Por Mario Bunge
Publicado na Skeptical Inquirer
O espiritualismo é a crença na existência real de entidades imateriais, como anjos, fantasmas e almas livremente itinerantes. A desmaterialização é a tentativa de livrar as ciências do conceito de matéria, substituindo assim materialismo com espiritualismo.
A medicina alternativa é provavelmente a mais popular e o empreendimento espiritualista mais bem pago, como mostram as muitas clínicas que oferecem tratamentos acupunturistas, homeopáticos e quiropráticos (Randi 1982; Sanz 2016). Contrariamente a uma crença generalizada, a clientela dessas práticas não são pessoas sem instrução formal, mas pessoas que já ouviram sobre elas em escolas e universidades (Alcock 2018). Nós as rejeitamos não por causa do viés filosófico, mas porque elas falharam nos testes experimentais, além de não terem exibido os mecanismos de sua eficácia pretendida (Bunge 2013).
Assim, as panaceias homeopáticas são principalmente água, o que explica por que elas são geralmente inofensivas, exceto quando elas desviam as pessoas muito doentes de tratamentos com base científica. O pintor Wassily Kandinsky (1912) deu talvez a melhor descrição da desmaterialização nas artes plásticas. Ele se esforçou para substituir a forma por conteúdo ou matéria, como em suas próprias pinturas, em particular suas composições, e as de Paul Klee, Piet Mondrian e a de alguns dos surrealistas. Por exemplo, vejo as “composições” de Kandinsky como decomposições ou desintegrações e não posso deixar de me divertir com os paradoxos de Magritte.
É claro que nenhum dos chamados artistas abstratos conseguiu eliminar a matéria, pois eles trabalhavam com pincéis e telas ou cinzéis e blocos de mármore, todos os quais são entidades materiais. O que eles fizeram foi pintar ou esculpir coisas não-representativas. Ou seja, eles criaram obras de arte desprovidas de traços e sistemas e, portanto, capazes de evocar diferentes ideias em distintos espectadores. Em suma, eles não produziram nada abstrato, uma vez que apenas os matemáticos lidam com abstrações, como conjuntos e redes de elementos indescritíveis.
O espiritualismo e a cruzada da desmaterialização prosperaram quase em todos os lugares – exceto na engenharia, na química, na escrituração contábil e na lei. Por que essas exceções? Contrariamente às expectativas ingênuas, a física contemporânea está repleta de crenças espiritualistas e tem sido o berço do que pode ser chamado de “cruzada da desmaterialização”. Esse movimento tentou expulsar a matéria da ciência e tentou nos fazer crer que os físicos a substituíram pela palavra observador – ou, como Joseph Bell o pôs, substituindo “observável” por “sedível”.
Em 1921, o grande lógico Bertrand Russell rejeitou a divisão matéria/mente e propôs o monismo neutro (Russell 1921). Essa proposta não ajuda o médico que tem de optar entre a pílula e a oração ou o engenheiro que deve aceitar ou rejeitar a sugestão de que ele deve preferir tapetes mágicos às aeronaves. Não admira que o monismo neutro tenha sido esquecido. Nem levamos a sério a ideia de Russell (1927) de que a matéria é uma construção lógica, uma vez que os estudantes de entidades materiais ignoram a análise lógica. A lógica é admirável, mas o imperialismo lógico é incapaz de lidar com a manipulação da matéria de fato.
O eminente astrofísico Arthur Eddington (1939) alegou que poderia calcular todas as constantes universais da física sem usar quaisquer dados empíricos. Mas ele não convenceu ninguém, e Max Born (1943) publicou uma crítica contundente ao apriorismo de Eddington, e sua tentativa foi um episódio isolado. A cruzada da desmaterialização na ciência foi lançada no final do século XIX por Ernst Mach (1890[1914]), o primeiro a observar e a medir as balas que se deslocam em velocidades supersônicas. Mach também tentou a mecânica toroidal do conceito de massa, redefinindo-o em termos de aceleração. Para atingir esse objetivo, ele começou com o postulado de Newton “Força = Massa X Aceleração” e criou um círculo vicioso (Bunge 1968). Mas tal falha lógica não é nada comparada ao seu tratamento de aceleração como qualquer outra coisa senão a mudança da velocidade de um pouco de matéria. Isso se torna óbvio quando a aceleração é analisada como uma função do produto cartesiano dos seguintes conjuntos: o conjunto P de bits genéricos da matéria, o conjunto F de quadros de referência, o conjunto T de instantes de tempo e o conjunto U de unidades como cm.sec-².
Na ciência, a Cruzada da Desmaterialização culminou, no final do século passado, com o distinto programa “its de bits”, do teórico eminente John Archibald Wheeler, que pretendia substituir pedaços de matéria por pacotes de informação (Barrow et al. 2004). Uma objeção a essa tentativa é que o foco na informação não nos autoriza a esquecer que toda grandeza física é propriedade de algo material, enquanto o bit é uma unidade da informação que viaja ao longo de um canal de comunicação, como uma linha telefônica, cada bit passa onde é material. Assim, o bit imaterial fica no canal de comunicação material.
O argumento mais forte para a substituição da “matéria” por “observável” foi a interpretação de Copenhague da teoria quântica defendida por Niels Bohr, Werner Heisenberg e outros fundadores da teoria. O núcleo dessa escola é a crença de que todas as coisas e propriedades microfísicas são dependentes da mente. Essa tese está aberta a uma série de objeções, entre elas que os observadores são compostos de entidades microfísicas, e que as ciências históricas mostraram que as coisas físicas existem muito antes do nascimento da microfísica há cerca de um século.
A teoria da relatividade especial foi outra vítima do espiritualismo, com a força da confusão do “quadro de referência” com “observador”, e do “relativo” com “aparente” e “subjetivo”. O fato de que a teoria é usada na astrofísica para explicar uma série de processos físicos em cantos desabitados do universo prova que as identificações indicadas são realmente incorretas. Em particular, a expressão “massas são relativas” é abreviada para “os valores de massa são relativos ao quadro de referência”. Mais concisamente, Quadro de Referência ≠ Observador, por conseguinte, Relativo a um Quadro de Referência ≠ Observador-Dependente, onde os Quadros de Referência são entidades materiais, como giroscópios, dotados de direções espaciais e relógios. (Cuidado: não confunda itens de material com sistemas de coordenadas. Os sistemas de coordenadas são representações matemáticas de quadros de referência.)
A biologia foi outra ciência que até cerca de 1900 estava comprometida com entidades imateriais, como élan vital (força vital) e Bildungskraft (força construtiva), bem como o direcionamento ao objetivo (Mahner e Bunge 1997). Esses remanescentes do pensamento mágico foram deixados de lado como tantos resíduos obscurantistas do pensamento pré-científico pelos reducionistas fisicalistas do início do século XX. De fato, alguma teleologia permaneceu, mas apenas na psicologia e nas ciências sociais, onde se referem às atividades de ações dos atores.
A psicologia é talvez a única ciência onde as ideias espiritualistas ainda são influentes, como demonstrado pela resiliência do dualismo mente-corpo, a psicanálise e os mitos sem cérebro, como a proverbial “mente sobre as ações cerebrais”, cuja tradução científica é, certamente, “córtex cerebral sobre ações imunológicas”, exemplificada pelos efeitos placebos.
A ciência social é o último e prestigioso refúgio do espiritualismo. De fato, as teorias sociais ensinadas na maioria das universidades envolvem itens imateriais, como a mão invisível, o livro comércio, o poder do consumidor e a sabedoria do mercado. As pessoas que invocam tais ideias negligenciam os monopólios, as agressões militares lançadas para proteger poderosos interesses privados e os ideais supostamente liberais que protegem esses interesses.
Por que engenheiros, advogados, especialistas em gestão e corretores escaparam das armadilhas espiritualistas? Sugiro que esses especialistas ofereceram conselhos a clientes intransigentes que buscavam resultados práticos, e não as piedades dos crentes no poder das ilusórias ideias autoexistentes e autoativas.
Afaste-se um passo da engenharia materialista e você encontrará a arquitetura, que acolheu vários gurus espiritualistas, bem como práticas esotéricas, como o feng shui (Matthews 2018). Por que os praticantes de tais superstições prosperam? Porque eles encontraram muitos clientes, principalmente indivíduos particulares, em vez de homens de negócios ou funcionários do governo. Essas pessoas podem ser enganadas por ideias vestidas de jargão moderno, não por mitos antigos.
Para concluir, o que a Cruzada da Desmaterialização agregou ao certificado corpo de conhecimento e qual é o estado atual do materialismo na ciência? Embora muitos dos proponentes do desmaterialismo tenham sido cientistas ilustres, eles ganharam suas reputações inventando teorias ou métodos que tinham pouco ou nada a ver com a referida cruzada.
Por exemplo, reverenciamos Niels Bohr por seu modelo atômico inicial e não por seus escritos filosóficos em favor do “espírito” de Copenhague. Quanto ao destino do materialismo, basta lembrar os avanços da física da matéria condensada desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ou as mudanças econômicas provocadas pela comercialização de muitos materiais sintéticos ao longo do século passado: semicondutores, aço inoxidável, supercondutores, óleo sintético, borracha sintética, fulerenos e fibras sintéticas, como o nylon, o rayon, o velcro e o kevlar.
Há ainda alguém interessado em jogar com o tabuleiro Ouija?
Referências
- Alcock, James. 2018. Belief. Amherst, NY: Prometheus Books.
- Barrow, John D., Paul C.W. Davies, and Charles L. Harper Jr., eds. 2004. Science and Ultimate Reality. Cambridge: Cambridge University Press.
- Born, Max. 1943. Experiment and Theory in Physics. Cambridge: Cambridge University Press.
- Bunge, Mario. 1968. On Mach’s nonconcept of mass. American Journal of Physics 36: 167.
- ———. 2013. Medical Philosophy. Singapore: World Scientific.
- Eddington, Arthur. 1939. The Philosophy of Physical Science. Cambridge: Cambridge University Press.
- Kandinsky, Wassily. 1912. Uber das Geistige in der Kunst, Besonders Malerei.
- Mach, Ernst. 1890 (1914). The Analysis of Sensations. Chicago: Open Court.
- Mahner, Martin, and Mario Bunge. 1997. Foundations of Biophilosphy. Berlin, Heidelberg, New York: Springer.
- Matthews, Michael. 2018. Feng shui: Educational responsibilities and opportunities. In M.R. Matthews, ed. History, Philosophy and Science Teaching: New Perspectives. Dordrecht: Springer, 3–41.
- Randi, James. 1982. Flim-flam. Amherst, NY: Prometheus Books.
- Russell, Bertrand. 1921. The Analysis of Mind. London: George Allen & Unwin
- ———.1927. The Analysis of Matter. London: Routledge & Kegan Paul.
- Sanz, Victor-Javier. 2016. Las terapias espirituales. Pamplona: Laetoli.