Pular para o conteúdo

Adendos ao texto sobre teoria de gênero, Bolsonaro e afins

Há quase um mês, foi publicado um texto aqui criticando o artigo de uma colunista da revista Carta Capital e a teoria de gênero de forma geral. Apesar de não ser um texto com muitas pretensões acadêmicas, avaliamos que teve seu objetivo principal alcançado: gerou um debate entre nossos leitores, diversos comentários e muitas contribuições produtivas. No entanto, também tivemos reações negativas (o que é normal) e, tendo em vista que o texto já era muito extenso, não foi possível esclarecer determinadas posições. Propormos, portanto, responder a algumas dessas críticas e tornar o mais claro possível o que foi defendido naquele artigo. Reunimos dois dos principais argumentos apresentados e as nossas réplicas.

Argumento 1: “ O binário de Burigo nada tem a ver com o binário da lógica”

Este argumento parece confundir as coisas. A questão da lógica foi trazida à tona no nosso texto porque Burigo parte da premissa equivocada de que binário é maniqueísta, logo, teria uma origem religiosa de separação de coisas entre o bem e o mal. Como foi demonstrado, binário não vem do pensamento maniqueísta e não estabelece automaticamente a) hierarquia entre as categorias e/ou b) que uma delas é boa e a outra é má. É interessante porque a partir dessa premissa a autora assume que o pensamento binário é ruim e que outras formas de pensar (lógica dialética, por exemplo), seriam boas, o que faz com que ela caia em um paradoxo.

Argumento 2:”Este texto está estimulando e legitimando comportamentos homofóbicos, machistas, transfóbicos etc”

Essa crítica é sintomática, porque revela que a teoria de gênero não é de fato um campo de estudo objetivo, científico, mas uma extensão de militância ideológica. Ou seja, é uma teoria que está ali para legitimar movimentos sociais, não para descobrir fatos acerca do gênero na espécie humana, o que já coloca uma série de problemas epistemológicos para os seus teóricos.

Retomando o argumento, em primeiro lugar, em diversos momentos do texto foi dito que o maior erro de raciocínio do senso comum – que tende ao preconceito – é de tomar o estatístico por necessário. Um machista vai achar que toda mulher deve ser de uma forma e todo momento que se deparar com uma “exceção”, ao invés de rever o enunciado “toda mulher age de forma x”, prefere ou forçar a mudança daquele comportamento fora da curva ou negar que aquele indivíduo é uma mulher. Um homofóbico faz a mesma coisa, assim como um transfóbico. Na verdade, creio que boa parte dos preconceitos que criamos são baseados nessa atitude de não rever nosso conhecimento face às exceções.

“- Sou um menino, então eu devo agir como um menino – Sou uma menina, então eu devo agir como uma menina.” Raciocínio incorreto cometido geralmente por pessoas conservadoras, tomando comportamentos estatísticos como necessários.

O único conhecimento que não opera desse modo são as definições, que são o ponto de partida para a construção de um campo de saber. Por exemplo, a biologia parte da definição do que é ser vivo e a partir daí começa a observar quais características os seres vivos compartilham entre si. Nesse sentido, definições são necessárias, porque são verdades analíticas [1].

Como foi dito no nosso artigo, a definição de gênero não pode ser a soma de determinadas características, porque essas características são dadas a partir da frequência com que aparecem em indivíduos de determinado sexo biológico.

Muitos daqueles que defendem discriminação de mulheres, gays e trans são pessoas que acreditam que os gêneros e comportamentos são absolutamente escolhas individuais que podem ser modificadas a partir da cultura, criação dos pais etc. Nesse ponto, tanto a teoria de gênero quanto os conservadores que ela visa criticar estão de acordo. É dessa visão que surge a ideia de “cura gay”, de que “ele é assim por falta de pancada” ou de que é possível que um kit educativo influencie as crianças a tornarem-se homossexuais.

Já o nosso texto demonstrou que a ciência conta uma história diferente [2]: há cada vez mais evidências de que tanto a homossexualidade [3] quanto diferentes comportamentos de gênero têm uma origem preponderante na biologia, não na cultura (que não é excluída como fator, mas não chega a ser determinante), o que acaba por sendo mais um argumento contrário aos preconceituosos.

Em segundo lugar, teorias não devem ser formuladas a fim de legitimar lutas políticas ou ideológicas. Teorias são formas com que buscamos explicar os fenômenos e, conforme elas são confrontadas com evidências, revelam algum conhecimento sobre o objeto estudado (mesmo que seja um conhecimento negativo, do tipo que revoga a própria teoria).

Em suma, o interesse principal de qualquer teoria é tentar explicar um fenômeno, não dizer como ele deve ser [4]. Desse modo, o conhecimento sobre a realidade não está interessado nas consequências que vai ter na sociedade, é um fim em si mesmo. O que a sociedade vai fazer com aquele conhecimento é um problema da política, da cultura, mas não se pode negar um conhecimento só porque ele aparentemente vai na direção contrária das nossas crenças, daquilo que achamos ser certo.

- Eu contei para o Universo que "você acredita..." Acontece que a realidade não se importa.
– Eu contei para o Universo que “você acredita…”
Acontece que a realidade não se importa.

A natureza não tem moral e o universo não se importa com as nossas crenças e valores. A descoberta de um fato na natureza que é imoral para uma sociedade não significa que tal fato deve deixar de ser considerado imoral. Se a ciência diz, por exemplo, que possuímos evolutivamente uma tendência ao estupro, isso não significa que estupro deve ser considerado algo moralmente aceitável na nossa sociedade.

Assim, nem o nosso artigo afirmou algo que pode ser usado por pessoas preconceituosas contra mulheres, gays ou trans e, mesmo que o fizesse sem o querer, tratava-se de um texto descritivo, não prescritivo. Em nenhum momento foi usado o argumento de que porque existem diferenças de gênero determinadas pela biologia devemos ter uma sociedade desigual, que não dá os mesmos direitos e oportunidades às pessoas.

Reafirmamos, então, que nem o artigo aqui publicado nem a própria autora defendem um posicionamento à favor da discriminação das pessoas homossexuais, trans e/ou das mulheres. O que foi feito foi uma crítica à teoria de gênero como ferramenta teórica para compreender o fenômeno do gênero na espécie humana.

Bolsonaro e a teoria de gênero

O que infelizmente muitos leitores pensaram foi que o nosso texto estaria legitimando o discurso conservador e de deboche de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro. Para completar, na manhã deste domingo (01/05), começaram a circular imagens na web em que o filho do deputado, Eduardo Bolsonaro, segura uma placa dizendo “Só existe XX e XY”, com a clara intenção de atingir o público LGBT por meio de um deboche rasteiro e desinformado.

Como foi dito no nosso texto e muitas páginas de biologia no Facebook apontaram, existem síndromes genéticas em que essa configuração é diferente (XXX, XXY, X0 e por ai vai). O que acontece é que para definir o macho e a fêmea o critério é determinado pela presença ou não de um gameta diferente, mas esse não é o critério para definir homem e mulher, hétero e gay, cis e trans. Ou seja, além de XX e XY não serem as únicas configurações genéticas possíveis, elas não determinam se o indivíduo será homem  ou mulher e, principalmente, não determinam se uma pessoa deve comportar-se e/ou identificar-se de certa forma.

https://www.youtube.com/watch?v=sED5qymZck0

É justamente por conta do fato de que não podemos definir homem e mulher pela soma de algumas características que não podemos dizer que alguém é menos mulher por não possuir as características x, y e z, por exemplo. Um indivíduo XY e com corpo masculino que se identifique com o corpo feminino, por exemplo, tem todo o direito de identificar-se socialmente como mulher, mesmo que a maioria dos indivíduos com essa configuração genética se identifique como homem. Essa é uma liberdade que conservadores como a família Bolsonaro querem negar aos transsexuais e que não encontra nenhum respaldo científico ou jurídico.

Do mesmo modo, um indivíduo XX, com o corpo feminino e que se sinta atraído por pessoas do mesmo sexo biológico deve ter toda a liberdade para expressar sua sexualidade e jamais pode ser considerado menos XX por isso ou menos mulher se assim se identifique. A configuração genética não imprime um dever sobre como as pessoas devem comportar-se, mas é tão somente uma forma de classificação que as ciências biológicas utilizam para entender como as dinâmicas sexuais e de gênero operam nos seres vivos.

Dessa forma, ainda que não existissem síndromes genéticas e Eduardo Bolsonaro estivesse correto em apontar que “só existe XX e XY”, nossa resposta seria: “e daí?”. O que isso tem a ver com os direitos LGBT? O que isso tem a ver com violência contra as mulheres? Nada, porque esses direitos relacionam-se com uma ética humanista, que entende que todos os seres humanos são iguais em termos de direitos e deveres, independente de sexo, gênero, cor, orientação sexual e pensamentos, possuindo a liberdade para fazer o que bem entenderem desde que não se prejudique terceiros. Não tem nada a ver com a nossa configuração genética e a família Bolsonaro deveria definitivamente estudar um pouco de biologia e de filosofia também, especialmente para não cair em argumentos falaciosos.

Referências

[1] Ver https://sites.google.com/site/dicionarioenciclopedico/juizo-analitico-juizo-sintetico

[2] Ver http://www.theguardian.com/commentisfree/2010/may/03/biology-sexist-gender-stereotypes

[3] http://www.livescience.com/50058-being-gay-not-a-choice.html e http://www.livescience.com/37139-facts-about-gay-conversion-therapy.html

[4] Ver Lei de Hume, diferença entre afirmações descritivas e prescritivas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_Hume

Caroline Soares de Araujo

Caroline Soares de Araujo

Jornalista graduada pela UFPA (2013), estudou por seis meses história da filosofia na Università degli Studi di Firenze (UNIFI). Mestranda em Filosofia no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPA (PPGFIL). Tem interesse por Epistemologia, Lógica, Filosofia da Ciência e Filosofia da Matemática.