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Por que é necessário fazermos divulgação científica?

O conhecimento científico, de certa forma, está intrinsecamente relacionado com os avanços tecnológicos que podem se materializar em profundas melhorias na qualidade de vida da população. Por exemplo, a expectativa de vida no Brasil em 1900, era de 33,7 anos, dando um salto significativo em pouco mais de 11 décadas, atingindo 75,4 anos em 2014.¹ Esse salto se deve a uma série de revoluções científicas que ocorreram no último século. Obviamente, nem sempre a tecnologia está ligada diretamente ao progresso, pois, em geral, ela pode não estar democratizada ou ser utilizada para outros fins.

No entanto, a apropriação dos resultados produzidos pela ciência e o conhecimento científico apresentam uma relativa separação. As pessoas andam de carro, usam internet, necessitam de medicamentos, mas nem sempre entendem como funcionam coisas que elas usam no dia a dia.

Assim, o fato do conhecimento científico estar concentrado em poucas pessoas cria uma lógica de que caberia aos cientistas “fazer ciência” e a população a de usufrui-la. Essa engrenagem entre concentração absoluta de conhecimento em um punhado de indivíduos carrega em si uma profunda contradição que coloca em xeque, inclusive, o avanço da ciência.

No entanto, não poderiam os cientistas seguir fazendo ciência e a população usufruindo de seus resultados? Não, por que essa estrutura cedo ou tarde colocará o avanço científico em xeque.

Mas por que o analfabetismo científico da população colocaria em xeque o avanço da ciência? Em regra, uma população ignorante cientificamente apresenta a tendência de ser tornar hostil a pesquisa científica por não entendê-la. Por esse aspecto a alfabetização científica é, sem dúvida, uma das tarefas fundamentais, principalmente pela polarização social que vivemos.

O primeiro passo da alfabetização científica se passa ainda na escola. Crianças são curiosas e o ensino de Ciências, antes de mais nada, deve ser o mecanismo de incentivar essa curiosidade e não “matá-la”, pelo contrário, transformá-las em pessoas mais curiosas e críticas, impedindo assim que aceitem verdades absolutas. A curiosidade e o ceticismo são os elementos norteadores que movem todo cientista. Assim, quanto mais forte esse sentimento estiver impregnado na sociedade mais pessoas estarão dispostas a fazer ciência.

Esse processo se passa pela universalização do ensino público de qualidade e o investimento na formação de professores. Além disso, há uma necessidade de disponibilizar para as escolas laboratórios, telescópios e recursos para saída de campos. Afinal a realidade é extremamente fascinante e ela não cabe em um quadro de uma sala de aula.  Isso criará as condições para que jovens de origens mais modestas possam sonhar em ser astrônomos, geneticistas, zoólogos, químicos, etc.

Mas queremos uma sociedade onde todos sejam cientistas? Óbvio que não. Precisamos de operários, artistas, filósofos, admiradores, etc. Porém, a alfabetização científica deve se estender a todos. Isso porque uma população que compreende a ciência apresenta a tendência de buscar saída aos problemas de forma racional ao invés a saídas mágicas.

Um indivíduo com noções de anatomia e fisiologia em medicina moderna, em regra, optará por buscar ajuda médica para curar uma doença, ao invés de um pastor/curandeiro. E por confiar na medicina moderna irá apoiar de forma sistemática cada medida que o governo tomar que possibilite avanços na pesquisa médica.

No entanto, hoje milhares de pessoas em todo mundo apostam todas suas fichas na busca da cura em templos religiosos. O recente caso do apresentador Marcelo Rezende que abandonou o tratamento contra o câncer, pois segundo ele buscaria a cura por uma via divina e que veio a óbito meses depois é uma expressão categórica desse fenômeno. Essas pessoas não veem o avanço da ciência como uma necessidade, pois a saída se dará por uma via espiritual e não material.

Além disso, pessoas alfabetizadas cientificamente saberão que a eficiência de medicamentos é medida pela evidência das pesquisas científicas cujos resultados  são publicados em revistas científicas importantes.

Por exemplo, no ano passado foi aprovado pelos deputados brasileiros a liberação do uso da Fosfoetanolamina, divulgado por seus criadores como um medicamento capaz de curar o câncer. No entanto, essa substância não passou por nenhum teste que comprovasse sua eficácia. Mas como a distribuição de uma substância sem comprovação de eficácia teve seu uso autorizado?

Essa aprovação foi resultado de uma campanha sistemática encabeçada por figuras como Bolsonaro² e o “Ratinho”³ que só teve eco devido a ignorância científica da população. Ao invés de pressionarmos o governo para aumentar os investimentos na pesquisa contra o câncer, lutamos ferozmente para distribuir substâncias que não tinham nenhuma utilidade para combater a doença.

As pesquisas científicas vão além de buscar uma aplicação prática imediata. Uma grande parte das pesquisas realizadas hoje busca, em primeiro lugar, responder a uma série de perguntas sobre como as coisas funcionam. Esse tipo de pesquisa é conhecido como ciência de base. Quando mandamos um telescópio para o espaço, construímos um colisor de partículas ou um detector de ondas gravitacionais, não esperamos aplicação imediata. Um biólogo que vai a campo observar o comportamento das formigas, não espera que aquela observação produza um benefício imediato para a humanidade.

Bem, mas por que financiar projetos como esses que tem como único objetivo “saciar” a curiosidade de algumas mentes? Uma resposta curta seria que aprender nos torna vivos. No entanto, tenho clareza de que essa resposta convenceria poucas pessoas, principalmente as que não se interessam por ciências.

A grande questão é: Responder perguntas mesmo que não tenham como objetivo principal buscar uma aplicação prática é a tentativa permanente de entender o universo do micro ao macro.  Essa é a principal mola propulsora da ciência aplicada. Nesse sentido, Carl Sagan, no livro “O Mundo Assombrado por Demônios”, escreve uma série de situações em que esse processo ocorreu:

“Maxwell não estava pensando no rádio, no radar e na televisão quando rabiscou as equações fundamentais do eletromagnetismo.  Newton nem sonhava com voos espaciais ou satélites de comunicações quando compreendeu pela primeira vez o movimento da Lua; Roentgen não cogitava um diagnóstico médico quando investigou uma radiação penetrante tão misteriosa que ele a chamou de raio X; Curie não pensava na terapia do câncer quando extraiu a duras penas quantidades diminutas de rádio do meio de toneladas de uranita; Fleming não planejava salvar as vidas de milhares de pessoas com antibióticos quando observou um círculo sem bactérias ao redor de uma formação de mofo; Watson e Crick não imaginavam a cura de doenças genéticas quando tentavam decifrar a difratometria dos raios X do DNA; Rowland e Molina não planejavam implicar os CFCs na diminuição da camada de ozônio quando começaram a estudar o papel dos halogêneos na fotoquímica estratosférica”.

A ciência de base é fundamental; no entanto, a ignorância científica cria um ambiente hostil à ela. Isso se deve porque, em geral, esse tipo de pesquisa pouco compreendida pela população depende essencialmente orçamento público. Se a população não entender qual a utilidade dessa pesquisa ela não irá, de forma alguma, se contrapor aos cortes em investimentos destinados a ciência, pois afinal ela não serve “para nada”.

Um exemplo claro são os sucessivos cortes nos investimentos destinados às pesquisas científicas no Brasil aplicados pelo governo Temer. Após a extinção do Ministério da Ciência, tivemos um corte de 44% do orçamento destinado a Ciência em 2017 e a perspectiva para 2018 é um corte de 15%⁴. Nesse cenário de profundo retrocesso na ciência brasileira, a única resposta que temos é uma completa apatia da população.

No entanto, é preciso ressaltar que, quando discutimos que temos uma população ignorante cientificamente, em nenhum momento podemos culpá-la dessa situação.  Diferentemente do fundamentalismo religioso, que disputa a consciência da sociedade para ganhá-la para sua visão de mundo, uma grande parte da comunidade científica tem uma postura principal de completo ostracismo, ou seja, isolada em seus laboratórios e alheias aos debates políticos e sociais.

Essa visão, aos poucos, vem sendo mudada, mas ainda é insuficiente. Isso porque a popularização da ciência deve ser uma tarefa do conjunto da comunidade científica, seja ministrando cursos para leigos, seja escrevendo para veículos de comunicação de massa, vídeos para o YouTube etc. Não queremos que toda população se torne cientista, mas queremos alfabetizar cientificamente o conjunto da população. Nesse sentido é preciso divulgar ciência.

Obviamente falar para nós mesmos é muito mais fácil do que explicar ciência para o grande público. É muito mais confortável falar de grandes temas científicos para apenas um punhado de pessoas que entendem do tema do que explicar com paciência e didática esses assuntos, por cuja discussão somos apaixonados, a um ouvinte não está familiarizado.

Por mais que a divulgação científica pareça desconfortável para alguns (e alguns cientistas tenham mais dificuldade), ela não só é o mecanismo capaz de fazer a Ciência avançar, mas também de impedir que seja destruída pela ignorância impulsionada por setores conservadores da sociedade.

É preciso que um operário, motorista e camponês saibam temas gerais sobre assuntos científicos. Entendam de evolução, de aquecimento global, como as vacinas funcionam e por que o universo está em expansão. É necessário tirar a roupagem extravagante da ciência e torná-la mais acessível.  Assim, da mesma forma que temos pessoas que nunca jogaram futebol, mas discutem sobre o tema com a mais profunda paixão, por que não podemos ter pessoas que não são cientistas, mas que debatem sobre o tema com grande entusiasmo?

Dessa forma, a democratização do conhecimento científico é um antídoto contra o charlatanismo religioso e um combustível para o progresso da humanidade.

Referências

  1. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-08/ibge-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumentou-mais-de-75-anos-em-11
  2. https://www.youtube.com/watch?v=KirwHIGzeOk
  3. https://www.youtube.com/watch?v=IzAawiZ6_tA
  4. https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/ganhadores-do-nobel-enviam-carta-a-michel-temer-com-preocupacoes-com-cortes-na-ciencia.ghtml
Lucas Sena

Lucas Sena

Mestre e doutorando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).