser, a sua incomunicabilidade e a sua incognoscibilidade. Essas constatações são demonstradas através do estabelecimento de implicações lógicas abstratas e de tautologias complexas.
Apesar de afirmar que “nada é”, o argumento de Górgias não deve ser interpretado como uma aceitação de que a verdade não existe. Como explica Aldo Lopes Dinucci, Górgias pretende “provar que a noção de ser é vazia e inconsistente” (2008, p. 6) contradizendo “todo e qualquer sistema filosófico que inclua uma ontologia positiva” (DINUCCI, 2008, p. 7) e também a proposição parmenídica, que coloca o ser como ponto arquimediano da constituição ontológica do mundo. Logo, não parece que seu propósito é negar a existência da verdade, mas sim demonstrar que ela é desprezível.
Interpretando o argumento gorgiano à luz de conceitos mais claros, podemos afirmar que, embora seja um verbo de ligação, a palavra “ser” não pode nos fornecer uma ligação propriamente excelente entre os entes – as coisas em si mesmas – que estão além do nosso horizonte de conhecimento. Isto é, ao dizer que um sujeito é algum predicado estaríamos tentando conectar um ao outro por um laço fraco ou, para ser mais exato, por uma noção extremamente abstrata, que é o vocábulo “ser”. Em suma, um predicado não é um sujeito e um sujeito não é um predicado. Ambos são entes e, sendo entes, não são; já que “o ente, sem dúvida, não é” (CASSIN, 2005, p. 286). A fim de provar essa proposição, Górgias parece tenta revelar que a noção de “ser” – quando aplicada ao ente por exemplo – implica em contradição. Por conseguinte, demonstra que a conexão entre sujeito e predicado é vazia, difusa e opaca; e, no mesmo sentido, que são igualmente abstratas as próprias noções de “sujeito” e de “predicado”. Um discurso que tentasse definir a realidade e adequá-la a um exame necessitaria do verbo “ser”. Fracassaria, pois, em sua tentativa.
De fato, se os entes são visíveis, audíveis e, de maneira geral, sensíveis, eles que, precisamente, subsistem do lado de fora, mas que, dentre estes, os visíveis sejam apreendidos pela visão, os audíveis pela audição, e não contrariamente, então, como podem ser revelados a outrem? Pois o meio através do qual revelamos é o discurso, mas discursos não são as coisas que subsistem e que são. Então, não são os entes que revelamos ao próximo, mas o discurso, que difere das substâncias (CASSIN, 2005, p. 288-289).
Em relação a esse trecho, é perceptível uma tentativa de desconectar as palavras das coisas. Ainda que as palavras fossem produtos das coisas – resultado “do de fora” (CASSIN, 2005, p. 289) – elas não seriam as coisas em si mesmas. Se asseverássemos que os discursos equivalem às coisas, teríamos que admitir que uma pessoa é uma palavra, já que uma pessoa tem nome. Todavia, sabemos que uma pessoa não é seu nome, isto é, que o “discurso (…) difere das substâncias” (CASSIN, 2005, p. 289). Acreditar que as palavras são as coisas seria como crer que o raio e o trovão são idênticos só por estarem aparentemente ligados por um laço de causalidade. Assim como o raio se torna revelador do trovão, “o de fora se torna revelador do discurso” (CASSIN, 2005, p. 289).
As palavras não são as coisas. Se apenas as coisas são verdadeiras, então as palavras são falsas. Como obras de arte, os discursos seriam mentiras que nos parecem semelhantes à verdade. Se, contudo, a verdade é incognoscível, não há como compararmos ela aos discursos (como comparamos uma pintura à pessoa que na qual ela se baseou), pois deveríamos primeiro conhecer a verdade para saber as suas propriedades e, então, compará-las com as propriedades dos discursos. Não há como comparar uma coisa conhecida com uma desconhecida. Sexto Empírico sentencia: “[Em Górgias,] o critério de verdade se dilui” (CASSIN, 2005, p. 290).
Se os pensamentos fossem as coisas, quaisquer coisas que pensássemos seriam verdades. Podemos, por outro lado, pensar em uma multiplicidade de coisas que não são verdades, como a existência de Quimeras (CASSIN, 2005, p. 287). Logo, não haveria uma adequação do pensamento à verdade. Como ocorre com os discursos em relação ao “de fora”, nossos pensamentos não possuiriam relação com as coisas ou, como parafraseia Sexto Empírico, “os pensamentos não são entes” (CASSIN, 2005, p. 287). Em vista disso, nem se o Lógos pudesse se adequar à verdade conseguiríamos exprimi-la, já que a realidade é incognoscível.
Parece que, para o Górgias de Sexto, a busca por uma aproximação do Lógos em relação a uma verdade transcendente é inútil. Estaríamos condenados ao reino das Doxai – opiniões – e as exprimiríamos por meio do Lógos, que deveria ser aperfeiçoado para ser mais persuasivo, e não para aproximar-se de uma descrição mais fidedigna da realidade. Em outras palavras, ao exprimir que “nada é”, Górgias nadifica a essência, revela a inconsistência e a falta de sentido no verbo ser. Por isso, dá ao Lógos uma abertura de possibilidades gigantescas. O orador, assim, não precisa adequar o Lógos à verdade. Se tentasse adequá-lo, nem conseguiria. Nas palavras de Aldo Lopes Dinucci: “As coisas não são e, por esta razão, qualquer discurso que pretenda falar do real nessa esfera de abstração está fadado a conter em si mesmo inconsistências e, conseqüentemente, fadado a ser falso” (2008, p. 8).
No diálogo platônico, Górgias afirma que pode responder a qualquer questão (PLATÃO, 1980, 447c-448a). Apesar de parecer uma proposta banal, ela está intimamente associada ao “nada é” gorgiano. Parece que, como os discursos não podem exprimir a verdade, cabe a eles a função de encantar. Entretanto, para que possamos compreender melhor o que significa esse “encantamento” de Górgias, é necessário que recorramos ao paradigma do autor a despeito do Lógos no Elogio de Helena.
Os discursos como fármacos
No Elogio, Górgias defende que Helena foi obrigada a ir a Troia (2009, §5) e que, por isso, ela não é culpada pela guerra que se sucedeu por causa desse incidente. Em meio a obra, o autor faz questão de ressaltar aspectos importantes do Lógos, que vão nos ajudar a entender as consequências de sua metafísica para o fazer discursivo e que destacarão melhor por qual razão ele propõe que pode responder a quaisquer indagações.
Logo no início de seu discurso, Górgias destaca a hipótese mais descartável: Helena ter sido forçada por um deus. É óbvio que, se foi por uma força do acaso ou de um deus, não podemos culpá-la. Não há como lutar contra forças tão poderosas. Nesse sentido, o mesmo valeria para a segunda hipótese: Helena ter sido raptada. Se assim fosse, deveríamos culpar quem a raptou, e não a raptada. Segundo Górgias, Helena deveria ser “mais digna de comiseração do que de maledicência” (2009, §7) se fosse o caso. Por outro lado, Helena poderia ter sido, simplesmente, persuadida. Ainda assim, para Górgias, isso não a tornaria culpada. Aquele que foi persuadido teve a alma enganada, pois
Um discurso é um grande senhor que, por meio do menor e mais inaparente corpo, leva à cabo as obras mais divinas. Pois é capaz de fazer cessar o medo, retirar a dor, produzir alegria e fazer crescer a compaixão (2009, §8).
Ao contrário do rapto, que age no corpo, o discurso age na alma: “uma certa afecção particular, por meio dos discursos, a alma experimenta” (2009, §9). Górgias descreve o discurso inspirado pelos deuses enquanto uma forma de encantamento – “introdutores do prazer, desvios de dor” (2009, §10). A alma, portanto, é passível de ser constrangida pela sua força.
Que motivo, então, impede de julgar que também Helena, semelhantemente, foi subjugada pelos discursos, não voluntariamente, mas como se tivesse sido arrebatada por força das mais fortes? Pois a disposição da persuasão, por um lado, de maneira nenhuma parece com a necessidade; por outro lado, tem o mesmo poder. Com efeito, o discurso que persuadiu a alma constrangeu a que persuadiu tanto a acreditar nas coisas ditas, quanto a concordar com as coisas feitas. Então, o que persuadiu, como constrangeu, comete injustiça; mas a que foi persuadida, como foi constrangida pelo discurso, em vão é mal falada (2009, §12).
Górgias narra a suposição do encantamento pelo convencimento com a mesma estrutura da hipótese do rapto. Arrisca a analogia: o raptador está para o persuasivo assim como a raptada está para a persuadida. Logo, a persuasão não somente seria uma forma de encantamento como também seria comparável à violência de um rapto.
Em contrapartida, ao deparar-se com o argumento gorgiano, o espectador pode indagar: Não seria incoerente Górgias tentar persuadir os juízes de que a persuasão é uma forma de manipulação e de violência? Isso não faria com que os juízes não se deixassem persuadir por Górgias, já que aquele que fosse convencido seria também violentado?
Um bom orador sempre está um passo a frente do seu interlocutor. Górgias parece que já esperava essa objeção. Expõe, pois, um duplo aspecto do discurso para respondê-la antecipadamente. Afirma que
Têm a mesma relação tanto o poder do discurso para o ordenamento da alma, quanto o ordenamento dos fármacos para a natureza dos corpos. Pois assim como alguns dos fármacos expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns, a doença, outros, a vida, assim também dentre os discursos uns afligem, outros deleitam, outros atemorizam, outros conferem ousadia aos ouvintes, outros, por alguma má persuasão, drogam e enfeitiçam completamente a alma (2009, §14).
Um fármaco pode funcionar como remédio, mas também como veneno. Ser um ou outro depende da composição e da dosagem. O autor precisa traçar essa ambiguidade no discurso, porque senão arranja um motivo para seus interlocutores não se deixarem convencer. Isto é, ele precisa convencê-los de que o convencimento não é sempre um encantamento forçoso, que também pode ser “proferido com verdade” (2009, §13) e que, obviamente, esse seria o caso de seu discurso em favor de Helena.
Em suma, com a analogia de que o discurso está para o “ornamento da alma” como o “fármaco” está “para a natureza dos corpos” (2009, §14), ele quer explicitar que o discurso pode agir tanto como remédio quanto como veneno: que quem convenceu Helena a envenenou, mas que o convencimento que, por meio de seu discurso, ele pretende despertar nos juízes se relaciona ao caráter curativo de um remédio.
Conclusão
Logo, é possível, à luz da perspectiva gorgiana sobre o Lógos, compreender por qual razão Górgias afirma que pode responder a qualquer pergunta (PLATÃO, 1980, 447c-448a). Do ponto de vista gorgiano, a verdade não cabe no Lógos como também não cabe no ser humano. Isso confere ao Lógos um aspecto bruxuleante, escorregadio, esquivo, uma flexibilidade que pode oferecer ao espectador o sentimento de que o Lógos adquire a forma da verdade. Ao sermos encantados, sentimos que fomos persuadidos. Desse modo, a função do Lógos se resume ao mero encantamento, já que tentar adequá-lo à verdade é uma tarefa inútil.
Górgias sentencia: “A persuasão é, de fato, a finalidade precípua da retórica” (PLATÃO, 1980, 453a). Por isso, Sócrates afirma que a retórica parece uma espécie de arte sobre-humana (PLATÃO, 1980, 456a) e Górgias, que “não há assunto sobre que ele [o orador] não possa discorrer com maior força de persuasão diante do público do que qualquer profissional” (PLATÃO, 1980, 456c). Indubitavelmente, o paradigma gorgiano do “nada é” nos leva – direta ou indiretamente – à atribuição de um propósito por excelência ao Lógos: ser dosado para encantar almas.
Referências Bibliográficas
CASSIN, Barbara. O efeito sofístico. São Paulo: Ed. 34, 2005. p. 283-291.
DINUCCI, Aldo. Análise das Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos. O Que nos Faz Pensar (PUCRJ), v. 24, p. 5-22, 2008.
GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de Daniela Paulinelli. Belo Horizonte: Anágnosis, 2009. [Apresenta as traduções de textos gregos realizadas pelo grupo Anágnosis, da UFMG.] Disponível em: < http://anagnosisufmg.blogspot.com/2009/11/elogio-de-helena-gorgias.html >. Acesso em: 28. Out. 2016.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PLATÃO. “Górgias”. In: Diálogos. Tradução de Carlos Roberto Nunes – Belém: Universidade Federal do Pará, v. III-IV, 1980. p. 111-217.