Um dos chamados correntes durante o desenvolvimento da pandemia atual, por COVID-19, é o de que esse é o melhor momento para se divulgar a crença na ciência, haja visto que no momento a aparelhagem científica nos fornece a melhor ferramenta para combater os piores danos que poderiam ser causados pelos efeitos da COVID-19. O chamado pela crença na ciência carrega um certo cientificismo local, exposto na rejeição das formas alternativas de produção de conhecimentos sobre a epidemia, como, por exemplo, uma rejeição a uma abordagem da medicina tradicional para a infeção por COVID-19 ou uma abordagem mística para o problema. Considerando que ao menos localmente, a posição cientificista seria justificada – e acreditamos que ela seja justificada – ainda sobra uma segunda questão a ser feita em relação a esse chamado: o que exatamente é acreditar na ciência? Em que tipo de coisa estaríamos acreditando?
Neste texto, eu pretendo defender, por meio do exame dos usos que os discursos sobre ciência fazem do termo que a resposta para a pergunta “O que significa acreditar na ciência?” depende de dois componentes, um social, em relação a como fazemos ciência, e um epistemológico, em relação ao que se alcança com a atividade científica. É pretenso, com esse texto, defender uma análise que rejeita a ideia de Value-free Science, mas que aceita a defesa de um certo caráter objetivo da pesquisa científica voltado a necessidade de “salvar o fenômeno” cientificamente descrito.
Três usos de “ciência”
Como dito acima, o chamado pela “crença na ciência” na situação atual carrega um cientificismo local. Colocando de forma mais clara, ao menos no que se refere às questões relacionadas à saúde e ao bem-estar físico-biológico, pressupõe-se que a ciência dispõe dos melhores métodos para a produção de conhecimento e a seleção de medidas que nos permitam elaborar meios de combater e prevenir infeções virais do tipo da infeção por SARS-CoV-2. Por outro lado, quando se pede para que as pessoas confiem ou acreditem na “ciência” não se deixa imediatamente claro o que é a “ciência” para qual se está requisitando crença.
Inicialmente, quando se busca fazer uma distinção entre usos do termo ciência, a primeira divisão necessária seria a distinção entre o uso moderno e clássico de “ciência”. O uso clássico do termo ciência, presente, por exemplo, na unidade teórica dos filósofos socráticos, em que “ciência” poderia ser entendido como todo corpo sistemático de saberes, ainda hoje é colocado como referencial quanto a um uso amplo do termo ciência. Esse uso, por outro lado, não é de forma alguma aquilo a que nos referimos quando dizemos que em um momento de crise como uma pandemia, é necessário ter “crença na ciência”. Os conhecimentos abarcados por essa terminologia são extremamente amplos, e poderiam incluir desde a filosofia, que tem certo papel epistêmico a ser desempenhado nesse tipo situação, mas não é aquilo que nos referimos quando falamos de crença na ciência, até saberes como a medicina tradicional e a astrologia, que pouco podem contribuir na gerência de uma crise pandêmica e são amplamente descartados como pseudocientíficos na contemporaneidade.
De qualquer maneira, os usos de “ciência” que poderiam ser interessantes para o chamado para que tenhamos “crença na ciência” recaem sobre os usos modernos do termo ciência. Os usos modernos do termo ciência se referem a uma certa entidade pós-galileiniana. Após Galileu, os usos do termo ciência assumiram um de três significados que decomporiam em si o somatório daquilo que entendemos como ciência; “ciência” como a comunidade onde ciência é praticada; “ciência” como método de pesquisa e por último; “ciência” como o conhecimento produzido como resultado das atividades científicas.
A ciência como “instituição-ciência”
Um dos usos possíveis para a palavra ciência se refere à “instituição-ciência”. Quando falamos sobre ciência, podemos estar falando explicitamente de um grupo de espaços, físicos ou não, onde as atividades científicas são praticadas e divulgadas. A atividade científica depende desses espaços, uma vez que não consiste de conhecimento revelado e, dessa forma, necessita continuar sendo praticada extensivamente, e como toda prática continuada extensivamente, ela depende de sustentação material. O caráter institucional da ciência é materializado em universidades públicas ou privadas, institutos de pesquisa, grupos de pesquisa, sociedades acadêmicas e revistas, além de obviamente, os pesquisadores agindo como trabalhadores intelectuais e produtores de conhecimento. Esses espaços e agentes atuam estabelecendo relações de diversos tipo: o pesquisador tem um vínculo empregatício com a instituição em que pesquisa, um vínculo como fornecedor para as revistas em que publica e um vínculo como membro das sociedades acadêmicas que compõe; universidades são contratantes para pesquisadores, fornecedoras de serviços para sua fonte de financiamento (seja essa estatal ou não) e assim por diante. Dessa maneira, uma série de relações sociais e dependências materiais são estabelecidas no caminho da composição do produto da atividade científica.
Quando debatendo sobre a composição da entidade que reconhecemos como conhecimento cientifico, filósofos mais tradicionalistas tendem a partir da tese que a filósofa Hellen Longino chama de “tese da neutralidade da ciência”. A tese da neutralidade da ciência é a tese defendida por aqueles que mantém que o conhecimento produzido cientificamente deve ser desprovido de qualquer inclinação extracientífica, seja ela social ou politica. Colocando de outra forma, mais clara, a ciência deve ser livre de vieses. A tese encontra seu caminho para defender que a relação entre ciência e sociedade seria inexistente ou epistemicamente repreensível. A produção científica deveria se manter livre de valores contextuais em todos os níveis de produção, ou ao menos essa ausência de valores contextuais marcaria a diferença entre ciência boa e ruim.
Filósofos da ciência socialmente mais conscientes como a própria Longino se opõem à esse tipo de abordagem da atividade científica e de suas relações com a sociedade, sobre a tese da neutralidade científica, Longino pontua em seu livro “Science as social knowledge” (1990) que a tese seria facilmente refutada uma vez observado que as decisões sobre como as atividades científicas são desenvolvidas dependem primariamente de necessidades e relações sociais e políticas, além de interesses econômicos. Que tipo de pesquisa será conduzida, qual será a distribuição dos fundos de pesquisa e que tipo de uso os resultados de uma pesquisa terão, cada uma dessas coisa depende de valores externos a dimensão meramente epistêmica da pesquisa científica, valores esses que Longino chama de “valores contextuais”.
A forma como valores contextuais se relacionam com a dimensão epistêmica da atividade científica se dá em razão da atividade científica ser primariamente uma atividade institucional. Na contemporaneidade, a atividade científica foi liberada do fardo dos grandes homens, fazendo descobertas na garagem de suas casas ou correndo com pipas em tempestades, a atividade científica foi engolida pela vida pública, profissionalizada e alocada dentro de instituições universitárias e de pesquisa. Essas instituições estão sujeitas à necessidades sociais, como o desenvolvimento de vacinas e remédios para doenças virais como a própria COVID-19, também estão sujeitas a financeirização e a especulação sobre conhecimento, certamente estão sujeitas a restrições orçamentárias e pessoais. Longino nos oferece como exemplo dessa relação a preocupação de que os interesses econômicos em relação a capacidade de bactérias de produzir anticorpos poderia mudar o foco das pesquisas em medicina para a busca de Magic-bullets e levar a negligência da busca pela causa das doenças. Hoje, 30 anos depois da publicação do Science as Social knowledge, vemos a preocupação da Longino evidentemente justificada pela história.
Acreditar na ciência como instituição produtora de conhecimento apesar de ela não ser neutra significa acreditar na capacidade das bases materiais direcionarem a produção científica de forma que seja socialmente útil e também epistemicamente justa. De certa forma, essa constatação significa que a crença na ciência como instituição depende de uma certa capacidade de vigilância e de transformação institucional para que seja possível voltar a atividade científica para o melhor cumprimento de suas funções sociais e epistêmicas. Em uma situação como a atual, essa vigilância e capacidade de transformação das bases materiais que guiam a atividade científica é ainda mais flagrante.
A ciência como aquilo que os cientistas fazem
Karl Marx dizia que as ideias de um povo eram as ideias de sua classe dominante, de certa forma, essa foi a primeira boa formulação da tese de que a ciência não é neutra. Filósofas feministas da ciência defenderam uma tese semelhante, quando postularam a necessidade de uma ciência mais feminista, partindo do pressuposto de que uma ciência dominada por homens, partiria e chegaria a pressupostos que lhes são caros. A rejeição da tese da neutralidade científica não significa, no entanto, uma rejeição à atividade científica. Uma segunda posição para a relação entre ciência e sociedade é a defesa da tese que Longino chama de “integridade da ciência”: a tese de que, os vieses sociais e econômicos não afetam aquilo que importa da atividade científica, aquilo que os cientistas fazem. Esse é outro dos usos que pode ser mencionado quando falamos em ciência, o que chamamos de “método científico” ou aquilo que os cientistas fazem para fazer ciência.
Guardo aqui a licença de não me fazer mais específico em relação ao método científico em ciências biológicas ou médicas¹, uma vez que para o bem do argumento aqui desenvolvido, a ideia de um método científico geral é suficiente.
As atividades definidoras daquilo que um cientista devem cumprir para fazer ciência, como observação, inferências, formulação de hipóteses e experimentação, não são influenciadas por valores contextuais, defenderia o defensor da tese da integridade da ciência. Para esse grupo, acreditar na ciência seria algo como acreditar no método científico, naquilo que um cientista faz para realizar aquilo que um cientista realiza. Para esse grupo, mesmo que um cientista seja levado a pesquisar um remédio para uma doença, como a COVID-19, por ser mais rentável que pesquisar os mecanismos pelos quais a doença age no corpo, as formas que a doença surgiu, esse pesquisador ainda realizaria um bom trabalho desde que realizasse suas atividades propriamente e o produto de suas atividades ainda poderia ser tomado e julgado por suas qualidades técnicas.
Essa posição implica que boa ciência é feita sem valores contextuais, as atividades, como testes de hipótese ou fazer inferências a partir dos dados, não poderiam dessa forma ser influenciadas por valores políticos e sociais, interesses econômicos ou de outra natureza, as instituições podem não ser neutras, mas a atividade científica deve ser.
A tese da integridade da ciência também não pode ser defendida, a relação da ciência com a sociedade é mais promíscua do que os defensores da integridade científica gostariam de admitir, elas se tocam mais e mais profundo, de forma que a atividade científica não poderia ser “integra”. O que significa dizer que a ciência não poderia ser nem neutra, nem integra? Significa que as atividades epistêmicas identificadas como científicas são alocadas também em um espaço social. Isso acontece em razão de cientistas, os indivíduos realizando atividades epistêmicas que resultam no produto científico, não são raciocinadores perfeitos, sua capacidade de examinar dados, fazer inferências a partir deles, construir teorias e compará-las entre si, não são feitas de forma alheia a situação social em que esses mesmos cientistas estão inseridos.
São muitos os exemplos que podem ser dados para mostrar que a atividade científica tem algum nível de contato com valores externos, que aquilo que os cientistas fazem não é de forma alguma blindado dos valores sociais, políticos e econômicos. O tipo de amostra escolhida para uma pesquisa pode influenciar amplamente seu resultado. Uma pesquisa de Q.I anunciada em uma universidade ou próxima de uma provavelmente vai conseguir uma média populacional mais alta que a média da população de um bairro de periferia, por exemplo. O tipo de sustentação de que esse ponto necessita pode ser encontrado também nas pesquisas sobre sexo e morfologia cerebral. Como o trabalho da filósofa e historiadora da ciência Cordelia Fine Delusions of gender: The real Science between sex differences demonstra, dominância masculina e preconceitos de gênero foram fatores determinantes para o estabelecimento da ideia de cérebros sexuados e comportamentos psicológicos pré-determinados pelo gênero cerebral. Foi necessário que cientistas femininas e filósofas feministas, como a própria Fine, começassem a examinar a questão de que se cérebros tinham mesmo distinções claras entre gêneros e se essas distinções tinham alguma relação causal com as diferenças comportamentais entre os gêneros para que a resposta para ambas as questões mudassem de um sim cavalar para ambas as questões para o atual “é mais complicado do que parece”.
Filósofos defendendo a tese da integridade da ciência ainda poderiam recorrer a defesa de que esses são exemplos de ciência ruim sendo feita e isso poderia ser evidenciado pelo fato de que o resultado, em ambos os exemplos, foi a resposta errada. Mas não é preciso o exame de muitos exemplos para perceber que o mesmo se aplica a “boa ciência” onde se chega a uma resposta correta ou mais próxima de estar correta. O abandono da concepção de cérebros atendendo a uma distribuição morfológica ideal relacionada aos sexos com certeza teve como objetivo o alcance de um modelo descritivo do cérebro mais acurado com a realidade, mas também teve como objetivo a superação de um discurso de legitimação biológica de desigualdades de gênero socialmente estabelecidas. Nesse exemplo, fica visível como ambos os valores epistêmicos, internos a atividade científica, são inseparáveis dos valores externos, seja na ciência boa ou na ruim.
Fica patente defender, então, que acreditar na ciência também não é exatamente acreditar naquilo que os cientistas fazem. Não é na integridade da ciência que a crença deve residir. Claramente, a ciência não é “integra” no sentido da tese da integridade da ciência, a natureza da atividade científica depende que ela seja influenciada por valores externos e as atividades que geram os produtos científicos, como formulação de teorias, trabalho inferencial, análise de dados, seleção de amostras dentre outros, são suscetíveis aos vieses de valores externos carregados pelos agentes científicos particulares.
O produto da ciência
Se “acreditar na ciência” não significa exatamente acreditar nem em sua neutralidade, nem em sua integridade, significaria então acreditar no seu produto? Os produtos da ciência são aqueles que resultam das atividades que os cientistas fazem quando localizados no espaço correto nas instituições que permitem que a ciência seja feita. A atividade científica é, em um sentido amplo, positiva e negativa. A dimensão positiva da ciência envolve fazer captação de dados, atividade inferencial e formulação de teorias, estabelecimento de leis e elaboração de experimentos. A dimensão negativa se resume a rejeição de teorias e inferências que não estejam de acordo com os dados empíricos. Ambos são produtos relacionados a boa ciência, a rejeição de uma teoria falsa é tão valorosa a atividade científica quanto a formulação de uma teoria verdadeira.
O trabalho de um cientista pode envolver qualquer uma dessas atividades, ou uma combinação delas. Mas de certa forma, não seria um exagero dizer que a atividade científica gira em torno da captação e explicação de dados empíricos que representam uma certa instância da realidade. Para explicar esses dados e sua relação com um determinado fenômeno de interesse, são elaborados teorias. Teorias são constructos conceituais que representam certo fenômeno dado um certo nível de idealização de seus parâmetros conceituais. Colocando de forma mais clara, teorias científicas compreendem modelos de realidade.
Os modelos de realidade compreendidos pelas teorias científicas tem como objetivo explicar um certo dado da realidade, um componente empírico das teorias. É, então, notável declarar que as ciências tem como objetivo fornecer teorias que são empiricamente adequadas, fornecendo corretamente uma explicação desse componente empírico dos modelos de realidade. Essa visão pode ser colocada de acordo com sua formulação original por Van Fraassen: a ciência tem como objetivo fornecer teorias que são empiricamente adequadas e a aceitação de uma teoria depende somente da crença de que ela é empiricamente adequada. Essa visão sobre os objetivos da ciência e sobre a aceitação de uma teoria foi fornecida por Van Fraassen em seu trabalho The scientific image (1980) e foi nomeada de empirismo construtivo.
É um comprometimento dessa concepção de teorias científicas que elas são literalmente construídas, ou seja, que as entidades implicadas por uma teoria, mesmo as que não são empiricamente verificáveis, são entendidas como entidades existentes. Mas essa visão não sustenta que uma teoria necessita ser verdadeira para ser boa. A qualidade definidora de uma teoria científica é que ela é empiricamente adequada, dessa forma, o comprometimento com entidades inobserváveis como os genes da genética mendeliana em uma teoria científica da transmissão de características hereditária não é com sua realidade, mas com a construção literal da teoria. As entidades inobserváveis são implicadas verdadeiras pela teoria, mas não precisam ser verdadeiras para que a teoria seja boa.
Critérios externos a adequação empírica podem ser usados para decidir entre teorias com o mesmo nível de adequação empírica. Entre duas teorias que buscam explicar o mesmo fenômeno, como é o caso da evolução biológica e as teorias do equilíbrio pontuado e seleção natural clássica, as evidências do registro fóssil podem ser usadas para fornecer sustentação empírica para decidir entre ambas, fazendo com que uma se sobressaía a outra em relação ao quão adequada empiricamente é sua formulação teórica. Em outros casos, outros critérios podem ser selecionados pelo pesquisador para defender uma teoria em momentos onde teorias concorrentes contam com o mesmo sucesso em explicar adequadamente o fenômeno. Por exemplo, quando duas diferentes soluções sobre modelos seletivos são colocadas para explicar um certo comportamento humano, dificilmente o debate poderia ser resolvido apenas por adequação empírica das teorias.
De certa forma, é possível dizer que a boa teoria científica é aquela que “salva o fenômeno”, como Van Fraassen faz em seu livro. Aqueles que compartilham do entendimento de Van Fraassen, encontram aqui uma resposta parcial para a pergunta “o que significa acreditar na ciência?”. Acreditar na ciência significa que ela salvará o fenômeno, o descrevendo de forma empiricamente satisfatória e que as teorias que aceitamos como as cientificamente mais adequadas são aquelas que são construídas de forma empiricamente mais satisfatória.
Isso responderia a pergunta inicial do texto de forma razoavelmente satisfatória levando em conta critérios epistêmicos, mas as seções anteriores parecem sugerir que a crença na ciência requer algo mais do que um componente sistêmico, requer também um componente social.
Uma atividade sócio-epistêmica
Depois de examinar, de forma breve, os usos de ciência, podemos chegar a conclusão de que nenhum deles justificaria sozinho algo como uma “crença na ciência”. Seria pedir demais que a crença na ciência fosse baseada apenas no seu caráter de atividade epistêmica. De certa forma, a conclusão de que a crença na ciência se basearia apenas no seu caráter epistêmico de “salvar o fenômeno” nos deixa com certo desconforto. Obviamente, a capacidade de uma boa teoria científica de descrever empiricamente um fenômeno de forma adequada quando um cientista performa sua atividade de forma epistemicamente razoável serve como uma “âncora de confiança”. Seria impossível acreditar na ciência sem qualquer garantia de que ela descreve propriamente os fenômenos de interesse mesmo que os cientistas realizem de forma razoável suas atividades. Cairíamos, então, em um antirrealismo forte, do tipo defendido por autores como o Feyerabend e isso não nos parece razoável. É certo que as pesquisas em virologia podem nos fornecer melhores respostas contra a infeção por SARS-CoV-2 que o xamanismo ou a homeopatia e o motivo para isso certamente é uma melhor descrição do fenômeno de infeção por vírus. Mas o desconforto prevalece. “O que a âncora segura?” A dimensão social da produção científica.
É evidente por tudo o que foi argumentado anteriormente à concepção de ciência aqui defendida: o empreendimento científico não é apenas um empreendimento epistêmico, mas sócio-epistêmico, da qualidade que não só as qualidades epistemológicas precisam ser contempladas quando se fala em “crença”. De toda forma, acreditar na ciência significa acreditar em um processo social de descrição do mundo, a crença na ciência é a crença em uma atividade que não pode ser reduzida a metas epistemológicas.
Qual a implicação desse tipo de visão? Uma crença crítica na ciência como uma ferramenta para lidarmos com problemas como a pandemia de COVID-19. A defesa da capacidade de cientistas acessarem a natureza empírica de fenômenos, como o vírus SARS-CoV-2, não faz com que seja menos necessário que observemos as qualidades sociais da produção científica realizada por esses pesquisadores. Decisões sobre como lidar com situações desse tipo podem tomar diferentes orientações a depender dos agentes sociais atuando causalmente na formulação das teorias científicas que pesquisadores formulam e esse tipo de constatação independe da qualidade das descrições empíricas que esse pesquisador fará e se a teoria dele é boa ou não. É preciso olhar a âncora, mas também precisamos nos perguntar “o que é a âncora segura? Uma boa âncora ainda pode segurar um navio inaceitável.
Como adiantado em uma seção anterior, a crença na ciência, sendo a crença em uma atividade sócio-epistêmica, requer uma certa vigilância, agora fica mais simples dizer o que precisa ser vigiado. É preciso vigiar ambos os componentes epistemológicos e sociais da atividade científica. É preciso se perguntar se um cientista realizou propriamente sua atividade, mas também é preciso se perguntar quais as forças sociais que atuavam sobre ele quando ele realizava sua atividade, seja ela realizada propriamente ou não. A crença na ciência também implica em um ônus social de buscar transformações sociais que permitam que a âncora segure o navio.
[1] Tomamos parte, e é essa uma noção necessária para a concepção de ciência aqui trabalhada, da noção de desunidade das ciências de Dupré, desta maneira, não acreditamos que a ideia de um método científico geral seja suficiente para compreender a maneira como as ciências são realizadas durante o processo de realização das atividades científicas. De todo modo, as atividades tratadas aqui no texto podem ser colocadas como universais a toda disciplina científica.