Por Miguel Ángel Criado
Publicado no El País
Uma jovem de 17 a 19 anos enterrada há cerca de 8.000 anos com suas armas mostra que caçar animais de grande porte não era apenas uma atividade de homens pré-históricos. Após sua descoberta, seus autores revisaram outras cem sepulturas, descobrindo que mais de um terço dos caçadores eram, na verdade, caçadoras. Esses resultados desafiam a ideia dominante de que nas primeiras comunidades humanas já havia uma divisão de trabalho por gênero.
Em 2018, arqueólogos americanos e peruanos escavaram uma série de túmulos a 3.925 metros de altura, no distrito de Puno, nos Andes peruanos. Em uma das tumbas, ao lado de um corpo mal conservado, havia cerca de vinte pedras esculpidas. Quatro dos artefatos eram pontas afiadas, provavelmente usadas em flechas, pequenas lanças impulsionadas por uma espécie de tubo. Também haviam facas de sílex e outros objetos pontiagudos. Também encontraram ocre que, além de ser usado como pigmento, servia para passar na pele. Elas estavam tão próximas que os cientistas pensaram que haviam entrado em um morteiro. A uma curta distância estavam os restos de tarucas (veados andinos) e vicunhas. O mais surpreendente, de fato, ocorreu depois: pela análise dos ossos, os cientistas presumiram que se tratava de uma mulher – especialmente, uma caçadora.
“Inicialmente, observamos a estrutura óssea do indivíduo. Visto que mulheres e homens têm pequenas diferenças ósseas, o sexo pode ser estimado com algumas medições. Isso funciona quando os restos do esqueleto estão bem preservados”, disse o antropólogo da Universidade da Califórnia em Davis, EUA, e principal autor do estudo, Randy Haas, por e-mail. Mas no sítio arqueológico de Wilamaya Patjxa, apenas parte do crânio, dentes e fragmentos de um fêmur e uma tíbia permaneceram. Com o colágeno extraído desses ossos, os cientistas puderam determinar a data da morte: 8.008 anos atrás, 16 anos para cima ou para baixo. Devido ao desenvolvimento dos dentes, os pesquisadores estimaram que sua a idade estava entre 17 e 19 anos. Mas com poucas pistas sobre o gênero.
Os cientistas confirmaram que era uma mulher usando uma sofisticada técnica biomolecular desenvolvida no ano passado, chamada de análise de amelogenina, uma proteína encontrada no esmalte dos dentes. “Acontece que essas proteínas estão ligadas ao sexo e, portanto, é possível estimar a partir delas com alto grau de precisão”, explica Haas, cujo trabalho acaba de ser publicado na revista científica Science Advances.
Saber se era um caçador ou uma caçadora é importante. A teoria dominante entre antropólogos e etnógrafos é que nas comunidades antigas que dependiam da caça e da coleta havia uma divisão de trabalho marcada por gênero: os homens caçavam e as mulheres coletavam. Mas quase não há pistas sobre essa divisão de tarefas nos sítios arqueológicos. A principal evidência é circunstancial: nos atuais grupos humanos, que ainda são caçadores e coletores, o homem é o caçador.
Partindo dessa única caçadora, Haas e seus colegas revisaram estudos de 107 outros túmulos americanos com restos mortais de 429 indivíduos datados entre 12.700 e 7.800 anos atrás. 27 dos enterrados descansavam ao lado de suas armas de caça. E 11 deles eram mulheres. Extrapolando, isso significaria que mais de um terço dos caçadores pré-históricos eram realmente caçadoras, pelo menos, na América.
“A teoria do homem-caçador não foi confirmada com dados arqueológicos, mas apenas com dados etnográficos”, comenta a arqueóloga Kathleen Sterling, da Binghamton University (EUA). “Tradicionalmente, a caça tem sido considerada como a mais prestigiosa, exigente e perigosa do que a coleta e essas são características que associamos estereotipadamente às atividades dos homens”, acrescenta a pesquisadora, que não participou da pesquisa.
Essa especialista em tecnologia lítica pré-histórica lembra que “a caça maior, com renas ou bisões, não dependia de força ou habilidade, mas de número: as formas usadas no Pleistoceno consistiam em empurrar rebanhos em direção a penhascos ou armadilhas, ou jogar lanças em rebanhos que não matariam diretamente os animais, mas os deixariam feridos, sendo pisoteados ou incapazes de acompanhar o rebanho. Naquela época, os humanos viviam em pequenos grupos, então a maioria dos jovens e adultos seria necessária na caçada de uma forma ou de outra”.
“Em geral, como a divisão do trabalho por gênero foi amplamente verificada entre as sociedades tradicionais, os arqueólogos presumiram que ela também era comum no passado”, diz o antropólogo Steven L. Kuhn, da Universidade do Arizona, que não participou do estudo. “Por outro lado, muito do que sabemos sobre essa divisão do trabalho é baseado na ideologia, no que as pessoas pensam que é o ideal”.