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A cura quântica possui respaldo científico?

Por Thiago M. Guimarães
Publicado na
Simetria de Gauge

Como eu já disse nesse texto aqui, O Gato Zumbi de Schrödinger e o Colapso da Função de Onda, eu odeio escrever sobre mecânica quântica porque eu sempre tenho dor de cabeça com “místicos quânticos”. Eu descumpri minha promessa pessoal escrevendo sobre o gato de Schrödinger e agora estou descumprindo mais uma vez, porém de forma ainda mais grosseira. Hoje vou falar sobre Cura Quântica, esse tema é bem controverso e perigoso por dois motivos: (I) rola uma grana muito alta em cima disso; (II) as pessoas defendem o assunto como se fosse religião e time de futebol.

Vamos ao assunto. Há muito tempo que discuto sobre ciência e pseudociência, e esse assunto me desgastou tanto que eu resolvi colocar ele dentro de uma capsula de chumbo coberta com concreto e jogar no fundo da Fossa das Marianas. Porém, essa semana a coisa ficou feia. Tudo começou com essa notícia da Folha: “Feira de medicina quântica tem desde ‘essência de golfinhos’ até água ‘carinhosa’”, logo depois me deparo com isso no meu feeds do Facebook: “Medalhão Quântico – Cromado – Com Vídeo Teste De Qualidade”, aí eu não aguentei e resolvi escrever esse texto, não porque eu sou um físico dodoizinho, butthurt, NÃO! (tá, talvez eu seja um pouco), mas sim porque um enorme problema surge quando começam a usar um ramo sério da ciência para vender técnicas de curandeirismo e objetos “quânticos” que tratam desde mal olhado até ebola.

Como vocês devem saber, eu sou meio Jack Estripador, gosto de ir por partes para organizar o conteúdo. Então, vamos começar olhando um pouco para o passado.

No século XIX, o eletromagnetismo estava em alta, havia muita discussão e dúvida acerca das propriedades eletromagnéticas da matéria, de onde elas vinham, porque exatamente existiam, além da concepção de éter muito presente na ciência desse período. Mais ou menos na mesma época dos trabalhos de Maxwell surgiu o espiritismo na Europa (ok, não me crucifique se você for espírita, só estou tratando de história), que, por sua vez, tinha a postura peculiar de querer se apoiar na ciência e com isso se apossou de alguns termos científicos, como o éter e o eletromagnetismo, que estava começando a ser entendido, mas era o grande mistério da época assim como foi com a quântica há pouco tempo.

Com o caminhar da ciência, o eletromagnetismo foi desmistificado e ficou sem graça, a hipótese do éter foi derrubada no começo do século XX e na mesma época nos deparamos com um novo mistério: a Mecânica Quântica (MQ). Essa, por sua vez, era ainda melhor que o eletromagnetismo para se assimilar com espiritualidade, pois era mais difícil de entender e o adjetivo “Quântica” dava um ar de modernidade, complexidade e de “científico” ao assunto.

Por volta da década de 1970, o físico Frijot Capra publicou o livro “O Tao da Física”, que fez um paralelo entre a física moderna e conhecimentos orientais. Quando nossos queridos amigos místicos se depararam com isso logo abraçaram a ideia e passaram a implementá-la na forma de ver o mundo. Tivemos um surto de seitas quânticas, objetos quânticos, livros quânticos, chegando a absurdos como “direito quântico”, “sexo quântico”, “marketing quântico”, “dieta quântica” e “insira-uma-palavra-aqui quântico”. A vantagem de se juntar o “quântico” como adjetivo a qualquer coisa é que quase ninguém consegue contestar por falta de conhecimento, além de ser mais encantador aos olhos dos leigos.

Tudo muito bem, tudo muito bom. Uma grande quantidade de físicos resolveu ganhar dinheiro e deixar de pesquisar para começar a vender livros de autoajuda. Surgiram filmes legais (SIC), como o “Quem Somos Nós” e “O Segredo”, mas agora o que temos que nos perguntar é: sendo a quântica fruto da nossa ciência moderna, até onde essas “coisas” quânticas são de fato ciência? Obviamente que a resposta não é nada trivial, pois é quase impossível traçar uma linha clara entre ciência e pseudociência. Então, vamos nos focar no que possui embasamento em pesquisas científicas sérias.

Por pesquisa científica entenda que o que estamos procurando são publicações sérias em periódicos revisados por pares e de qualidade. Nós que trabalhamos na área temos acesso à uma plataforma de pesquisa de periódicos chamada de Web of Knowledge, lá estão as publicações do mundo inteiro, basicamente em todas as áreas da ciência. Resolvi fazer uma busca por palavras-chave associadas ao misticismo quântico, abaixo você pode ver os resultados:

Vou fazer questão de explicar direitinho o que eu fiz e comentar esses “artigos”. Primeiramente, eu fiz pesquisa pelas palavras-chave “Quantum Health” e “Quantum Healing”.

Primeira Busca – Quantum Health

Artigos encontrados:

The Body Quantum, The New Physics of Body,  Mind and Health

O Autor é: SCHMECK, HM. (Sim, só um autor!)

Foi publicado no New York Times e não em um periódico.

Não teve nenhuma citação¹ e usou apenas uma fonte.

Isso nem pode ser considerado um artigo, mas um texto!

Quantum wellness: A practical and spiritual guide to health and happiness

Novamente, só tem um autor. Foi publicado na “LIBRARY JOURNAL”. Nenhuma citação, usou só uma fonte e, assim como o anterior, não tem um resumo e nem o texto completo em PDF para sabermos do que se trata. Isso também não pode ser considerado um artigo, muito menos ciência!

The Twilight Zone: a paradigm shift or a quantum leap for mental health nurses working in Youth Early Psychosis?

O mantra de sempre: Um autor, zero citações, blablablabla… Ah, o periódico que foi publicado tem fator de impacto² 1,6, para título de comparação a Nature possui fator de impacto maior que 30.

Na nossa primeira busca obtivemos apenas três textos que estão LONGE de serem artigos e mais longe ainda de serem pesquisas científicas. Os textos da imagem que não estão descritos aqui não têm relação com cura quântica.

Segunda Busca – Quantum Healing

Aqui tivemos resultados mais interessantes:

Theoretical Approaches on the Faith Element of Healing Under Traditional Medicine Psychosomatic Medicine, Placebo Effect, Quantum Healing

Novamente, um autor e zero citações. A publicação foi feita em um jornal especializado em Cultura. Mas aqui tem resumo ao menos. Do que dá para entender parece que o autor enquadra a cura quântica em efeito placebo. Mas, infelizmente, não dá para concluir nada, pois o “artigo” não está disponível na integra.

Consciousness and nonlocality (Reprinted from Quantum Integral Medicine: Towards a New Science of Healing& Human Potential, 2005).

Finalmente, um “artigo” com uma citação. Apenas um autor e a publicação foi feita na “ALTERNATIVE THERAPIES IN HEALTH AND MEDICINE”, que possui fator de impacto 1,77. Infelizmente, não tem nem resumo nem “artigo” completo.

Quantum transformation in trauma and treatment: Traversing the crisis of healing change

Aqui o nosso recordista de citações: 5, incríveis 5 citações em 7 anos de publicação. Novamente, ele só tem um autor e foi publicado no JOURNAL OF CLINICAL PSYCHOLOGY, que tem fator de impacto 1,66.

O resumo fala sobre uma suposta técnica, que NUNCA foi testada e por isso é chamada apenas de “ideia”. Como era de se esperar, tem maluquices quânticas como essa “particularly when occurring in quantum leaps, evokes, and illustrate the phenomenology of cascading transformations. They illustrate how the therapist’s emotional engagement and attachment orientation”…  (cadê o sentido disso?)

Randomized Expectancy-Enhanced Placebo-Controlled Trial of the Impact of Quantumbioenergetic Distant Healing and Paranormal Belief on Mood Distubance: A Pilot Study.

Até agora, essa é a única publicação com mais de um autor. Novamente, zero citações e foi publicada no EXPLORE: The Journal of Science and Healing, que, por incrível que pareça, pertence a Elsevier. Eu consegui o paper e logo abaixo tem um print dele (tente acessá-lo por aqui). Analisando o paper, vê-se que de fato se parece mais com uma pesquisa científica do que os outros, nota-se que ele possui método definido, análise, resultados… tem basicamente tudo!

Os autores são?

– Adan J. Rock – Trabalha com cognição e ciências sociais na University of New England, na Austrália

– Fiona E. Mermezel – Trabalha na escola de medicina na University of Melbourne, Austrália também

– Lance Storm – Trabalha na escola de Psicologia da University of Adelaide, também na Austrália

Ok, cadê os físicos? Tem quântica e não tem físico? Vou começar a escrever artigos na área de otorrinolaringologia…

O resumo está escrito aqui:

“Previous research has demonstrated the effects of ostensible subtle energy on physical systems and subjective experience. However, one subtle energy technique that has been neglected, despite anecdotal support for its efficacy, is Quantum BioEnergetics (QBE). Furthermore, the influence of paranormal belief and experience (either real belief/experience or suggested belief/experience) on subtle energy effects remains unclear.”

Como vocês podem ver, eles trabalham com a existência da Energia BioQuântica (QBE), que, por sua vez, não possui comprovação científica. Como foi destacado no próprio “artigo”:

É possível ver que a QBE, criada por Ms. Melissa Hocking que hoje é instrutora de QBE, foi publicado como livro de “métodos de cura alternativos” que é bastante divulgado no meio de publicações New Age. Sendo assim a pesquisa acima parte do pressuposto de que essa “energia” existe de fato, mesmo ela nunca tendo aparecido em nenhum outro paper. Olhando para esse próximo print abaixo, vemos que eles alegam que o Quantum do nome apenas faz referência a um tipo de “emaranhamento” entre o paciente e o médico e que não possui nenhuma base empírica e/ou teórica para o uso da palavra, sendo assim não se encaixa exatamente em cura quântica:

Assim, podemos ver claramente que não existe publicação científica na área de cura quântica propriamente dita. Não estou dizendo que é mentira, estou dizendo que não é ciência! E esse ponto eu quero abordar com mais precisão, pois sempre que vejo pessoas falando sobre esse assunto é utilizado jargões científicos em larga escala, além de fenômenos como “salto quântico” (essa é a nova moda), propriedades dos elétrons, ondas, partículas, campos, incerteza, colapso da função de onda, etc. Mas quando são contestados de que a ciência não prova nada do que é afirmado e que estão fazendo uso indevido desses jargões, as respostas são sempre as mesma “você tem que abrir sua mente”, “nossa ciência ainda é atrasada”, “você é muito cartesiano”, “a ciência não é dona da quântica”, “ninguém aqui disse que é ciência”. E eu acho todo esse “argumento” uma enorme paralisia mental e um uso egoísta da ciência como objeto descartável.

A partir do momento que esses líderes de seitas se dizem baseados em ramos da ciência, usam os mesmos termos usados pelos cientistas e se dizem embasados por experimentos fica descarada a sua tentativa de vender a ideia como científica, como sólida. Nesses termos a ciência passa por um item de conveniência apenas; enquanto ela corrobora para o que se acredita é usada como propaganda, quando ela contradiz é rebaixada e criticada. A mística quântica é vendida como se fosse ciência e defendida como se fosse religião, o que para mim torna esse assunto irritante demais de se tratar.

Um ponto problemático e que ajuda a embasar esse “boom” de coisas quânticas é a visão estupidificante e absolutamente errada de  que “A quântica é uma terra sem lei” (Estou olhando para você, Super Interessante!) ou que ninguém entende nada dela³. A Mecânica Quântica não é uma terra sem lei, não é a casa da mãe Joana, não é o bordel da luz vermelha. Embora ela seja probabilística, isso não a impede de ter leis claras que conseguimos compreender e trabalhar com elas em laboratório, além de conseguirmos aplicar em uma imensidão de tecnologias.

Ilustrando melhor, quando trabalhamos com o átomo de hidrogênio, por exemplo, nós sabemos qual energia esperar para o elétron em sua eletrosfera, sabemos o spin do elétron e do próton que forma o núcleo, conhecemos o momento angular orbital total, etc. Nós podemos também calcular a probabilidade de encontrar o elétron em uma determinada região da eletrosfera, mas logo notaríamos que em alguns lugares essa probabilidade é zero. Ou seja, não existe possibilidade alguma de se encontrar o elétron em determinada regiões específicas da eletrosfera de um átomo de hidrogênio (veja o gráfico abaixo). Da mesma forma, para muitas leis da mecânica quântica é possível calcular a probabilidade para o que quisermos, como afirmam os textos que dizem que a MQ é uma terra sem lei, porém em várias situações essa probabilidade será zero, mostrando claramente que aquilo não é permitido!

Os picos representam as regiões de maior probabilidade de se encontrar o elétron enquanto que as regiões mais baixas (que encostam no eixo inferior) possuem probabilidade zero de encontrar o elétron.

A quantização de propriedades como energia e momento angular por exemplo, são na realidade limitantes, pois com a quantização essas propriedades podem assumir apenas valores específicos e não valores contínuos como na mecânica clássica. Esse é apenas um panorama altamente superficial para que você possa notar que a mecânica quântica tem muitas leis, algumas delas são de fato difíceis de se observar ou compreender, mas elas existem e são rigorosamente cumpridas. Espero em próximo texto poder tratar isso de forma mais aprofundada.

Para encerrar, eu acho que essa mística quântica vende tanto assim porque ela pega justamente na necessidade infantil de o ser humano se sentir importante para o universo. Para muita gente é difícil viver com a ideia de que ela não comanda tudo a sua vontade ou que o “cosmo” não conspira a seu favor, então obviamente que muitos irão adorar ler sobre isso e defender apaixonadamente. A vocês que pensam assim só tenho uma coisa a dizer: Sinto muito, mas quanto mais estudamos, mais vemos que quem manda no jogo é o universo, e ele está totalmente alheio as nossas necessidades infantis de satisfazer nosso ego.

Queria deixar claro também, que assuntos como consciência quântica, cura quântica e vários outros que se encaixam na categoria de pseudociências devem sim ser estudados com o rigor da ciência, mas não da forma apaixonada que é feita por alguns “pesquisadores” atualmente. Apenas com estudos sérios conseguiremos de fato enxergar mais longe sem nos deixar enganar.

O texto ficou enorme, mas espero que tenha ficado claro que não existe base científica para a cura quântica e nem para seus produtos. Também espero que tenha ficado claro que não existe “terra sem lei” se tratando da mecânica quântica.

Notas:

  1. “Citações” se referem a quantas vezes aquele artigo foi utilizado por outros pesquisadores em papers da área. No caso, a relevância de um paper pode ser vista também por sua quantidade de citações.
  2. “Fator de Impacto” mede a relevância dos periódicos, quando eles possuem um F.I baixo significa que quase ninguém a dá mínima para aquele periódico.
  3. Nem perca seu tempo vindo me dizer que o Feynman disse que “quem acha que entendeu quântica significa que não entendeu nada”…

Reforçando: não vou aceitar comentários falaciosos defendendo misticismo quântico e nem venha com aquele papo de que isso humaniza a ciência, pois isso demonstrar um puta desconhecimento de como as ciências naturais e humanas funcionam!

Thiago M. Guimarães

Thiago M. Guimarães

PhD em Física pela Universidade Estadual Paulista.