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Psicanálise Quântica: um nome bonito para um amontoado de disparates

Psicanálise quântica é um nome bonito, mas que não tem absolutamente nada de quântico nem de robusto. A psicanálise, como já demonstrei em meu artigo na Revista Questão de Ciência (“Psicanálise: muita conversa fiada, nenhuma ciência”), não funciona para ansiedade, depressão, esquizofrenia nem para transtornos do espectro autista (TEA). Existem proposições na psicanálise que jamais foram colocadas à prova, seja por falta de interesse dos próprios psicanalistas em submeter suas ideias ao crivo da pesquisa experimental, seja porque seus conceitos são tão imprecisos e subjetivos que se torna impossível delinear hipóteses testáveis. Para uma avaliação científica séria da psicanálise, recomendo fortemente a leitura do artigo citado.

Se não bastasse o fracasso patente da neuropsicanálise de Mark Solms, abordagem que parte do pressuposto enviesado de que a psicanálise teria elementos válidos que poderiam ser confirmados pela neurociência, e as acusações de que seriam os críticos da psicanálise que pretendem reduzir a psicologia a uma “física do comportamento”, agora vemos os próprios psicanalistas recorrendo ao jargão da física quântica, na tentativa de revestir suas ideias de uma aparência pseudocientífica.

A mídia, como infelizmente já se tornou habitual, deu espaço às ideias de um autodenominado “psicanalista quântico” que não fazem qualquer sentido. Como ocorre em praticamente todas as pseudociências que empregam o termo “quântico”, não tratam de nada que seja objeto da física contemporânea. No melhor dos casos, tais ideias resultam de interpretações grotescamente equivocadas feitas por pessoas que nada entendem de física quântica.

No artigo jornalístico em questão, há uma introdução antes dos pontos principais, afirmando que “a ansiedade e a depressão não são apenas disfunções químicas no cérebro” e sugerindo que poderiam estar ligadas a “padrões de pensamento negativos”, “emoções não resolvidas” e outras causas vagas. Ninguém em sã consciência pretende reduzir a ansiedade ou a depressão a meras “disfunções químicas”, como se fossem patologias isoladas de seu contexto biopsicossocial. Por exemplo, a depressão pode emergir em função de um evento traumático, como o luto, no qual o impacto emocional profundo altera padrões de funcionamento cerebral, afetando estruturas como o córtex pré-frontal, o hipocampo, a amígdala e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, resultando em alterações neuroendócrinas, cognitivas e comportamentais. Situações como a depressão pós-parto também ilustram como fatores hormonais, contextuais e relacionais interagem dinamicamente. Não se trata, portanto, de um reducionismo químico, mas de um fenômeno complexo e multifatorial, conceito bem estabelecido na medicina baseada na ciência.

O problema central reside em uma das afirmações do artigo. O proponente da chamada “psicanálise quântica” alega que tais transtornos mentais estariam relacionados a “desequilíbrios energéticos” no corpo. Tenta justificar essa visão alegando que a física quântica teria mostrado que pensamentos e sentimentos possuem “frequências” que impactariam a saúde física e mental. Não apresenta qualquer evidência que sustente tal ideia: não explica de que “energia” se trata, qual teoria física a descreveria, como o suposto desequilíbrio ocorreria, nem que tipo de experimento teria demonstrado tal fenômeno.

É necessário extremo cuidado com esse tipo de afirmação, pois energia é um conceito rigorosamente definido na ciência real. No contexto científico, energia é algo mensurável e claramente especificado em teorias físicas ou ontológicas. Energia não é uma “substância” ou “força difusa”, mas uma propriedade associada ao estado de sistemas físicos. Existem formas específicas de energia: cinética, potencial, eletromagnética, térmica, nuclear, química, entre outras. Todas são rigorosamente quantificáveis e regidas por leis fundamentais da física, como a lei da conservação da energia. Não existe, na física, uma “energia emocional” ou “energia vital” que pudesse ser desequilibrada e que escapasse a essas leis.

O artigo prossegue com afirmações cada vez mais problemáticas. Por exemplo, afirma-se que “a física quântica sugere que nossos pensamentos têm poder” e que “vibrações energéticas podem influenciar a realidade”. Em seguida, o “psicanalista quântico” afirma que “quando você vive em um estado constante de medo ou desânimo, seu corpo e sua mente começam a ‘vibrar’ na mesma frequência”. Diz ainda que sua abordagem “altera essas frequências negativas”, substituindo-as por uma suposta “energia positiva e curadora”, sem jamais explicar que energia ou que vibração seriam essas. De fato, há uma deturpação grosseira dos conceitos da física quântica. Fenômenos quânticos como interferência, superposição e emaranhamento ocorrem em escalas subatômicas, não no funcionamento global de sistemas macroscópicos como o cérebro humano. Pensamentos, que são processos emergentes da atividade neural, não operam como ondas de partículas subatômicas. No nível macroscópico, é fisicamente impossível que padrões de pensamento criem interferências quânticas que afetem a realidade objetiva. Experimentos com partículas subatômicas requerem condições extremamente controladas, como isolamento, temperatura próxima ao zero absoluto e ausência de perturbações externas. Tais condições não são replicáveis em sistemas biológicos complexos como o cérebro humano. Alegar o contrário é mistificação.

A desinformação prossegue quando se propõem “técnicas de reprogramação mental” e “meditação” como formas de atuação sobre essa suposta energia. Como mostrado no artigo do neurologista Steven Novella, práticas como Reiki, meditação para fins terapêuticos generalizados, “limpeza energética” ou correlatos não têm eficácia comprovada no tratamento de ansiedade ou depressão. Revisões sistemáticas rigorosas apontam que os estudos sobre mindfulness, por exemplo, apresentam limitações metodológicas graves, como viés de publicação, ausência de controles adequados, conceitos mal definidos e conflitos de interesse. Não há qualquer base sólida para recomendá-las como terapia principal.

Outro ponto falacioso do artigo é a ideia de que, ao tratar a mente sem olhar para o “campo energético”, estaríamos lidando apenas com a “superfície do problema”. Não há qualquer evidência de que seres humanos possuam um “campo energético” nos termos propostos. O artigo do filósofo Robert Todd Carroll esclarece como as noções de “energia vital”, “prana”, “qi” ou “aura” são conceitos pré-científicos, abandonados porque não resistem a testes empíricos e porque conflitam com leis fundamentais da física. Não existe um campo energético humano mensurável que afete estados emocionais ou mentais. E uma “energia” que não interage com sistemas físicos ou que não respeita as leis fundamentais da física não é uma energia no sentido científico.

A tentativa de invocar traumas reprimidos como causa de “bloqueios energéticos” também é problemática. Não há evidência robusta de que os chamados “traumas reprimidos” exerçam os efeitos universais e automáticos que a psicanálise tradicional propõe. O que a psicanálise extrai dos pacientes são interpretações subjetivas, frequentemente dissociadas das reais causas dos problemas. O psicanalista torna-se um “juiz” das origens dos sofrimentos do paciente sem submeter essas interpretações a avaliações empíricas adequadas.

No artigo ainda é dito que a ansiedade é o reflexo de um campo energético desequilibrado, o que não faz qualquer sentido. Ansiedade é um transtorno multifatorial, envolvendo predisposição genética, alterações neurobiológicas, padrões cognitivos disfuncionais, estressores ambientais e fatores sociais. Técnicas como Reiki, meditação esotérica ou “limpeza energética” não demonstraram eficácia real no tratamento de transtornos psiquiátricos. Essas práticas são, na melhor das hipóteses, placebos teatrais. Placebos não curam. E no caso de quadros graves, como depressão com risco suicida ou transtornos de pânico, confiar em placebo é potencialmente perigoso.

Em outro ponto do artigo, o psicanalista sugere que a pessoa deve reconhecer seus próprios padrões emocionais e como afetariam sua energia. Porém, como demonstrado, não existe essa energia. Inventar uma explicação para um fenômeno psicológico não o torna verdadeiro nem científico.

O quinto item do artigo é revelador. O psicanalista afirma que sua abordagem não substitui tratamentos convencionais, mas seria complementar. Isso já demonstra que não faz parte da medicina baseada na ciência. Portanto, insere-se no campo das práticas alternativas, como acupuntura, homeopatia, florais de Bach, Reiki, programação neurolinguística e, evidentemente, esta fantasiosa “psicanálise quântica”, que de quântica não possui absolutamente nada.

Espero que a mídia, um dia, trate temas de saúde com a seriedade que exigem. Que se baseie em evidências científicas robustas, e não em jargões sofisticados criados para promover práticas duvidosas ou perigosas. Ansiedade e depressão são problemas graves, que devem ser tratados à luz da melhor evidência disponível. Somente com uma abordagem fundamentada em psicologia experimental, neurociência e medicina clínica é possível obter resultados consistentes e seguros. Até que alguém prove que a física inteira está errada ou que a teoria quântica legitime conceitos como aura, energia vital ou campos energéticos humanos, tanto a mídia quanto os proponentes dessas práticas deveriam abster-se de disseminar essas ideias fantasiosas.

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking, Full Stack Java Developer e Inteligência Artificial, Machine Learning e Data Science. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.