Recentemente, o site brasileiro Mídia Sem Máscaras publicou um artigo com o título “Pai do transtorno de déficit de atenção se declara um mentiroso”. O artigo, publicado como de divulgação científica pelo site, é uma tradução de um outro em inglês, posto ao ar pelo grupo de comunicação WND, com o título Father of AHDH call himself a lier. Como o título do artigo sugere, o pesquisador e psiquiatra infantil alemão Leon Eisenberg, famoso por ter “descoberto” o Transtorno de Déficit de Atenção de HIpertatividade (TDAH), teria dito em uma entrevista – pouco antes de sua morte – que o “TDAH é o principal exemplo de uma doença fictícia”. Além disso, o texto acusa o pesquisador e a indústria farmacêutica de terem gerado um grande lucro com a venda de uma droga altamente prejudicial na intenção de medicar de uma doença que seria, na verdade, fictícia. Como diz o artigo:
“A indústria médica está utilizando o pretexto de ajudar crianças para despersonalizar nossos filhos e desconectá-los de uma criação saudável e normal. Pais estão expondo seus filhos a essas drogas e sujeitando-os ao que o mundo tem a oferecer, quando, na verdade, tudo o que essas crianças buscam é seus pais, na esperança de ser a bênção que Deus quer que eles sejam.
(…) Por que algum pai iria submeter seus filhos a drogas com efeitos colaterais tão perigosos? O Dr. Edward C. Hamlyn, membro fundador do Colégio Real de Clínicos Gerais da Grã-Bretanha, afirmou, em 1998, que ‘o TDAH é uma fraude cuja intenção é justificar a iniciação das crianças a uma vida de vício em drogas’.
O ‘déficit de atenção’ está na responsabilidade dos pais, não na criança. A Bíblia nos diz que o cabe aos pais ensinar ‘a criança no caminho em que deve andar, e, mesmo quando ela for idosa, não se desviará dele!’ (Provérbios 22:6 KJA), e não o contrário.”
Esse artigo me deixou bastante curioso, a ponto de ir pesquisar sobre tais alegações de Eisenberg. Eis que fiz certas descobertas interessantes sobre o assunto e apresentar-las-ei aqui criticamente. Em primeiro lugar, acerca do site que divulgou a notícia, farei três críticas importantes (cujo uma alguns leitores, talvez, não irão gostar).
Primeira crítica: Onde estão as fontes de referência? A única fonte que o site oferece é de onde esse texto todo saiu, visto que ele é apenas uma tradução. No texto original, também não aparecem as fontes de onde o Leon Eisenberg teria dito tais palavras.
Segunda crítica: O texto não tem conteúdo científico qualquer, e, mesmo taxado como de divulgação científica (que esperávamos que fosse), é irrelevante. Além disso, do ponto de vista informativo, é extremamente capcioso. O que esse texto deixa explicitamente claro é que o TDAH é culpa dos pais, usando, como estratégia argumentativa, a falácia da autoridade, ao citar a bíblia de modo a justificar suas alegações.
Terceira crítica: O site onde o texto foi publicado originalmente é da WND, uma corporação americana de informação abertamente conservadora. O próprio autor do texto, Bradlee Dean, é um pregador religioso. A posição, ao meu ver, de citar a bíblia e fazer um ataque aos pais é por motivos religiosos e políticos, sem qualquer justificativa científica.
Ao procurar a fonte da citação de Eisenberg, tive de vasculhar um pouco a internet. Achei, então, uma referência dela citação em inglês (e continha fonte!!!). Leon Eisenberg teria dito tais palavras em uma entrevista para o famoso jornal alemão Der Spiegel no ano de 2012. Ao encontrei a matéria, investiguei, minunciosamente, as passagens da entrevista. Com a ajuda do meu péssimo alemão e do Google Tradutor (além de um pouco de interpretação), a tradução da passagem principal é algo parecido com isso:
“Nunca teria pensado, ele disse, que sua invenção seria tão popular como é. ‘O TDAH é um excelente exemplo de uma doença fabricada’, disse Eisenberg. ‘A predisposição genética para o TDAH é completamente superestimada’.
Ao invés disso, o psiquiatra infantil deve investigar mais profundamente as razões psicossociais que podem levar a problemas de comportamento, segundo Eisenberg. Há brigas com os pais? A mãe e o pai vivem juntos? Há problemas na família? Tais questões são importantes, mas elas tomam muito tempo, ele cita, acrescentando com um suspiro: ‘Prescrever uma pílula, por outro lado, é mais rápido.'” (fonte: Der Spiegel)
Eisenberg não disse que o TDAH é “fictício” (no alemão, seria algo como fiktiv), mas sim que é “um excelente exemplo de doença fabricada”. Esse termo muda, radicalmente, os modos pelos quais podemos entender a passagem. O que ele, aparentemente, quer dizer com a passagem toda é que as fábricas estão abusando de uma doença para lucrar. Quando ele fala que a predisposição genética para o TDAH é superestimada, ele confirma a existência dessa predisposição, mas rejeita que ela ocorre em tantas pessoas.
O ponto principal da fala dele é atacar o modo como os psiquiatras infantis estão agindo, sem perceber que muito do déficit de atenção pode ser um reflexo do ambiente social da criança, não uma predisposição genética. Mas, como investigar tais relações psicossociais é mais demorado que apenas receitar um remédio, tais psiquiatras resolvem agir da pior forma: entupindo crianças biologicamente sadias com drogas que as tornam tanto biológica e psicologicamente degradadas.
Em conclusão, o que esses sites estão divulgando é falso. O pesquisador e psiquiatra alemão Leon Eisenberg nunca afirmou que o TDAH é invenção, tampouco se chamou de mentiroso. A frase, tal como divulgada, foi retirada do contexto da entrevista e divulgada de modo alardeado. O TDAH é uma doença real, com efeitos reais e com um tratamento real. O que Eisenberg ataca faz muito sentido, visto que há muita inadimplência por conta dos pais e psiquiatras infantis que usam medicamentos fortes como primeira – e não última – opção para tratar a hiperatividade e o déficit de atenção dos seus filhos e pacientes. No entanto, o TDAH tem predisposição genética e é uma doença que aflige muitas pessoas. E, infelizmente, ainda hoje, há preconceito contra pessoas com problemas psiquiátricos. Os portadores de TDAH não saem ilesos desses preconceitos e ainda sofrem com pessoas que consideram suas condições apenas como “vagabundagem” ou “preguiça”.