Por Marcelo Gleiser
Publicado na National Public Radio
Inicio com uma citação memorável:
“A passagem da parte física do cérebro para os fatos correspondentes da consciência é inconcebível. Dado que um pensamento definido e uma ação molecular definida ocorrem simultaneamente no cérebro, não possuímos o órgão intelectual, nem aparentemente nenhum rudimento desse órgão, que nos permitiria passar, através de um processo de raciocínio, de um fenômeno a outro. Eles surgem juntos, mas não sabemos por quê. Se as nossas mentes e os nossos sentidos fossem tão desenvolvidos, fortificados e esclarecidos a ponto de permitir que víssemos e sentíssemos as mínimas moléculas do cérebro, fôssemos nós capazes de seguir todos os seus movimentos, todos os seus agrupamentos, todas as suas descargas elétricas, caso ocorram, e se estivéssemos intimamente familiarizados com os estados correspondentes do pensamento e do sentimento, nós ainda nos encontraríamos mais longe do que nunca da solução do problema. Como esses processos físicos estão ligados aos fatos da consciência? O abismo entre as duas classes de fenômenos ainda permaneceria intelectualmente intransponível… Digamos que a consciência do amor, por exemplo, seja associada ao movimento molecular cerebral espiralado em sentido horário e a consciência do ódio com o movimento espiralado em sentido anti-horário. Saberíamos então que, quando amamos, o movimento é em uma direção e, quando odiamos, o movimento é em outra; mas o ‘Por quê?’ continuaria tão sem resposta quanto antes.”
Ela foi parte do discurso do eminente físico vitoriano John Tyndall em 1868, quando da sua posse na presidência da Seção de Física da Associação Britânica para o Avanço da Ciência. Há 148 anos, os cientistas já estavam perplexos ante o estranho fato de que, ao adotarmos uma descrição puramente materialística da mente, devemos enfrentar o grande desafio de descobrir como a “atividade molecular no cérebro” se relaciona com o pensamento.
O aspecto interessante do argumento de Tyndall é a afirmação de que mesmo se compreendêssemos o seu funcionamento — isto é, o fato que, no exemplo dele, o amor era associado a um movimento espiralado em sentido horário e o ódio a um na direção contrária — não teríamos ideia sobre como relacionar o maquinário molecular da emoção e pensamento com a experiência subjetiva da emoção e do pensamento.
Claro, muita coisa aconteceu no crescente campo da neurociência cognitiva nos últimos 150 anos. Com os avanços em tecnologias de sondas não invasivas, como IRMf e EEG, podemos acompanhar, pelo menos aproximadamente, as regiões onde as coisas acontecem no cérebro, por assim dizer, quando amamos, odiamos, ouvimos música ou meditamos. Os cientistas já descobriram uma longa lista de mais de 100 compostos bioquímicos, os neurotransmissores, que transmitem os sinais pelas sinapses químicas, as pontes entre neurônios, ou entre os neurônios e células musculares e glandulares: glutamato, acetilcolina, dopamina, epinefrina (adrenalina), histamina, etc. Agora temos uma visão muito mais clara do cérebro, com seus aproximadamente 85 bilhões de neurônios, cada um com cerca de 15.000 conexões com os neurônios vizinhos. A complexidade desse trajeto é impressionante, e é resumida no “conectoma”, uma espécie de diagrama elétrico que mapeia todas as conexões neurais em um organismo.
No artigo que propunha o conectoma, de 2005, seus autores, Olaf Sporns, Giulio Tononi e Rolf Kötter, observaram que: “O conectoma aumentará significativamente nossa compreensão sobre como estados funcionais do cérebro emergem a partir do seu substrato estrutural.” Em outras palavras, dentro da hipótese de trabalho do cérebro como uma rede de neurônios e sinapses, a esperança é que esse mapa de alguma forma aborde o problema apresentado por Tyndall e finalmente esclareça como “os processos físicos estão conectados com os fatos da consciência”. Um segundo objetivo desse mapa, extremamente importante sob a perspectiva médica, é o de “proporcionar novas perspectivas mecanicistas sobre como a função cerebral é afetada em caso de rompimento do substrato estrutural”. O segundo objetivo, obviamente, é muito mais fácil de ser alcançado.
Uma das vantagens imediatas de possuir um conectoma é que ele poderia, em princípio, ser reproduzido em computadores. Assim, teríamos um modelo simplificado da conectividade cerebral, que poderia ser utilizado de diversas maneiras. Por exemplo, para testar o efeito de traumas ou estímulos localizados sobre o funcionamento global do cérebro. Presumindo que elementos químicos possam ser acrescentados ao modelo, isto é, o complexo labirinto de neurotransmissores fluindo através das sinapses neurais, os efeitos de drogas específicas poderiam ser testados nas simulações, sem a necessidade de cobaias animais ou humanas. Podemos perceber a aplicação médica instantânea dessa abordagem, o que, por si só, já torna o esforço extremamente relevante para a ciência.
O grande problema, contudo, é se tais esforços poderiam realmente ajudar a esclarecer a questão de Tyndall. Como observou David Chalmers, filósofo da Universidade de Nova York, a “grande dificuldade da consciência é o problema da experiência”. A verdade é que não sabemos e afirmações em contrário são, na melhor das hipóteses, otimistas. Isso não significa que o problema não tem solução: tais afirmações são perigosas na ciência, já que continuamos a nos surpreender com problemas que conseguimos solucionar agora e que antes não conseguíamos. Porém, parece ser razoável afirmar que há um elemento fugidio faltando aqui, algo que traduza a atividade neural fisiológica na experiência subjetiva de pensar ou sentir algo. Os entusiastas afirmam que só saberemos se tentarmos e que a construção de conectomas e programas de computador sofisticados podem nos aproximar da compreensão. Tais argumentos presumem que a própria complexidade da conectividade neural engendrará, de alguma forma, uma consciência mais elevada através de alguma espécie de fenômeno coletivo emergente. É difícil discordar da relevância dessa pesquisa. Mesmo que não consiga abrir uma janela para a consciência, ainda terá um impacto profundo sobre diagnósticos médicos e farmacologia cerebral.
Por outro lado, é difícil imaginar como o comportamento coletivo emergente dos neurônios pode se tornar um pensamento ou a experiência de uma emoção. Se a consciência é, como deveria ser, um estado organizado da matéria, aparentemente nos falta um componente essencial para descrevê-la. Comparando, um prédio possui tijolos, canos e correntes elétricas controladas por interruptores espalhados por inúmeros fios. É um dispositivo mecânico que funciona obedecendo a um conjunto específico de leis da física. Compreendemos os prédios, podemos construí-los e consertá-los porque sabemos quais são os princípios físicos fundamentais sob os quais eles funcionam. Do mesmo modo, é plausível que possamos construir sistemas similares ao cérebro com diferentes tipos de consciência empírica, como visão ou audição, e que respondam a tais estímulos com ações específicas. Muitos robôs já fazem isso.
Supondo que já possuímos um conectoma aproximado do cérebro humano e que conhecemos os princípios físicos e biológicos, realmente podemos nos aproximar bastante de um modelo que simule o modo como vemos e ouvimos. Mas será que esse modelo também terá a experiência subjetiva do ser? A questão aqui, aparentemente, não é de um cauteloso “sim” ou “não” — mas de um “por que não?”