Karl Popper (1977)[1]
I – A seleção natural de Darwin versus a teologia natural de Paley
A primeira edição de A Origem das Espécies, de Darwin, foi publicada em 1859. Na resposta a uma carta de John Lubbock, que lhe agradecera por um exemplar antecipado do livro, Darwin fez um comentário notável sobre a Teologia natural de William Paley, que fora publicada meio século antes. Escreveu: “Raras vezes admirei tanto um livro quanto a Teologia natural de Paley. Houve época em que quase cheguei a recitá-lo do cor”. Anos depois, em sua autobiografia[2], Darwin escreveu que “O estudo criterioso dos livros [de Paley][…] foi a única parte do curso acadêmico [em Cambridge] que […] teve serventia na educação da minha mente.”
Comecei com essas citações por que o problema enunciado por Paley tornou-se um dos mais importantes pra Darwin. Foi o problema do projeto.
O famoso argumento do projeto, em prol da existência de Deus, esteve no centro do teísmo de Paley. Ao deparar com um relógio, dizia, você não duvidará que foi projetado por um relojoeiro. Pelo mesmo motivo, concluirá que um organismo superior, com seus intricados e apropriados órgãos, como os olhos, deve ter sido projetado por um criador inteligente. Eis o argumento de Paley, baseado na ideia de projeto. Antes de Darwin, na Universidade de Cambridge e em outros lugares, muito dos melhores cientistas aceitavam a criação especial: cada espécie tinha sido concebida pelo Criador. Havia, é claro, teorias alternativas como a de Lamarck. Hume já havia atacado sem muito vigor o argumento do projeto, mas nessa época a teoria de Paley era a mais seriamente considerada pelos cientistas.
Esse ambiente mudou de modo quase inacreditável depois da publicação, em 1859, de A Origem das espécies. Um argumento que não tinha reputação na ciência deu lugar a um imenso número de resultados científicos impressionantes e bem verificados. Toda a nossa visão, a nossa imagem do universo, alterou-se como nunca havia acontecido.
Darwin demoliu o argumento do projeto, formulado por Paley, ao mostrar que o que parecia ser uma intenção deliberada também podia ser resultado do acaso e da seleção natural. Ele mantinha correspondência sobre o projeto divino com Asa Gray, de Harvard, e assim lhe escreveu, um ano depois de A Origem das espécies. “Sobre o Projeto. Tenho consciência de que estou numa confusão irremediável. Não posso pensar que o mundo, tal como o vemos, resulte do acaso, mas não posso considerar que cada coisa, isoladamente, resulte do Projeto.” Um ano depois, escreveu novamente para Gray: “Com respeito ao Projeto, inclino-me mais a levantar a bandeira branca do que disparar […] [um] tiro. […] Você disse que está imerso em uma névoa, eu estou num lamaçal espeço; […] mas não consigo deixar de lado essa questão.
Parece-me que a questão não está ao alcance da ciência. Não obstante, sobre o universo em evolução, creio que a ciência nos ensinou muitas coisas que se relacionam de forma interessante com o problema do projeto criador, de Paley e de Darwin.
Creio que a ciência nos sugere (provisoriamente, é claro) a imagem de um universo inventivo ou até criativo, no qual emergem coisas novas em novos níveis.
No primeiro nível temos o surgimento dos núcleos atômicos pesados no centro das grandes estrelas, e, num nível superior, temos indícios do surgimento de moléculas orgânicas em algum lugar do espaço.
No nível seguinte, temos o surgimento da vida. Mesmo que um dia a origem da vida se torne reprodutível em laboratório, a vida cria algo novíssimo no universo: a atividade peculiar de organismos, em especial os atos propositais e a solução de problemas pelos animais. Todos os organismos solucionam problemas constantemente, mesmo que não tenham consciência da maioria dos problemas que tentam resolver.
No nível subsequente, o grande passo é o surgimento de estados conscientes. Com a distinção entre estados conscientes e estados inconscientes, mais uma vez entra no universo algo novíssimo e da maior importância. Trata-se de um novo mundo: o mundo da experiência consciente.
No nível seguinte, surgem os produtos da mente humana, como as obras de arte e da ciência, em especial as teorias científicas.
Creio que os cientistas, por mais céticos que sejam, estão fadados a admitir que o universo – ou a natureza, não importa o nome que se use – é criativo. Pois ele produziu homens criativos: produziu Shakespeare, Michelangelo e Mozart, e portanto, indiretamente, produziu suas obras. Produziu Darwin e com isso criou a teoria da seleção natural. A seleção natural destruiu a prova da intervenção milagrosa específica do Criador. Mas no deixou a maravilha da criatividade do Universo, da Vida e da Mente Humana. Embora a ciência nada tenha a dizer sobre um Criador pessoal, dificilmente se pode negar o surgimento da novidade e a criatividade. Creio que o próprio Darwin, que não conseguia “deixar de lado essa questão”, concordaria com o seguinte: embora a seleção natural tenha aberto um novo mundo para a ciência, ela não retirou do quadro do universo pintado pela ciência a maravilha da criatividade, assim como não retirou a maravilha da liberdade – a liberdade de criar – nem a liberdade de escolhermos nossos fins e nossos objetivos.
II – A seleção natural e seu status científico
Ao falar aqui de darwinismo, falarei sempre da teoria atual, isto é, da teoria da seleção natural de Darwin corroborada pela teoria mendeliana da hereditariedade, pela teoria da mutação e recombinação de genes num conjunto genético e pela decodificação do código genético. É uma teoria imponente e poderosa. A afirmação de que ela explica interinamente a evolução é ousada, é claro, e está muito longe de ter sido estabelecida. Todas as teorias científicas são conjecturas, inclusive as que foram aprovadas em testes severos e diversificados. A sustentação mendeliana ao darwinismo moderno foi bem testada, assim como a teoria que diz que todas as formas de vida na Terra evoluíram de um punhado de organismos unicelulares primitivos, possivelmente de um único organismo.
Todavia, é difícil testar a contribuição mais importante de Darwin para a teoria da evolução, ou seja, a teoria da seleção natural. Existem alguns testes, até testes experimentais, e em alguns casos, como no famoso fenômeno conhecido como “melanismo industrial”, podemos observar a seleção natural ocorrendo bem diante dos nossos olhos, por assim dizer. Entretanto, é muito mais difícil encontrar testes rigorosos da teoria da seleção natural do que testes de teorias comparáveis da física e da química.
A dificuldade de testar a teoria da seleção natural levou algumas pessoas, antidarwinistas, e até alguns grandes darwinistas, a afirmar que ela é uma tautologia. Uma tautologia – como “todas as mesas são mesas” – não é testável e não tem qualquer poder explicativo. Por isso, é surpreendente que alguns dos maiores darwinistas contemporâneos formularam a teoria de modo que ela se reduz a uma tautologia: os organismos que tem mais descendentes deixam mais descendentes. C.H Waddington diz, em algum lugar (e defende esse ponto de vista em outros), que a “seleção natural […] vem a ser uma tautologia”[3]. No mesmo lugar, porém, ele atribui à teoria um “enorme poder […] explicativo”. Como o poder explicativo de uma tautologia é nulo, é óbvio que deve haver algo errado aí.
É possível encontrar passagens similares na obra de grandes darwinistas como Ronald Fisher, J.B.S. Haldane e George Gaylord Simpson, entre outros.
Menciono esse problema por que me incluo entre os culpados. Influenciado pelo que diziam essas autoridades, descrevi a teoria, no passado, como “quase tautológica”. Tentei explicar por que a teoria da seleção natural não podia ser testada (como outras tautologias) e, ainda assim, mantinha interesse científico. Minha solução era que a doutrina da seleção natural era um programa metafísico de pesquisas extremamente bem sucedido. Levantava problema detalhado em muitos campos e nos dizia que deveríamos esperar uma solução aceitável desses problemas.
Ainda creio que a seleção natural funciona dessa maneira, como um projeto de pesquisas, mas mudei de ideia quanto à testabilidade e ao status lógico dessa teoria[4]. Alegra-me ter a oportunidade de fazer uma retratação. Espero que ela possa contribuir um pouco para compreendermos o status da seleção natural.
O importante é perceber a tarefa explicativa que ela exerce e, em particular, reconhecer o que pode ser explicado sem a teoria da seleção natural.
Podemos começar pela observação de que, para populações suficientemente pequenas e que se reproduzem isoladamente, a teoria mendeliana dos genes e a teoria da mutação e recombinação, juntas, são suficientes para prever, sem a seleção natural, aquilo que se chamou “deriva genética”. Se isolarmos um pequeno número de indivíduos da população principal e impedirmos sua hibridização com o restante da população, a distribuição de genes no conjunto genético da nova população, diferirá um pouco da existente na população original. Isso acontecerá mesmo na ausência das pressões da seleção.
Moritz Wagner, contemporâneo de Darwin e, é claro, pré-mendeliano, estava ciente dessa situação. Assim, introduziu a teoria da evolução por deriva genética, possibilitada pelo isolamento reprodutivo causado pela separação geográfica.
Para compreender a tarefa da seleção natural, é bom lembrar a resposta de Darwin a Wagner. Sua principal objeção foi: na ausência de seleção natural não se pode explicar a evolução de órgãos aparentemente projetados, como o olho. Em outras palavras, sem a seleção natural não se pode resolver o problema de Paley.
Em sua formulação mais ousada e abrangente, a teoria poderia dizer que todos os organismos, e em especial, todos os órgãos muito complexos cuja a existência poderia ser interpretada como prova de um projeto, e , além disso, todas as formas de comportamento animal evoluíram como resultado da seleção natural, isto é, de variações herdáveis ao acaso, das quais as inúteis são eliminadas e apenas as úteis permanecem. Formulada dessa maneira abrangente, a teoria não é apenas refutável, mas efetivamente refutada[5]. Pois nem todos os órgãos servem a um propósito útil: como o próprio Darwin assinalou, há órgãos (como a cauda do pavão) e programas comportamentais (como a exibição da cauda do pavão) que não podem ser explicados pela utilidade e, por conseguinte, não decorrem da seleção natural. Darwin os explicou pela preferência do sexo oposto, ou seja, pela seleção sexual. É claro que é possível contornar essa refutação por meio de uma manobra verbal: pode-se contornar qualquer refutação de qualquer teoria. Mas nesse caso, chega-se realmente perto de tornar tautológica a teoria. Parece preferível admitir que nem tudo que evolui é útil, embora seja espantoso o número de coisas úteis. E, ao conjecturarmos sobre a serventia de um órgão ou de um padrão comportamental, conjecturamos sobre uma possível explicação pela seleção natural: sobre o porquê de ele ter evoluído como evoluiu e, quem sabe, até sobre como evoluiu. Em outras palavras, como tantas teorias da biologia, a evolução por seleção natural não me parece rigorosamente universal, embora pareça aplicar-se a um vasto número de casos importantes.
Segundo a teoria de Darwin, pressões seletivas suficientemente invariantes podem transformar a deriva genética, que de outro modo seria aleatória, numa deriva aparentemente dirigida por um propósito. Desse modo, as pressões da seleção, se existirem, deixarão sua marca no material genético. (Mas é possível mencionar que existem pressões da seleção capazes de operar com êxito durante períodos muito curtos: uma epidemia grave pode deixar vivos apenas os que forem geneticamente imunes.)
Posso fazer um breve resumo do que falei até aqui sobre a teoria darwiniana da seleção natural.
A teoria pode ser formulada de tal modo que fique longe de ser tautológica. Nesse caso, ela não é apenas testável, como também revela não ser verdadeira em termos estritamente universais. Parece haver exceções como ocorre com tantas teorias biológicas; considerando o caráter aleatório das variações em que a seleção natural se baseia, a ocorrência das exceções não chega a surpreender. Nem todos os fenômenos da evolução se explicam somente pela seleção natural. Em cada caso, todavia, mostrar até que ponto a seleção natural pode ser responsabilizada pela evolução de um órgão ou de um padrão comportamental é um projeto instigante de pesquisa.
É de considerável interesse que se possa generalizar a ideia de seleção natural. Nesse contexto, é proveitoso discutir a relação entre seleção e instrução. Enquanto a teoria de Darwin é selecionista, a teoria teísta de Paley é instucionista. É o Criador que, com seu projeto, modela a matéria e instrui sobre a forma que deve tomar. Portanto, a teoria selecionista de Darwin pode ser vista como uma teoria que explica pela seleção algo que se assemelha à instrução. Algumas características invariantes do ambiente deixam sua marca no material genético, como se o tivessem moldado, quando na verdade o selecionaram.
Muitos anos atrás, visitei Bertrand Russell no Trinity College e ele me mostrou um manuscrito seu, no qual havia uma só correção ao longo de muitas páginas. Com a caneta, ele havia “dado instruções” ao papel. Isso é muito diferente do que faço. Meus manuscritos estão repletos de correções – tantas que é possível perceber que trabalho por uma espécie de ensaio e erro, mediante oscilações mais ou menos ao acaso, entre as quais escolho o que me parece mais conveniente. Podemos indagar se Russell não fazia algo parecido, ainda que só mentalmente, talvez de forma não consciente e, de qualquer modo, muito depressa. Com efeito, o que parece ser instrução baseia-se, com frequência, num mecanismo indireto de seleção, conforme foi esclarecido pela resposta de Darwin ao problema levantado por Paley.
Sugiro a conjectura que algo parecido acontece em muitos casos. Podemos conjecturar que Bertrand Russell produziu tantas formulações experimentais quanto eu, mas sua mente trabalhou mais depressa que a minha na testagem delas e na rejeição dos candidatos verbais inadequados. Einstein disse, em algum lugar, que produziu e rejeitou um número imenso de hipóteses antes de encontrar (e inicialmente rejeitar) as equações da relatividade geral. Claramente, o método de produção e rejeição é do tipo que opera com retroalimentação negativa [negative feedback].
Um dos pontos importantes desse método indireto de seleção é que ele esclarece o problema da causação descendente [downward causation], para o qual Donald Campbell e Roger Sperry chamaram atenção[6].
Podemos falar em causação descendente sempre que uma estrutura superior atua casualmente sobre sua subestrutura. Eis a dificuldade de compreender essa causação. Pensamos que podemos entender como funcionam as subestruturas de um sistema de forma a afetá-lo como um todo, ou seja, acreditamos que compreendemos a causação ascendente. Mas é muito difícil imaginar o inverso, pois um grupo de subestruturas parece interagir sempre de modo causal, sem que haja espaço ou abertura para uma interferência vinda de cima. É isso que leva à exigência heurística de que expliquemos tudo em termos de partículas moleculares ou outras partículas elementares (exigência que às vezes chamamos de “reducionismo”).
Sugiro que a causação descendente pode ser explicada, pelo menos algumas vezes, como uma seleção que age sobre as partículas elementares que flutuam ao acaso. A aleatoriedade dos movimentos das partículas elementares – amiúde chamada de “caos molecular” – proporciona uma espécie de abertura para a interferência da estrutura de nível superior. Um movimento aleatório é aceito quando se enquadra na estrutura de nível superior; caso contrário, é rejeitado.
Creio que estas considerações nos dizem muito sobre a seleção natural. Enquanto Darwin ainda se preocupava por não conseguir explicar a variação e se sentia constrangido por ser obrigado a encará-la como aleatória, hoje vemos que o caráter aleatório das mutações, que talvez remonte à indeterminação quântica, explica como as invariâncias abstratas do ambiente, as pressões um tanto abstratas da seleção podem, mediante a seleção, exercer um efeito “de cima para baixo” sobre o organismo vivo concreto – um efeito que pode ser ampliado por uma longa sequência de gerações ligadas pela hereditariedade.
A seleção de um tipo de comportamento num repertório aleatoriamente oferecido pode ser um ato de escolha, até um ato de livre-arbítrio. Sou indeterminista e, ao discutir indeterminismo, lamentavelmente assinalei, muitas vezes, que a indeterminação quântica não parece nos ajudar, pois a amplificação de algo como os processos de desintegração radioativa, digamos, não levaria à ação humana ou sequer à ação animal, mas apenas a movimentos ao acaso. Mudei de ideia a esse respeito[7]. Um processo de escolha pode ser um processo de seleção, e a seleção pode ocorrer a partir de um repertório de eventos ao acaso, sem que ela mesma seja aleatória. Isso me parece oferecer uma solução promissora para um de nossos problemas mais árduos, uma solução por causação descendente.
Notas
[1] Transcrito da coletânea “Textos escolhidos”, organizada por David Miller, Ed. Contraponto e Ed. Puc-RJ, 1ªE., 2010.
[2]Edição brasileira: Charles Darwin, Autobiografia (1809-1882). Rio de Janeiro, Contraponto, 2000.
[3]Ver pg. 385 de C.H. Waddington, “Evolutionary Adaptation”, epg 381 – 402 de S. Tax (org.), Evolution After Darwin, v.I, 1960.
[4]O negrito é do transcritor.
[5] O negrito e itálico é do transcritor.
[6] Ver D. T. Campbell, “Downward Causation’ in Hierarchically Organized Biological Systems”, p. 179-186 de F. J. Ayalla e T. Dobzhansky (orgs.), Studies in the Philosophy of Biology, 1974; R. W. Sperry, “A Modified Concept of Consciouness”, Psychological Review 76, 1969, p. 532-536, e “Lateral Specialization in the Surgically Separated Hemispheres”, p. 5-19 de F.O. Schmitt e F.G. Worden (orgs.), The Neurosciences: Third Study Programme, 1973.
[7] Ver também diálogo X de The Self and Its Brain [Ed. Bras: O eu e seu cérebro. Campinas: Papirus, 1995.