Por Ann Gibbons
Publicado na Science
Um dia, há cerca de 120.000 anos, alguns humanos vagaram ao longo da margem de um antigo lago no que hoje é o deserto de Nefude, na Arábia Saudita. Eles talvez fizeram uma pausa para um gole de água doce ou para encontrar sinais de manadas de elefantes, asnos selvagens e camelos que pisoteavam os lamaçais. Poucas horas depois que passaram por lá, as pegadas de humanos e animais secaram e eventualmente fossilizaram.
Agora, essas pegadas antigas oferecem uma rara evidência de quando e onde os primeiros humanos passaram a habitar a Península Arábica. “Estas são as primeiras pegadas humanas genuínas da Arábia”, disse o arqueólogo e líder da equipe Michael Petraglia, do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana.
A Península Arábica há muito tempo é considerada a rota óbvia que os primeiros membros de nossa espécie percorreram ao saírem da África e migrarem para o Oriente Médio e a Eurásia. Ferramentas de pedra sugerem que os humanos antigos exploraram a Península Arábica em vários momentos da pré-história, quando o clima era mais úmido e seus desertos secos foram transformados em pastagens verdes pontuadas por lagos de água doce. No entanto, até agora, os pesquisadores encontraram apenas um único osso de dedo humano datado de 88.000 anos para provar que os humanos modernos, ao invés de algum outro hominídeo que também fabricava ferramentas, viviam lá.
Depois de uma década pesquisando a Península Arábica usando imagens de satélite e verificações no solo, Petraglia e seus colegas de equipes internacionais identificaram dezenas de milhares de antigos lagos de água doce, incluindo um no Nefude apelidado de “Alathar“, que significa “o vestígio” em árabe. Aqui, eles avistaram centenas de pegadas em uma superfície da margem fortemente pisoteada, que tinha sido recentemente exposta quando os sedimentos sobrejacentes erodiram. Quase 400 rastros foram deixados por animais, incluindo um asno selvagem, um búfalo gigante, elefantes e camelos. Apenas sete foram identificados seguramente como pegadas humanas. Mas, comparando o tamanho e a forma dessas pegadas com as feitas por humanos modernos e neandertais, os pesquisadores concluem que as pegadas provavelmente foram feitas por pessoas com pés mais longos, estatura mais alta e massa menor: ou seja, Homo sapiens, em vez de neandertais, como relatam hoje na Science Advances.
A idade dos sedimentos também sugere que o H. sapiens fez as pegadas, dizem os pesquisadores. Usando um método chamado luminescência opticamente estimulada, que mede os elétrons para inferir quando as camadas de sedimento foram expostas à luz pela última vez, a equipe datou os sedimentos acima e abaixo das pegadas em 121.000 e 112.000 anos.
Naquela data, “os neandertais não são registrados no Levante [Oriente Médio]”, disse o coautor Mathew Stewart do Instituto Max Planck de Ecologia Química. “Portanto, argumentamos que o H. sapiens provavelmente foi o responsável pelas pegadas”.
Muito depende das datas, entretanto. O geocronologista Bert Roberts, da Universidade de Wollongong (Austrália), observa que persistem algumas incertezas em relação aos métodos de datação no local – incluindo idades mais antigas para fósseis de animais e problemas potenciais com o cálculo da taxa precisa de decomposição do urânio nos sedimentos. As datas para as pegadas “podem estar na estimativa certa”, diz ele, “mas mais poderia ser feito para validá-las”.
A equipe não pode excluir totalmente os neandertais, diz a paleoantropóloga Marta Mirazón Lahr, da Universidade de Cambridge, porque o registro fóssil é muito irregular na Arábia. Mas ela acha que H. sapiens é o candidato mais provável.
Ainda mais intrigante, ela observa, as pegadas mostram que os humanos eram capazes de se mover por longas distâncias entre a África e a Arábia e devem ter tido grupos de forrageamento bastante grandes para conseguir penetrar nas profundezas dos pântanos do interior da Arábia.
A rara associação de pegadas humanas e animais estabelecidas no mesmo dia ou por volta do mesmo dia também oferece um raro vislumbre de um dia na vida de um ser humano antigo. Normalmente, fósseis de animais e humanos encontrados no mesma margem fossilizada foram enterrados com centenas, senão milhares, de anos de intervalo e nunca se viram. “Essas pegadas nos dão uma imagem única dos humanos que viviam nesta área ao mesmo tempo que os animais”, diz o paleoantropólogo Kevin Hatala, da Universidade Chatham em Pittsburgh (EUA), um especialista em pegadas antigas. “Essa associação aproximada no tempo é o que é tão emocionante para mim”.