Se há um panteão dos filósofos mais influentes que já existiram, René Descartes com certeza faz parte dele. Em 1596, período em que Shakespeare escrevia Hamlet, Descartes nasce no vilarejo de Touraine, na França, que posteriormente foi batizado em sua homenagem passando a chamar “La-Haye-Descartes”. Considerado como o pai da filosofia moderna, Descartes passou dos 11 aos 19 anos estudando os clássicos e filosofia no colégio jesuíta de La Flèche. Durante toda a sua vida ele foi católico, mas passou a maior parte de sua maturidade na Holanda, país protestante que era conhecido por ser sua liberdade de expressão e religiosa – ao menos em comparação com os outros países europeus da época.
Ao 20 anos, em 1616, Descartes se formou em direito em Poitiers, mas abandonou seus estudos e se alistou em dois exércitos diferentes. Sim, ele pegou em armas nas guerras religiosas que dividiram a Europa e se alistou em ambos os lados, em períodos diferentes. Para ter uma ideia, ele chegou a se alistar no exército de Maurício de Nassau – sim, aquele Conde (que se tornou príncipe depois) que veio ao Brasil com a Companhia das Índias Ocidentais. Descartes, ainda que seja considerado um dos maiores filósofos da história da filosofia, diferente dos outros filósofos ele jamais lecionou. Ele era um homem privado, mas que queria sua obra o mais difundida possível. Tanto é que sua obra mais famosa não foi publicada originalmente no latim, língua adotada nas universidades e meios letrados sendo considerada a mais “culta”, mas ele escreveu diretamente no francês, de forma que pudesse ser entendido por todos – ainda que não fosse um acadêmico. Além disso ele zombava a seus amigos sobre sua capacidade de escrita, que ainda hoje é clara e objetiva (muito diferente dos textos clássicos de filosofia) fazendo com que seus livros pudessem ser lidos “como se fossem romances”.
Descartes, ainda que seja reconhecido como o pai da filosofia moderna, também é estudado na física e matemática, reverenciado como aquele que lançou as fundações da geometria analítica. Até hoje é ensinado nas escolas as coordenadas cartesianas, que foram batizadas a partir da forma latina de seu sobrenome, Cartesius. Descartes foi um cientista moderno. Quando um estranho pedia para ver sua biblioteca, Descartes apontava para as carcaças de um animal dissecado, além dele próprio fabricar as lentes que usava em seus experimentos de ótica. Ele confiava na experiência prática, antes que no aprendizado teórico. Mas confiava ainda mais em suas reflexões filosóficas. Em 1632, Descartes estava prestes a publicar uma obra que visava explicar “a natureza da luz, o Sol e as estrelas fixas que a emitem, os céus que a refletem ou transparentes ou luminosos e do Homem, seu espectador”. Seu sistema era heliocêntrico, ou seja, a terra era apenas mais um planeta girando em torno do Sol. Essa obra foi intitulada “O Mundo” e estava prestes a ser impresso quando Descartes descobriu que Galileu tinha acabado de ser condenado por sustentar o sistema copernicano, que também é heliocêntrico. Para evitar conflitos e ser perseguido, ele guardou sua obra em seus arquivos.
Ao invés de publicar sua obra O Mundo, Descartes resolveu publicar em 1637 “alguns exemplos de seu método”, que continham como prefácio “um discurso para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”. Entre as obras, que são lidas em sua maioria pelos historiadores da ciência apenas, está uma das obras mais famosas de Descartes – que diferente das outras é lida até hoje pelas mais diversas áreas, principalmente pela Filosofia. O seu Discurso do Método pode ser considerado uma das obras mais populares entre todos os clássicos da filosofia, cuja importância é comparável às obras de Platão e Aristóteles, com a vantagem de ser uma obra curta e muito mais legível por um leitor não especializado. Logo em sua introdução, há uma das frases filosóficas que pode ser adaptada para todos os tempos e sociedades, pois parece atingir em cheio a natureza do ser humano:
O bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois cada um pensa estar tão bem provido dele que mesmo aqueles que são mais difíceis de se contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.
O Discurso do Método é a obra de Descartes que sintetiza seu pensamento diante do modo como devemos adquirir conhecimento. Do método que devemos usar, de acordo com ele, para conseguirmos encontrar verdades sobre nós e sobre o mundo a nossa volta. Tomando para si a ideia de empreender uma reforma de todo entendimento humano, tentando apresentar que todas as disciplinas eram meros ramos de uma única e maravilhosa ciência, fundamentada sobre os alicerces da filosofia, Descartes oferece seu método. Nesta obra sucinta ele apresenta seu método, mas apenas na obra Meditações Metafísicas, ou também traduzida como Meditações Sobre a Filosofia Primeira, que
Descartes apresenta os argumentos para defender sua posição filosófica. Uma curiosidade sobre esse texto é que antes de ser publicado, Descartes pediu para um amigo encaminhar o texto para alguns acadêmicos e pensadores da época, esperando por comentários e críticas. Descartes recebeu seis conjuntos de objeções às teses apresentadas no Discurso do Método, que foram impressos junto das réplicas feita por Descartes, em um extenso apêndice à primeira edição de 1641. Sendo assim, o Discurso do Método foi a primeira obra revista por pares da história, isto é, a primeira obra que recebeu comentários, críticas e objeções antes de ser publicada. Esse método de revisão por pares é hoje algo natural no meio científico e acadêmico. Todos as obras científicas atualmente, sejam livros ou artigos, passam por revisão de especialistas. No caso dos livros a revisão geralmente é feita tal como Descartes fez, ou seja, fazendo o texto circular no meio dos especialistas da área. Já no caso dos artigos, as revistas especializadas (chamadas de “periódicos acadêmicos”), ao receberem um artigo para a publicação, fazem com que o artigo passe por uma equipe de revisores antes de aceitar ou não a publicação. A isso também devemos a Descartes.
Diferente dos filósofos medievais, que se engajavam cada um a seu modo na tentativa de transmitir um corpo de conhecimento já fundamentados em escritores clássicos, e que tal transmissão poderia apenas tornar o aperfeiçoamento de ideias possível; E diferente dos filósofos renascentistas, que pensavam estar redescobrindo e oferecendo fundamentações modernas para os textos antigos, sem cair na exegese tal qual faziam os medievais; Descartes via a si próprio como um divisor de águas, como o primeiro filósofo desde a Antiguidade a apresentar uma tese de fato inovadora. Ainda que seja argumentável se ele de fato conseguiu isso, é consenso entre os filósofos e historiadores da filosofia que Descartes desenvolveu, ou ao menos apresentou um sofisticado sistema filosófico poucas vezes visto até então.
O método proposto por Descartes pode ser resumido da seguinte maneira: devemos pôr em dúvida tudo aquilo que pode nos parecer falso. Deveríamos encarar com ceticismo tudo o que nos apresentam, e com essa mesma postura deveríamos encarar tudo o que defendemos. De acordo com esse método, deveríamos sempre fornecer fundamentações sólidas para nossas teses, fundamentações essa que sejam irrefutáveis a luz do ceticismo. A partir dessa fundamentação deveríamos reconstruir todo o nosso edifício de conhecimento. Teríamos assim uma base, um fundamento inquestionável que a partir dele poderíamos, por argumentos dedutivos e por um método claro e criterioso, remontar passo-a-passo esse edifício. Assim, enfim, teríamos um conhecimento fundamentado, aceito indubitavelmente (ou seja, sem dúvida ou questionamento contra), de modo que poderíamos afirmar com certeza o que conhecemos, sem recairmos nos argumentos céticos e nas ilusões do raciocínio obscuro e infundado. Deste modo, esse método se enquadra como uma tentativa de fugir dos argumentos céticos.
Duas ideias chaves no pensamento de Descartes, que são apresentadas já no Discurso do Método, é que os seres humanos são caracterizados por sua mente, são substâncias pensantes. Isso se distingue do seu corpo, que é um objeto físico e material. A matéria seria a extensão em movimento. Essa distinção entre mente e corpo é chamada de “dualismo”. Se hoje algumas pessoas têm a tendência natural de pensar que mente e matéria são duas coisas distintas (algumas pessoas até mesmo identificamos a alma como sendo a mente), é devido ao dualismo proposto por Descartes.
A aplicação sistemática do método proposto por Descartes, como vimos, visa apresentar uma fundamentação indubitável para todo o conhecimento. Deste modo, quando perguntarmos quais a justificativas temos para uma certa crença, essa justificação remontaria a uma cadeia de justificações que teria em sua base essa fundamentação indubitável, resultante do método de Descartes. Seria a justificação de todas as justificações, digamos assim.
Para evitar sermos conduzidos ao erro, diz o método, devemos recusar tudo que possa ser posto em dúvida. Eis que ele assume o ceticismo para argumentar a favor de sua tese. Vamos ver como:
- Argumento do Sonho:
Todos nós já tivemos sonhos vívidos o suficiente que, enquanto estávamos dormindo, não podíamos identificar se estávamos sonhando ou estávamos acordado. Só descobrimos que aquilo era um sonho quando enfim acordamos. Se você já sonhou que estava caindo de um prédio e acordou assustado na cama, você sabe muito bem como é isso! O Descartes então pergunta: Como podemos saber se não estamos sonhando? Quando um sonho é muito vívido, nós só descobrimos que estamos sonhando quando acordamos. Mas e se estivéssemos sonhando agora. Todas as sensações que temos nos pareceriam vívidas de tal modo que não poderíamos saber se estamos ou não sonhando, e teríamos de esperar acordar. Vejamos as palavras do Descartes:
“Em verdade, com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usais, isto é, que estava aqui, vestindo essa roupa, sentado junto ao fogo, quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel, e esta cabeça que movimento não está dormindo, e é de propósito, ciente disso, que estendo e sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisso cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais atentamente, vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo.”
– René Descartes. Meditações Sobre a Filosofia Primeira – Primeira Meditação.
Se aceitarmos isso como razoável, colocamos em dúvida todas os nossos sentidos de uma só vez. Poderíamos, muito bem, estar em um sonho tão vívido que seríamos incapaz de distinguir o que é sonho e o que é realidade. Só disso ser possível abrimos brecha para argumentos céticos. Então, de acordo com o método do Descartes, não podemos confiar em nossos sentidos. O que vemos, o que ouvimos, o que sentimos ao tocar ou provar alguma coisa, o que podemos dizer sobre o mundo externo à nossa mente. Tudo isso é posto em dúvida. Sendo assim, grande parte do nosso conhecimento está em maus lençóis, pois os argumentos céticos colocaram todas as justificações que temos para esses conhecimento em cheque. Mas tudo, é isso que Descartes quer. Ele quer eliminar tudo o que podemos pôr em dúvida e encontrar uma fonte segura.
- Argumento do Gênio Maligno:
Digamos que houvesse um gênio – daquele da lâmpada, sabe? Do Alladin – que fosse completamente poderoso, que soubesse de tudo, mas que fosse um grande filho da mãe. Ele só quer nos enganar em tudo que puder. A possibilidade da existência de um gênio desse já seria suficiente para nos colocar em dúvida sobre nosso sentidos – ele poderia estar nos enganando. Mas já apresentamos o argumento do sonho, que parece razoável. Vamos ver o que mais esse gênio maligno pode nos sacanear. Ainda que estivéssemos sonhando, parece razoável aceitar que certas coisas não podemos nos enganar. Por exemplo, eu sei que dois mais dois é igual a quatro. Eu não preciso justificar esse meu conhecimento me baseando nas experiências que tenho no mundo externo, ou seja, esse conhecimento não é empírico. Eu sei isso apenas pensando sobre o que é dois e o que é a operação de somar, de modo que eu justifico que dois mais dois é quatro apenas pensando sobre isso, eu justifico a priori. Mas imagina agora que esse gênio maligo é tão do mal que até isso ele nos faz errar. Toda vez que pensamos sobre dois mais dois ele, por pura maldade, resolve nos fazer enganar e dizer que é quatro. E ele é tão bom em cobrir seus passos que jamais saberíamos que estamos sendo enganados. E aí? Como poderíamos ter certeza sobre os próprios cálculos da matemática, que seria um refúgio para nossas certezas mesmo se estivéssemos sonhando?
Bom, nos encontramos no mesmo problema de pôr em dúvida nossos sentidos e justificações para o conhecimento empírico, mas agora ele se estende para certos conhecimentos a priori, ou seja, para justificações que fazemos apenas pelo pensamento. Descartes aceita esse argumento cético novamente. Se podemos meramente conceber a existência de um gênio maligno capaz de nos confundir quando fazemos cálculos matemáticos e certas inferências que são justificadas apenas pelo pensamento, então devemos considerar esses tipos de raciocínios passíveis de engano.
Se podemos nos enganar, de acordo com o método proposto por Descartes, devemos recusar. Estamos na tarefa de procurar algo que seja conhecido por nós de modo claro e distinto, que nenhum cético poderia atacar. Eis que o Descartes propõe o seu famoso Cogito. Vejamos as palavras dele:
“Resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeira que ilusões de meus sonhos. Mas logo em seguida adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade, eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava.”
– Discurso do Método. René Descartes.
O mesmo que acontece com a famosa frase “ser ou não ser, eis a questão” de Shakespeare, o cogito cartesiano, expresso pela frase “penso, logo existo”, se tornou um marco da literatura. No entanto, ainda que muito divulgado e difundido, poucas pessoas o compreendem de verdade. O cogito visa ser a pedra fundamental de todo o conhecimento. A ideia de Descartes é que se algo faz perguntas, questiona, então pensa. E se essa coisa pensa, podemos inferir que ela existe – visto que seria necessário que existisse algo para pensar. É indubitável que quando estamos questionando nossas justificativas para todo o conhecimento, quando estamos recusando tudo aquilo que podemos ter dúvidas, nós estamos pensando. Portanto, se estamos pensando, então existimos. Esta conclusão de Descartes seria conhecida de modo claro e distinto, algo que nenhum cético poderia pôr em dúvida. O cogito seria assim o princípio filosófico, o alicerce, para suas investigações.
Com o cogito Descartes também defende sua primeira principal tese: nós somos essencialmente uma substância pensante. O que nos torna existentes é a nossa capacidade de pensar, não termos ou não um corpo. Ou seja, ser um corpo não é parte da minha essência.
Mas o que nos assegura que o cogito está correto? Pelo fato de que ele é uma ideia clara e distinta, que vemos sua veracidade apenas ao pensar nela. Sempre que percebemos algo deste modo, ficamos certos de sua verdade. No entanto, se pensarmos sobre os objetos materiais e todas suas propriedades, Descartes afirma que as únicas coisas que conhecemos de modo claro e distinto são suas formas, tamanho e movimento. Eis que Descartes chega a sua segunda tese: a matéria é extensão em movimento.
Mas o que nos assegura que tudo o que reconhecemos como “claro e distintamente” é verdadeiro? A existência de Deus, que assegura minha existência como substância pensante. Portanto, Descartes fica obrigado a estabelecer a existência de Deus.
Os dois principais argumentos que Descartes apresenta à favor da existência de Deus são chamados de “argumentos ontológicos”, visto que visam assegurar a existência de Deus analisando o conceito da perfeição. Vejamos como eles se estruturam:
- Argumento Ontológico (a):
Temos em nós a ideia da perfeição. Ao observarmos certas propriedades, nós conseguimos muito bem compreender o que é ter essa propriedade instanciada perfeitamente. Por exemplo, quando olhamos para um prato circular nós compreendemos o conceito de círculo, mas a ideia que obtemos é imperfeita. Mas, ao extrapolarmos a ideia imperfeita de círculo, compreendemos de modo claro e distinto o que é um círculo perfeito, mesmo nunca tendo visto um. A ideia de perfeição, por sua vez, não poderia ser causada em mim por outra coisa que não um ser que é em si perfeito. Um ser imperfeito pode causar em mim uma ideia imperfeita. Como no exemplo do prato, que causa diretamente a ideia de um círculo imperfeito. Mas e a ideia de perfeição? Essa ideia tem de ser dada diretamente a nós. Se dissermos que conhecemos a perfeição por que primeiro conhecemos a imperfeição, e depois extrapolamos a ideia de imperfeição para enfim conhecer a ideia de perfeição, estamos pressupondo que já sabemos o que é a perfeição. Quando extrapolamos a ideia de imperfeição, o fazemos baseado no que é a perfeição. A ideia de perfeição não pode ser conhecida por nós desse modo. Ela deve, então, ser causada por um ser perfeito. Esse ser perfeito é Deus.
- Argumento Ontológico (b):
Deus, por definição, é um ser perfeito. Para ser perfeito, um ser deve incluir em si todas as perfeições. A existência parece ser uma perfeição. Pois pense, por exemplo, na extrema bondade, ou perfeição moral. Um ser que não existe não pode ser bondoso, pois a bondade implica que ele seja moralmente correto, e um ser inexistente não pode ser moralmente correto – um ser inexistente não age, não tem ações que possam ser corretas o incorretas. A perfeição moral implica, deste modo, que algo precisa existir para que possa ser moralmente perfeito. Assumimos que Deus é um ser que tem em si todas as perfeições, o que inclui a perfeição moral. Portanto, para que Ele seja moralmente perfeito, Ele deve existir.
Com esses dois argumentos Descartes pensa que estabelece a existência de Deus. Como vimos, estabelecer que existe um Deus bondoso garante, de acordo com Descartes, que quando reconhecemos algo de modo claro e distinto nós estamos justificados em acreditar que isso é verdadeiro. Isso permite que aceitemos o cogito como fundamento para nosso conhecimento.
Quando Descartes procura por um fundamento último para todo o nosso conhecimento, ele assume que todo conhecimento que obtemos da experiência são passíveis de erros. Com o argumento do sonho e do gênio maligno ele supõe que, não importa o que façamos, os nossos conhecimentos do mundo externo sempre podem ser falsos. Nada nos garante que não estejamos sonhando ou que não haja um gênio maligno. Desse modo, ao fundamentar o conhecimento, Descartes procura um conhecimento que sejamos capazes de justificar a priori. Ou seja, um conhecimento que não precisamos usar da experiência para sabermos que é verdadeiro. Como vimos, ele encontra no Cogito esse fundamento. No entanto, ao recusar que um conhecimento empírico possa ser o fundamento de todos os nossos conhecimentos, Descartes inaugura uma das principais correntes filosóficas da modernidade. Nomeadamente, ele funda o “racionalismo”. O racionalismo é a tese de que a razão, e não os sentidos, tem papel fundamental no processo de adquirir conhecimentos substanciais acerca da realidade. Como veremos a frente, o racionalismo opõe ao chamado “empirismo”, que é a tese exatamente oposta, isto é, que nossos sentidos tem o papel predominante na aquisição de conhecimentos substanciais acerca da realidade. Dito em outro modo, para o racionalismo o fundamento de toda a nossa estrutura de conhecimento se funda em conhecimentos a priori; enquanto que para o empirismo essa estrutura de conhecimento é fundamentada em conhecimentos empíricos, ou a posteriori.
Para entendermos Descartes precisamos ter sempre em nossa cabeça cinco coisas: (1) Seu objetivo; (2) O método cartesiano; (3) O que é o Cogito e como Descartes o fundamenta; (4) A distinção mente-corpo; (5) O racionalismo.
(1) Seu objetivo
Descartes tinha como objetivo descobrir os fundamentos do nosso conhecimento. Um fundamento tal que é indubitável e que, a partir dele, podemos justificar todos os nossos conhecimentos sobre a realidade.
(2) O método cartesiano
O método cartesiano se caracteriza pela a recusa de todo o tipo de afirmações que podemos, por algum motivo, ter dúvida. Ou seja, se algum cético pode questionar a veracidade de uma certa afirmação que aceitamos, então essa afirmação deve ser recusada.
(3) O que é o Cogito e como Descartes o fundamenta
Temos o objetivo e o método que ele usará. O Cogito, enfim, é o fundamento do nosso conhecimento tal como propõe Descartes. A ideia é que seria impossível algo pensar e não existir. Essa afirmação seria indubitável até mesmo para um cético. Como ele fundamenta o Cogito? Essa parte podemos subdividir em três perguntas: (a) O que garante que o Cogito está correto? O fato de conhecermos ele de modo claro e distinto. (b) O que me assegura o princípio de que qualquer coisa que eu veja clara e distintamente é verdadeiro? A existência de um Deus benevolente. (c) Mas o que nos garante que Deus existe? Os argumentos ontológicos.
(4) A distinção mente-corpo
Descartes, ao chegar no Cogito, afirma que o que garante nossa existência é sermos seres pensantes. Isso seria parte de nossa essência; não o nosso corpo. Além disso, quando voltamos nossa atenção para objetos materiais, nós não conhecemos – de modo claro e distinto – nada além de certas propriedades como forma, tamanho e movimento. Logo, a matéria é caracterizada como extensão em movimento.
(5) O racionalismo
Para Descartes, toda afirmação que só podemos conhecer através da experiência (ou seja, empiricamente) pode ser posta em dúvida. Sempre haverão argumentos céticos. Deste modo, para fundamentar todo o nosso conhecimento, precisamos nos assegurar de modo inquestionável da verdade desse princípio primeiro. Só podemos garantir a veracidade, fugindo dos argumentos céticos, de afirmações que podemos conhecer sem o auxílio da experiência (ou seja, conhecer a priori). Portanto, o fundamento para todo e qualquer conhecimento substancial sobre a realidade será fornecido apenas pela razão pura, e não pelos sentidos.