No decorrer das últimas semanas, um barulho midiático tem feito mais um desserviço para a divulgação científica. Não há problema em divulgar ciência de má qualidade. Qualquer cientista está sujeito a erros, e é justamente o debate que incentiva a melhora das pesquisas. O problema é quando essa divulgação vem acompanhada com preguiça de leitura e ausência de senso crítico. A grande mídia despreocupada em repassar informações com qualidade parece ter um caso de amor viciado com a revista Journal of Cosmology (JoC). Em mais um caso de descuido para com o leitor interessado em ciência, vejamos o que aconteceu.
Em tradução livre, o resumo do artigo que andou sendo comentado ficaria algo do tipo: “Uma esfera de diâmetro de 30 mícrons foi isolada da estratosfera a uma altitude entre 22 a 27 quilômetros. Verificou-se que ela é composta principalmente por titânio (com uma quantidade menor de vanádio). Nanomanipulação e análise por EDX mostraram que o titânio da esfera contém um material carbonáceo não granular que sugerimos ser um protoplasma biológico. Cortes na superfície da esfera revelaram um material carbonáceo, filamentoso com uma ‘aparência tricotada’, que também sugerimos ser de natureza biológica. A esfera de titânio produziu uma distinta cratera de impacto quando chocou-se contra o suporte de amostragem de carbono. Concluímos sugerindo que esta esfera composta principalmente de titânio contém elementos biológicos que se chocou contra o suporte de amostragem a alta velocidade enquanto fazia sua jornada do espaço para a estratosfera.”
Após a leitura do artigo, algumas observações merecem destaque:
- Em nenhum momento do texto é citado termos como “extraterrestre”, “aliens” ou “ufo”. O que nos faz recordar que o excesso de má vontade de alguns meios de comunicação é alarmante. Sequer devem ler o resumo e a conclusão;
- Segundo os autores, as esferas de titânio conteriam em seu interior material de natureza biológica. São duas as principais alegações que sustam essa tese:
- As camadas internas das esferas contêm materiais carbonáceos, ou seja, compostas por carbono e oxigênio. Problema da hipótese: O artigo só apresenta uma única técnica para evidenciar qualitativamente a presença de carbono e oxigênio. Não houve esforço no sentido de explorar outras técnicas analíticas para quantificar e qualificar os componentes presentes. Um suporte mais aprofundado da hipótese dos autores deveria, pelo menos, apresentar análises de prováveis biomoléculas (como DNA, RNA, aminoácidos, etc.).
- O suposto material carbonáceo apresenta apresenta uma forma fibrosa “tricotada”, que se assemelha a formas biológicas como fungos e algas. Problema da hipótese: A análise visual de microestrutuas é muito fraca se tomada isoladamente (sem nenhuma outra análise de suporte). Em outros momentos, os autores sugerem que a coleta deles sugerem a presença de entidades biológicas. Alguns têm extrapolado e dizem que são evidência de organismos vivos. Essa alegação é no mínimo infantil: Basta ser um material carbonáceo que é vivo. Se assim fosse até grafite passaria no teste.
Um dos casos mais conhecidos de queda de material extraterrestre é o ALH48001, descoberto na Antártida em 1984. Após anos de debates e análises químicas e biológicas extensas, a maioria dos cientistas que estudaram o caso concordam que a imagem coletada (supostamente um microfóssil) é na verdade uma estrutura de formação inorgânica (ou seja, não é vida fóssil), que aliás é muito comum de se ver em rochas.
– Os autores alegam que não conhecem mecanismos que possam levar a altas altitudes materiais do tipo que eles coletaram. Considerando que a coleta foi idônea, não parece ser tão misterioso elaborar prováveis mecanismos desse tipo. De fato, organismos descobertos na estratosfera não é nenhuma novidade. E mesmo que esses mecanismos ainda não sejam completamente conhecidos, isso não implica origem extraterrestre desses materiais. Aliás, o artigo deixa muito a desejar em explicações que evitassem possíveis contaminações nas análises. E mais, esferas de titânio advindas da atmosfera não é um fenômeno raro.
– Seguindo a tendência de outras publicações da JoC, as alegações são mais extraordinárias que as evidências disponíveis. O que está em questão aqui é: Material carbonáceo não implica “material vivo”. Honestamente, os autores não dizem que o material é composto de organismos vivos (a má divulgação que faz isso). Ainda assim, sugerem que o trabalho (junto com os demais da revista) apontam para a existência de um fluxo contínuo de material biológico caindo na superfície da Terra. Acontece que as evidências que suportam a existência de material biológica não são apenas parcas, mas também, mesmo que sejam boas, a hipótese mais plausível é que seja material terrestre e não extraterrestre.
– Evidências intrigantes seriam, por exemplo, se os autores mostrassem que o material biológico é composto de aminoácidos dextrógiros [desviam o plano da luz polarizada para a direita] (os aminoácidos dos organismos da Terra são levógiros), ou mostrassem nucleotídeos diferentes dos que compõem os organismos na Terra.
– De maneira geral, falta aos autores reconhecerem hipóteses alternativas. Como é típico do histórico da JoC, a postura de seus autores é mais parecida com uma seita do que com ciência disposta a encarar o escrutínio.
– Um problema geral da divulgação científica (que serve de alerta aos leitores), é quando o autor confunde teoria com hipótese e correlação com causa e consequência. No caso desse artigo, foi encontrado a frase “Uma teoria é de que a esfera tenha sido enviada por alguma civilização desconhecida para continuar semeando o planeta com vida”. Não, não é teoria coisa alguma. A própria pansperia está longe de ser uma teoria científica. É uma hipótese que até tem bons argumentos, embora as evidências disponíveis ainda não sustentam status epistemológico de teoria científica. E correlação só teria sentido em falar no caso de uma análise estatística. Mesmo que aliviássemos o conceito, o artigo em questão está longe de mostrar correlação empírica entre material carbonáceo (se realmente é) e origem extraterrestre. Muito menos que uma coisa é consequência da outra.
O histórico da JoC vai acumulando eventos cada vez mais vexatórios. Em 2011, um trabalho liderado por Richard Hoover fez barulho com o grande público. Sobretudo porque Hoover é um cientista da NASA e sua alegação foi extraordinária: Ter encontrado sinais de vida em um pedaço de rocha marciano. A notícia foi viral, mas não demorou muito para ser totalmente atacada e mostrado que ainda estamos sem a tal evidência. [curiosidade cômica: Hoover ganhou o prêmio Pigasus da fundação James Randi pela sua infundada alegação; a data do anunciamento é usualmente ocorrida no dia 1° de Abril, e a isso sugere bastante sobre o teor da premiação]. Em 2013 a JoC aparece novamente na mídia barulhenta com supostas evidências de diatomáceas de origem extraterrestre.
A maneira como parte da mídia lida com ciência de qualidade ruim é espantosa. Títulos hororosos como “Esfera de metal vinda do espaço expele material biológico e intriga cientistas” , “Aliens em esferas de titânio estão entre nós” e “É esta imagem que a “semente” enviado à Terra por alienígenas? Cientistas descobrem um misterioso organismo” são facilmente encontrados. O que confirma análises como as feitas pela filósofa Susan Haack: A mídia faz muito o uso honorífico da ciência, ou seja, não está preocupados com as evidências, mas com a propaganda. E há algo de muito pernicioso nisso tudo. Não parece ser apenas uma questão de preguiça intelectual, mas de desonestidade. Difícil encontrar outro diagnóstico quando um título traz estampado coisas que nem mesmo o artigo alega. Se a ciência da Journal os Cosmology é ruim, sua divulgação é pior ainda.