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Não há pensamento consciente

Publicado em Scientific American
Autor: Steve Aya
Traduzido por Elan Marinho

Peter Carruthers, notável professor universitário de filosofia na Universidade de Maryland em College Park, é um especialista em filosofia da mente, que possui forte interesse em psicologia empírica e em neurociência cognitiva. Ele delineou muitas de suas ideias sobre o pensamento consciente em seu livro The Centered Mind: What the Science of Working Memory Shows Us about the Nature of Human Thought, de 2015. Mais recentemente, em 2017, ele publicou um paper com o assombroso título de “A Ilusão do Pensamento Consciente” [The Illusion of Conscious Thought]. No seguinte trecho da conversa, Carruthers explica ao editor Steve Ayan as razões para sua proposta provocativa.

O que faz você pensar que o pensamento consciente é uma ilusão?

Eu acredito que toda a ideia de pensamento consciente é um erro. Eu cheguei a essa conclusão seguindo as implicações de duas das principais teorias da consciência. A primeira é a chamada Teoria do Espaço de Trabalho Global, que é associada aos neurocientistas Stanislas Dehaene e Bernard Baars. A teoria deles afirma que, para que um estado mental seja considerado consciente, ele deve estar em meio aos conteúdos da memória de trabalho (a “interface de usuário” de nossas mentes) e, portanto, estar disponível para outras funções mentais, tais com a tomada de decisão e a verbalização. Por conseguinte, os estados conscientes são aqueles que são “transmitidos globalmente”, digamos. A visão alternativa, proposta por Michael Graziano, David Rosenthal e outros, assevera que os estados mentais conscientes são simplesmente aqueles dos quais você têm conhecimento, de que está diretamente ciente de maneira que não requer que você interprete a si mesmo. Você não tem que ler sua própria mente para conhecê-los. Agora, qualquer que seja a perspectiva que você adote, decorre que pensamentos tais como decisões e julgamentos não deveriam ser considerados como sendo conscientes. Eles não são acessíveis em memória de trabalho, sequer estamos diretamente cientes deles. Nós meramente temos o que eu chamo de “a ilusão do imediatismo” – a falsa impressão de que conhecemos nossos pensamentos diretamente.

Podemos facilmente concordar que a fonte dos próprios pensamentos está oculta da nossa visão – apenas não conhecemos de onde nossas ideias vieram. Mas, uma vez que nós as temos e as conhecemos, é aí onde a consciência começa. Nós não temos pensamentos conscientes pelo menos nesse sentido?

Na vida cotidiana, estamos bastante dispostos a dizer coisas como “Oh, eu acabei de ter um pensamento” ou “Eu estive pensando comigo mesmo”. Por isso, nós normalmente damos significado às ocorrências de fala interior ou às imagens visuais que estão no centro de nosso fluxo de consciência – as sucessões de palavras e de conteúdos visuais representados em nossas mentes. Eu acredito que essas sucessões são de fato conscientes. Na neurofilosofia, entretanto, nos referimos ao “pensamento” em um sentido mais específico. Nessa perspectiva, pensamentos incluem apenas atitudes mentais não-sensoriais, tais como julgamentos, decisões, intenções e objetivos. Esses são eventos amodais e abstratos, o que significa que eles não são experiências sensoriais e que não estão ligados às experiências sensoriais. Tais pensamentos nunca aparecem em memória de trabalho. Eles nunca vêm a ser conscientes. E apenas os conhecemos por interpretação do que vem a ser consciente, como as imagens visuais e as palavras que nós mesmos ouvimos dizer em nossas cabeças.

Então, a consciências sempre tem uma base sensorial?

Eu diria que a consciência é sempre restrita a uma modalidade sensorial, que há inevitavelmente algum aspecto auditivo, visual ou tátil envolvido. Todos os tipos de imagem mental, tais como a fala interior ou a memória visual, podem, é claro, ser conscientes. Vemos coisas com os olhos da mente; ouvimos nossa voz interior. Aquilo de que temos consciência são os conteúdos de base sensorial presentes na memória de trabalho.

Na sua visão, a consciência [consciousness] é diferente de ciência [awareness]?*

Essa é uma questão difícil. Alguns filósofos acreditam que a consciência [consciousness] pode ser mais rica do que o que na verdade nós podemos relatar. Por exemplo, nosso campo visual parece ser repleto de detalhes – tudo está ali, já visto conscientemente. Contudo, experimentos em percepção visual, especialmente do fenômeno da cegueira por desatenção, mostram que de fato nós registramos conscientemente uma fatia muito limitada do mundo [Nota do editor: Uma pessoa experienciando a cegueira por desatenção pode não se dar conta de um gorila atravessando uma quadra de basquete enquanto ela estiver focada no movimento da bola]. Então, o que pensamos que vemos, nossa impressão subjetiva, é diferente daquilo de que realmente estamos cientes [aware]. Provavelmente, nossa mente consciente apreende somente o âmago de muito daquilo que está por aí no mundo, um tipo de sumário estatístico. É claro que, para a maior parte das pessoas, a consciência [consciousness] e a ciência [awareness] coincidem na maior parte do tempo. Ainda assim, penso eu, não estamos diretamente cientes [aware] dos nossos pensamentos. Da mesma maneira, não somos diretamente cientes [aware] dos pensamentos de outras pessoas. Interpretamos nossos próprios estados mentais muito semelhantemente à maneira com que interpretamos a mente das outras pessoas, exceto pelo fato de que podemos, no nosso próprio caso, utilizar como dados nossas próprias imagens visuais e a fala interior.

Você chama o processo de como as pessoas aprendem seus próprios pensamentos de acesso sensorial interpretativo [interpretive sensory access], ou ISA. Onde que a interpretação entra em jogo?

Tomemos nossa conversa como exemplo – você está realmente ciente do que eu estou dizendo a você nesse exato momento. Mas o trabalho interpretativo e as inferências que são a base de sua compreensão não são acessíveis a você. Todas as inferências altamente automáticas e rápidas que formam a base da sua compreensão das minhas palavras permanecem ocultas. Você parece apenas ouvir o significado do que eu digo. Aquilo que surge na superfície da sua mente são os resultados desses processos mentais. É isso que eu quero dizer: As inferências em si, o funcionamento real de nossa mente, permanecem inconscientes. Tudo aquilo de que nós estamos cientes são os seus produtos. E o meu acesso à sua mente, quando eu ouço você falar, não é fundamentalmente diferente do meu acesso à minha própria mente quando eu percebo minha própria fala interior. Os mesmos tipos de processos interpretativos ainda precisam acontecer.

Por que, então, nós temos a impressão de acesso direto às nossas mentes?

A ideia de que as mentes são transparentes para si mesmas (de que todos têm ciência direta de seus próprios pensamentos) é construída em meio à estrutura de nossa “leitura mental” ou na aptidão para “teoria da mente”, eu sugiro. A suposição é uma heurística útil quando utilizada para interpretar as declarações dos outros. Se alguém diz para mim “eu quero ajudar você”, eu tenho que interpretar se a pessoa está sendo sincera ou se ela está falando literalmente ou ironicamente, e assim por diante; isso é bastante difícil. Se eu também tivesse que interpretar se ela está interpretando seu próprio estado mental corretamente, então isso tornaria minha tarefa impossível. É mais simples assumir que ela conhece sua própria mente (como, geralmente, conhece). A ilusão do imediatismo tem a vantagem de nos habilitar a entender os outros em velocidade muito maior e, provavelmente, com pouca ou nenhuma perda de confiabilidade. Se eu tivesse que descobrir até que ponto os outros são intérpretes confiáveis de si mesmos, isso tornaria as coisas muito mais complicadas e lentas. Seria necessário muitíssimo mais energia e trabalho interpretativo para entender as intenções e estados mentais dos outros. E então é essa mesma suposição heurística de transparência da mente que faz meus pensamentos parecerem transparentemente disponíveis para mim.

Qual é a base empírica de sua hipótese?

Existe uma ampla evidência experimental de que sujeitos normais, especialmente de boa vontade para falsificar, embora não intencionalmente, fabricam fatos ou memórias para preencher as que foram perdidas. Além disso, se a introspecção fosse fundamentalmente diferente da leitura de outras mentes, seria esperado que houvessem desordens nas quais a primeira capacidade fosse danificada, mas não a última. Mas não é isso o que nós encontramos. A desordem do espectro autista, por exemplo, não é apenas associada ao acesso limitado aos pensamentos dos outros, mas também é associada à compreensão restrita de si mesmo. Em pacientes com esquizofrenia, o discernimento tanto da própria mente quanto da de outros é distorcido. Parece haver apenas um mecanismo de leitura da mente, do qual dependemos tanto internamente quanto nas nossas relações sociais.

Qual é o efeito colateral da ilusão de imediatismo?

O preço que pagamos é acreditar subjetivamente que somos possuidores de uma seguridade maior sobre as nossas atitudes do que aquela que de fato possuímos. Acreditamos que se estamos em um estado mental X, isso é o mesmo que ser nesse estado. Tão logo que eu acredito que eu estou com fome, eu estou. Uma vez que acredito que estou feliz, eu estou. Mas esse não é realmente o caso. É um truque da mente que nos faz igualar o ato de pensar que se tem um pensamento ao próprio pensamento.

Qual pode ser a alternativa? O que devemos fazer quanto a isso, considerando que podemos fazer algo?

Bem, na teoria, nós poderíamos distinguir entre um estado de experiência em si por um lado e, por outro lado, nosso julgamento ou crença subjacente a essa experiência. Existem raros casos de quando nós conseguimos fazê-lo: por exemplo, quando eu sinto nervosismo ou irritação mas de repente me dou conta de que eu estou, na verdade, com fome e preciso comer.

Você quer dizer que uma maneira mais apropriada de avaliar isso seria: “Eu penso que estou com fome, mas eu talvez não esteja”?

Essa seria uma maneira de dizer isso. É assombrosamente difícil manter essa espécie de visão distanciada de si mesmo. Mesmo depois de muitos anos de estudo de consciência, eu ainda não faço isso muito bem (risos).

Os pesquisadores do cérebro colocam muito empenho na descoberta de correlatos neurais da consciência, os CNC. Esse esforço será bem-sucedido?

Eu acho que já sabemos muito sobre como e onde a memória de trabalho é representada no cérebro. Nossos conceitos filosóficos do que a consciência é estão muito mais informados de trabalho empírico do que estariam poucas décadas atrás. Se já podemos fechar a lacuna entre as experiências subjetivas e os processos neurofisiológicos que as produzem é ainda uma questão controversa.

Você concordaria que estamos muito mais inconscientes do que pensamos que estamos?

Eu preferiria dizer que a consciência não é o que nós geralmente pensamos que é. Ela não é a ciência direta do nosso mundo interior de pensamentos e de julgamentos, mas sim um processo altamente inferencial que apenas nos dá impressão de imediatismo.

Onde isso nos deixa em relação ao conceito de livre-arbítrio e de responsabilidade?

Ainda podemos ter livre-arbítrio e sermos responsáveis por nossas ações. A consciência e a inconsciência não são esferas separadas; elas operam em parceria. Nós não somos fantoches manipuladas por nossos pensamentos inconscientes, porque obviamente a reflexão consciente tem efeitos sobre o nosso comportamento. Ela interage com e é alimentada por processos implícitos. No fim das contas, ser livre significa agir de acordo com nossas próprias razões – sejam elas conscientes ou não.

Uma Breve Explicação da Consciência

A consciência é geralmente entendida como significando que um indivíduo não apenas tem ideias, rememoração ou percepção, mas que também sabe que ele ou ela as tem. Para a percepção, esse conhecimento abrange tanto a experiência do mundo externo (“está chovendo”) quanto o estado interno de alguém (“estou com raiva”). Os especialistas não sabem como a consciência humana surge. Entretanto, eles geralmente concordam quanto a como definir os vários aspectos dela. Portanto, eles distinguem “consciência de fenômeno” (a sensação distinta de quando nós percebemos, por exemplo, que um objeto é vermelho) de “consciência de acesso” (quando podemos reportar um estado mental e usá-lo na tomada de decisão).

As características importantes da consciência incluem a subjetividade (a sensação de que um evento mental pertence a mim), continuidade (parecer ininterrupta) e a intencionalidade (direcionada a um objeto). De acordo com o esquema popular da consciência conhecido como Teoria do Espaço de Trabalho Global, um estado mental ou evento é consciente se uma pessoa pode trazê-lo à mente para realizar funções como a tomada de decisão e a rememoração, embora o modo como tal acesso ocorre não seja entendido com precisão. Os investigadores assumem que a consciência não é o produto de uma região singular do cérebro, mas de redes neurais maiores. Alguns teóricos chegam ao ponto de postular que ela nem sequer é produto de um cérebro individual. Por exemplo, o filósofo Alva Noë, da Universidade da California, em Berkeley, defende que a consciência não é o trabalho de um único órgão, mas sim que é mais como uma dança: um padrão de significado que emerge entre os cérebros. – S.A.

Nota de Tradução

*Em virtude dessa pergunta, eu procurei utilizar ao longo do texto “ciência” para “awareness” e “consciência” para “consciousness“. Desse modo, pude traçar uma diferenciação entre ambos e, ao mesmo tempo, fazer uma tradução mais natural para os cognatos de “awareness“.

Elan Marinho

Elan Marinho

Academicamente, entrei em filosofia em 2016. Desde então, desenvolvi uma pesquisa sobre como intuições funcionam. Nessa pesquisa, me baseio na filosofia analítica e nas ciências cognitivas. Também trabalho com divulgação de filosofia, sendo redator (2016-) do portal Universo Racionalista e produtor de conteúdo (2020-) para o Youtube no canal “Filosofia Acadêmica”.