Por Eduardo Martínez
Publicado no Tendencias
Traduzido por Lucas Walmrath e Douglas Rodrigues
A filosofia não está morta, mas está gravemente doente, diz o filósofo e cientista Mario Bunge nesta entrevista exclusiva, na qual considera que, se nos descuidarmos da investigação básica, dando prioridade às armas e a conquista territorial, a ciência decairá e, com ela, a técnica. Ele acrescenta que os filósofos devem cooperar com cientistas sociais para projetar sociedades em que os interesses individuais e coletivos sejam protegidos.
Mario Bunge recebeu seu doutorado em ciências físico-matemáticas pela Universidad de La Plata em 1952. Prêmio Príncipe das Astúrias, tem mais de 14 títulos de doutor honoris causa e 4 de professor honorário. Atualmente, é professor de Filosofia da Universidade McGill em Montreal, Canadá. Publicou mais de quarenta livros, o último deles, “Crisis y reconstrucción de la filosofía”. Membro, entre outros 12, do Conselho Editorial de Tendências Científicas, Mario Bunge analisa na seguinte entrevista exclusiva o estado atual da filosofia, descreve os últimos avanços do conhecimento científico e recomenda uma nova relação entre ciência e filosofia que ilumine um novo modelo de sociedade.
Em seu último livro, “Crisis y reconstrucción de la filosofía”, você ressalta que a filosofia está doente, embora não gravemente. Quais são os sintomas desta doença?
Richard Rorty e outros alegaram que a filosofia está morta. Eu acredito que ela ainda está viva, embora gravemente doente. Na verdade, a maioria dos filósofos simplesmente comentam as ideias uns dos outros ou fazem especulações estéreis: não abordam novos problemas, não sabem o que está acontecendo na ciência e na tecnologia nem lidam com os principais problemas que enfrenta a humanidade. Por exemplo, os ontologistas imaginam mundos possíveis, mas ignoram o único (mundo) real; Os gnoseologistas continuam acreditando que as teorias científicas são pacotes de dados empíricos; Os filósofos morais discutem minuciosamente o problema do aborto, mas negligenciam os problemas muito mais sérios de fome, opressão e fanatismo. E os filósofos da técnica tendem a louvar ou a denigrir técnicas sem ver que há técnicas ruins e boas, e que mesmo as boas podem ter resultados perversos, como o desemprego. No meu último livro, aponto dez razões para a atual crise da filosofia: a profissionalização excessiva; confusão entre filosofar e historicizar; confusão de obscuridade com profundidade, ao estilo de Husserl e Heidegger; obsessão com a linguagem, no estilo de Wittgenstein; idealismo (em oposição ao materialismo e ao realismo); atenção exagerada a mini-problemas e jogos acadêmicos; formalismo insubstancial e substancialidade informal; fragmentarismo e aforismo; alienação dos motores intelectuais da civilização moderna: a ciência e a tecnologia; e a permanência na torre de marfim.
Você acha que faz sentido falar de filosofia em uma sociedade tão condicionada pela assim chamada “morte do pensamento” ou pelo “pensamento débil”?
É verdade que o pós-modernismo e, em particular, o chamado “pensamento débil”, provocaram estragos nas faculdades de humanidades. Mas, é claro, não afetou as faculdades de ciência, engenharia, medicina ou direito. Nestes, devemos pensar corretamente e devemos controlar a imaginação com dados empíricos. “Pensamento débil” apenas incapacita intelectualmente estudantes de faculdades de humanidades.
Tradicionalmente, a filosofia tentou dar respostas a questões transcendentais para a condição humana através de diferentes escolas de pensamento. Podemos dizer que já sabemos quem somos, de onde viemos e para onde vamos?
A filosofia não está preocupada em descobrir quem somos, de onde viemos ou para onde vamos. A biologia, a psicologia e as ciências sociais lidam com esses problemas. Por exemplo, a biologia evolutiva descobriu que os seres humanos e os macacos antropoides possuem precursores comuns; antropologia, psicologia e sociologia mostram que somos animais emocionais, intelectuais, trabalhadores e sociáveis; e a história e a política sugerem que a humanidade não vai a nenhum ponto predeterminado, mas que, como o grande poeta Antonio Machado colocou, faz seu caminho ao andar.
A ciência fez incursões frequentes no campo da filosofia, particularmente ao longo do século XX. Você considera que essas contribuições contribuíram para regenerar a filosofia, ou melhor, para confundi-la?
É verdade que a ciência resolveu muitos dos problemas originalmente criados pelos filósofos. Por exemplo, físicos e químicos responderam a questão da natureza da matéria, do espaço e do tempo; os biólogos nos dizem o que é a vida e os neuropsicólogos revelaram o mistério da alma. Essas respostas deixaram os filósofos especulativos desocupados, mas encorajaram outros a fortalecer os laços da filosofia com a ciência. Por exemplo, o filósofo da mente pode ignorar a neuropsicologia, ou usá-la para formular novas questões, como o que é criatividade e consciência, e como a razão e a sensibilidade moral emergem.
A física teórica é hoje dividida em duas escolas básicas de pensamento, materialistas e idealistas. Você considera que esta divisão está relacionada com a filosofia atual ou completamente alheia a ela?
Não acredito que a física seja dividida em materialista e idealista. O que acontece é que existem interpretações idealistas (ou subjetivistas) de algumas teorias físicas, em particular a teoria quântica. Mas na verdade, ao fazer suas pesquisas, os físicos atuam como materialistas. Ou seja, eles sabem que as coisas microfísicas existem por si mesmas, em vez de serem objetos mentais. Eles adotam ideias idealistas quando realizam divulgação científica. Além disso, é possível refutar a tese de que a existência de fótons, elétrons, átomos, etc., depende do observador. Eu acho que a refutei no meu livro “Foundations of Physics” (Springer, 1967) ao axiomatizar as principais teorias físicas. Desta forma, os referentes da mesma são expostas explicitamente. Acontece que eles se referem exclusivamente a coisas físicas. Por exemplo, o operador de energia e a função de estado não possuem variáveis que descrevem as propriedades do observador.
Em alguns círculos de pensamento, de acordo com o conhecimento adquirido sobre as faculdades superiores, afirma-se que nosso organismo não é capaz de alcançar o fundo da verdade perseguida pela filosofia. Você considera que somos uma espécie condenada a nunca mais alcançar os últimos segredos do universo?
Como você sabe que nunca podemos saber nada? Quem afirma que sempre se ignorará a X, ergue uma barreira arbitrária ao avanço do conhecimento e, portanto, é um obscurantista. No final do século XIX, Herbert Spencer, Emile Du Bois-Reymond e outros afirmaram que jamais se saberia o que é a mente. Hoje conhecemos uma pilha de coisas sobre a mente. Por enquanto, sabemos que todos os processos mentais são processos cerebrais, graças aos quais podem ser modificados alterando sua composição química e, em casos extremos, removendo partes do cérebro ou do sistema endócrino. A única coisa que podemos dizer é que, enquanto houver pessoas curiosas, novos problemas continuarão a surgir, cuja pesquisa produzirá novos resultados. Mas também podemos prever que, se a pesquisa básica for negligenciada, dada a prioridade ao armamento e conquista territorial, a ciência decairá e, com ela, a técnica. Se iremos avante ou revés, depende exclusivamente da cidadania no caso das democracias políticas, e dos mandachuvas nas demais.
Em seu último livro, você aponta que um dos pilares necessários para recompor a filosofia é a ciência e a tecnologia. Ambas nos prometem mudanças tão profundas que, se alcançadas, nos forçarão a mudar muitos padrões de pensamento. Você acha que a filosofia atual está preparada para enfrentar essas mudanças previsíveis e fornecer um marco teórico para os cenários futuros?
Alguns filósofos estão preparados para lidar com as grandes novidades da cultura e outros não. Os primeiros tentam se manter em dia com algumas disciplinas, enquanto os segundos preferem se refugiar no passado. Sempre aconteceu assim, e presume-se que isso continuará acontecendo. O que importa é a qualidade dos inovadores e as oportunidades que eles têm para pesquisar livremente. Apenas cerca de 200 pessoas participaram da Revolução Científica e Filosófica do século XVII, incluindo Galileu, Descartes, Kepler, Harvey, Gilbert, Boyle e seus discípulos. Os filósofos puros que vieram depois, particularmente Berkeley, Hume e Kant, foram contrarrevolucionários, já que voltaram a colocar o sujeito cognoscente no centro. É triste notar que, salvo exceções (como Aristóteles e Descartes), os filósofos foram contra o progresso.
Nossa sociedade sofre de uma profunda crise de valores que aparenta ser o reflexo da crise da filosofia. O que a filosofia atual deve dizer sobre os valores que prevalecem na sociedade de hoje e por quais deve apostar para preservar a integridade da espécie e garantir o progresso humano?
A filosofia, em particular a axiologia, pode dizer muito sobre os valores. Por exemplo, eles não existem por si mesmos, mas são inventados e destruídos por seres vivos; que há os individuais, como o bem-estar e a verdade; e os sociais, como a justiça e a paz; que todos os valores são analisáveis à luz da razão e da experiência, etc. Os psicólogos sociais, antropólogos e sociólogos também podem dizer muito sobre os valores. Por exemplo, sabe-se que as pessoas se tornam egoístas quando oprimidas porque o instinto de preservação prevalece sobre todo o resto. Também se sabe que a obsessão com o dinheiro tem o mesmo efeito de dissolução social. E se sabe que os valores variam com as sociedades. Por exemplo, a lealdade, a honestidade e a integridade familiar são mais apreciadas nas sociedades tradicionais do que nas sociedades modernas. Quanto à preservação das espécies e ao progresso, dependem do tipo de sociedade que escolhemos. Neste ponto, os filósofos deveriam cooperar com cientistas sociais, projetar sociedades em que os interesses individuais sejam protegidos sem a perda dos coletivos. No meu livro “Las ciencias sociales en discusión” (Sudamericana, 1999) proponho o que chamo de techno-holo-democracia, ou seja, democracia integral (política, econômica e cultural) guiada pela técnica. Eu acredito que esta é uma alternativa viável, tanto para o capitalismo quanto para a tirania estatista que se fez passar por socialismo. Enquanto isso, será necessário sustentar o estado de bem-estar social, que os conservadores estão tentando desarmar, precisamente porque é a ordem social menos imperfeita já feita.