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A origem do SARS-CoV-2 – Parte 2

A ideia desse conjunto de textos não é ser um compêndio técnico sobre o COVID-19 ou mesmo o SARS-CoV-2, mas repassar informações iniciais sobre ambos, com literatura científica recente, auxiliando na difusão de informações referente a essa pandemia.

Na primeira parte desse artigo, eu apresentei alguns detalhes sobre os primeiros casos de COVID-19, o sequenciamento da primeira cepa isolada do SARS-CoV-2 e algumas informações sobre sua genômica estrutural e funcional, além das primeiras comparações genômicas com a cepa do SARS-CoV.

Nas próximas partes, pretendo estender as informações sobre as comparações genômicas do SARS-CoV-2 com outras cepas de diferentes hospedeiros e discutir sua relação com os morcegos e pangolins, tentando estabelecer seu hospedeiro de origem.

Mas antes disso, vamos falar sobre ficção científica e teorias da conspiração.

Made in Natureza ou Made in China?

Enquanto diversos pesquisadores levantavam hipóteses evolutivas sobre a origem do SARS-CoV-2, embasados principalmente nos primeiros sequenciamentos e nos dados já disponíveis de outras cepas, como a SARS-CoV, outra hipótese (se é que podemos classificá-la assim) começava a ser difundida na internet.

Essa pseudo-hipótese afirmava que o SARS-CoV-2 e o COVID-19 haviam sido criados em um laboratório na China e que teriam sido disseminados no mundo com os mais variados objetivos, sendo o domínio socioeconômico mundial a principal meta.

Ignorando as pequenas variações da motivação chinesa, as explicações apresentadas pelos defensores dessa ideia condiziam com os objetivos de qualquer vilão genérico de filme ou livro de baixa qualidade e criatividade. Ou do Pink e o Cérebro, o Cérebro e o Pink, o Pink…

Não ligo. Eu amo o Pink e Cérebro e seu plano chinês de dominar o mundo com o COVID-19.

Para embasar essa história, os autores utilizaram como evidência uma reportagem veiculada no quadro sobre ciências de um telejornal da emissora de TV italiana RAI, o TGR Leonardo, em 2015.

Segundo o apresentador:

Cientistas chineses criaram um super-vírus pulmonar à partir de morcegos e ratos. Serve apenas para fins de estudo, mas há muitos protestos. Vale a pena arriscar?

Lenda Urbana do COVID-19 criado em laboratório da China.

Essa informação foi compartilhada ao longo do tempo em diferentes redes sociais e ferramentas de mensagem, como o Whatsapp, se tornando rapidamente em uma lenda urbana nos cantos mais obscuros da internet. Mas, como toda lenda urbana, a história do vírus criado (modificado) artificialmente em laboratório acabou encontrando na mídia de massa um espaço.

Depois de quatro anos da matéria original, um artigo assinado por Oswaldo Eustáquio em 2020 e veiculado no portal Agora Paraná, na sessão de Política (esperado), voltava a descrever o caso de 2015 e agora correlacionava essa criação com o SARS-CoV-2. O texto carregado de críticas políticas, principalmente para o Partido Comunista da China e a esquerda italiana, buscava minar qualquer argumento sobre a falta de correlação entre o SARS-CoV-2 e o caso de 2015. Seguindo o modelo de outros artigos que se espalhavam ao redor do mundo, o texto não buscava apresentar qualquer evidência que comprovasse sua correlação, mas utilizava de apelo à racionalidade e argumentos desconexos para cativar o leitor, principalmente os já propensos em acreditar em teorias da conspiração. E como esperado, esse objetivo deu certo!

Postagem do Oswaldo Eustáquio no Twitter se referenciando ao compartilhamento do ex-vice-premiê da Itália, Mateo Salvini, sobre a reportagem do RAI em 2015.

Diversas postagens de redes sociais surgiram, com algumas sendo compartilhadas milhares de vezes. Alegações semelhante apareceram em múltiplas postagens no Facebook, Twitter e YouTube, somando mais de 4 mil compartilhamentos e 54 mil visualizações. No Brasil, essa narrativa atingiu a classe política, principalmente os que já eram propensos a acreditar na manipulação de informações do governo chinês, sendo um dos grandes exemplos o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, que ao replicar essas informações acabou gerando uma crise diplomática com a China.

A reportagem da RAI também foi publicada, em 25 de março, pelo ex-vice-premiê da Itália, Mateo Salvini, com a informação de que seu partido, a Liga Norte, encaminharia uma “pergunta urgente” ao primeiro-ministro e ao ministro das Relações Exteriores do país sobre o assunto. No entanto, o site Corriere della Sera buscou desmentir prontamente o vínculo entre as duas cepas virais.

Mas graças a essa rápida difusão da informação, mesmo com a mídia de massa e científica buscando desmentir as afirmações sem embasamento, a correlação entre os vírus deixou de ser uma suposição para alguns e se tornou um fato.

No entanto, dentro dessa história, precisamos estabelecer alguns fatos: realmente em 2015, um artigo foi publicado na revista Nature Medicine e descrevia como pesquisadores chineses teriam alterado a proteína spike, ou S, de um coronavírus encontrado em morcegos, utilizando um backbone SARS-CoV adaptado a camundongo, gerando um vírus recombinante infeccioso e demonstrando sua replicação viral in vitro e in vivo. Segundo os autores, esse trabalho era uma evidência robusta do risco potencial de ressurgimento do SARS-CoV a partir dos vírus que circulavam naquele momento em populações naturais de morcegos da região. Sobre o desenho experimental desse artigo, chamo a atenção da necessidade do vírus adaptado ao camundongo, como hospedeiro intermediário, para que os testes de replicação viral in vitro e in vivo surtissem efeito.

Outro fato inegável é que esse experimento gerou um debate importante na comunidade científica sobre os limites éticos das pesquisas experimentais na construção do conhecimento científico e nos perigos envolvidos em metodologias semelhantes. Graças a importância e relevância desse debate, a própria revista científica Nature publicou através de seu editor o artigo Vírus de morcego projetado gera debate sobre pesquisas arriscadas, demonstrando receios com o tipo de pesquisa que estava sendo realizada naquele momento na China com relação a um coronavírus modificado em laboratório.

Com o crescimento dessa controvérsia e sua utilização politica durante a pandemia, não tardou para que a própria revista Nature inserisse uma nova nota do editor no artigo Vírus de morcego projetado gera debate sobre pesquisas arriscadas, afirmando que:

Sabemos que essa história está sendo usada como base para teorias não verificadas de que o novo coronavírus que causou a COVID-19 foi projetado. Não há evidências de que isso seja verdade; os cientistas acreditam que um animal é a fonte mais provável do coronavírus.

Além da nota do editor, um estudo realizado por pesquisadores do Scripps Research Institute e também publicado na revista Nature Medicine reiterou a informação de que o novo coronavírus teria origem natural, afirmando que “Nossas análises mostram claramente que o SARS-CoV-2 não é uma construção de laboratório ou um vírus manipulado propositadamente.”

Durante esse estudo, ao analisarem a estrutura genética do SARS-CoV-2, os autores concluíram que, se houvesse manipulação genética em laboratório, a estrutura da proteína spike, ou S, do novo coronavírus seria semelhante a de outros organismos existentes. No entanto, os dados genéticos mostraram irrefutavelmente que a proteína spike do SARS-CoV-2 não seria derivada de nenhuma estrutura central de vírus usada anteriormente.

Essa é uma informação extremamente importante para contextualizar as acusações sobre o atual SARS-CoV-2 ter uma relação direta com o vírus recombinante desenvolvido em laboratório em 2015. Se o SARS-CoV-2 tivesse origem no estudo relatado, ele guardaria uma similaridade com as cepas virais utilizadas durante o estudo original, ou seja, suas sequências genômicas seriam semelhantes com a cepa de morcego SARS-CoV Urbani e de camundongo SARS-CoV MA15.

Só que isso não foi observado em nenhum estudo realizado até o momento.

Como veremos ao longo dessa série de textos, o atual SARS-CoV-2 traz alta homologia com a cepa RaTG13, isolada do coronavírus de morcego, e com a cepa PangolinCoV, isolada do pangolim. Ao invés da alta homologia esperada na proteína spike com a cepa SARS-CoV MA15 de camundongo, se a tese de vinculo com o vírus recombinante fosse verdadeira, o SARS-CoV-2 apresenta alta homologia com a cepa PangolinCoV. Além disso, o vírus atual traz uma alta distância filogenética da cepa de morcego SARS-CoV Urbani, estando próximo em sua árvore de parentesco justamente da cepa RaTG13.

Assim, esses detalhes tornam-se evidências suficientes para descartar que o SARS-CoV-2 seja proveniente do vírus recombinante criado em 2015. Como conclusão do artigo, os autores evidenciam que a forma eficaz de nos infectar e as mutações identificadas no estudo tornam o SARS-CoV-2 um clássico exemplo de resultado da Seleção Natural, para a tristeza dos criacionistas e defensores do Design Inteligente.

E qual foi o papel da Seleção Natural nesse processo? Muito simples.

Como pode ser visto na imagem abaixo, o coronavírus apresenta diversos espinhos em sua estrutura, provenientes da proteína spike, que podem se estender e se ligar nas paredes celulares humanas e animais. Os cientistas perceberam que o atual SARS-CoV-2 evoluiu para atingir, principalmente, uma proteína chamada ACE2, que está presente em alguns tecidos corporais, como nariz e boca. E com isso, essa cepa acabou selecionada e passou a infectar novos hospedeiros, nesse caso, nós, humanos.

Lindo, não?

Um problema de (bio)ética

Um detalhe que preciso citar nesse texto diz respeito a aprovação do artigo original de 2015 pelo comitê de ética antes de sua realização.

Ao lermos o artigo original encontramos a seguinte afirmação:

Este estudo foi realizado de acordo com as recomendações para o cuidado e uso de animais pelo Escritório de Bem-Estar Animal de Laboratório (OLAW), NIH. O Comitê Institucional de Cuidado e Uso de Animais (IACUC) da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (UNC, Número de Permissão A-3410–01) aprovou o protocolo de estudo em animais (IACUC # 13–033) usado nesses estudos.

Logo, diferente do que os conspiracionistas sugerem (sim, agora posso usar esse termo baseado nas evidências), o estudo publicado em 2015 não foi feito em um laboratório obscuro do Governo Chinês sem passar por um comitê de ética. Ele foi submetido a um comitê, por sinal americano, e teve sua aprovação.

Um parágrafo antes lemos a seguinte informação sobre a construção do vírus recombinante:

A construção sintética do mutante quimérico e do SHC014-CoV de comprimento total foi aprovada pelo Comitê de Biossegurança Institucional da Universidade da Carolina do Norte e pelo Comitê de Pesquisa de Preocupação de Uso Duplo.

Novamente, o artigo referência que todo o processo foi supervisionado pelo Comitê de Biossegurança Institucional da Universidade da Carolina do Norte e pelo Comitê de Pesquisa de Preocupação de Uso Duplo.

Acredito que não preciso evidenciar com um mapa que a Universidade da Carolina do Norte não fica na China e nem estava sob supervisão do Partido Comunista Chinês.

Claro que isso não isenta o trabalho das questões e do debate bioético envolvido, mas levanta um questionamento do motivo de todas as notícias desde 2015, citarem que o estudo foi realizado por um laboratório chinês.

Ao acessarmos o artigo original, percebemos algo bastante interessante que aparentemente foi ignorado pelos conspiracionistas: dos 15 autores do artigo original, apenas 2 tem vínculos com uma instituição de pesquisa chinesa, o Instituto de Virologia de Wuhan. E o mais interessante é que nenhum desses dois é o primeiro autor ou mesmo o último autor, os colocando como colaboradores do artigo, mas não responsáveis principais pela pesquisa. Com certeza foram os responsáveis por fornecer as amostras das cepas, mas não foram os responsáveis pelo projeto de pesquisa, que se desenvolveu na Universidade da Carolina do Norte.

Essa informação é corroborada quando percebemos que o primeiro e último autor do artigo estão vinculados ao Departamento de Epidemiologia da Universidade da Carolina do Norte, junto de outros 6 autores, totalizando 8 pesquisadores UCN.

Nesse caso, deixo uma pergunta em aberto:

Qual o motivo de vincular um trabalho desenvolvido e aprovado por uma Universidade americana em colaboração com pesquisadores chineses apenas com a China?

Paro por aqui novamente e novas questões continuam no ar.

Mas como isso aconteceu? As mutações necessárias surgiram no morcego? Existiu um hospedeiro intermediário? Foi o camundongo do laboratório? Mas isso não exclui a possibilidade de esse vírus ter surgido naturalmente e ter escapado de um laboratório, né?

Essa e outras perguntas ficarão para o próximo texto.

OBS: Caso encontrem erros, peço que os reporte para correções futuras.

Referências

Cite esse artigo

Fabiano Menegidio

Fabiano Menegidio

Doutor e Mestre em Biotecnologia pela Universidade de Mogi das Cruzes, atuando na área de Bioinformática e Biologia Computacional junto ao Laboratório de Genômica Estrutural e Funcional do Núcleo Integrado de Biotecnologiaa. Graduado em Ciências Biológicas (Licenciatura Plena e Bacharelado) e Formação Específica em Gestão Ambiental pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Cursando Especialização em Genomic Data Analysis pela Universidade Johns Hopkins (Coursera) e Especialização em Bioinformática pela Universidade da Califórnia, San Diego (Coursera).