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Almas perturbadas: espiritualidade como um risco para a saúde mental

Por Scott McGreal
Publicado na Psychology Today

A relação entre espiritualidade e/ou religião com saúde mental e física vem sendo cada vez mais investigada nos últimos anos. Aparentemente se tornou sabedoria convencional que a espiritualidade está associada com uma boa saúde mental e física. No entanto, um estudo britânico recentemente publicado descobriu que as pessoas que se consideram espirituais, mas não religiosas, são mais propensas a terem transtornos mentais, em comparação com as pessoas tradicionalmente religiosas e aquelas não religiosas. Convencionalmente as pessoas religiosas e aquelas que não eram nem religiosas nem espirituais não diferiram no estado de saúde mental, sugerindo que ser religioso oferece poucas vantagens em termos de saúde mental. As razões para isso ainda não são claras. Estudos sobre a psicologia da espiritualidade oferecem algumas pistas sobre o porquê as pessoas ditas espirituais, mas não religiosas, podem ser propensas a uma saúde mental afetada, embora, evidentemente, mais pesquisas sejam necessárias para explicar plenamente essa associação.

Estudos:

As alegações de que “espiritualidade” é benéfica para a saúde mental têm sido criticadas com base no fato de que as definições de espiritualidade foram ampliadas, de tal modo que, por si só, implicam a própria saúde mental por definição (Koenig, 2008). Tradicionalmente, a espiritualidade tinha uma definição estritamente centrada na crença em entidades sobrenaturais e transcendentais, como Deus. No entanto, os serviços de saúde mental (falando dos EUA) têm se tornado cada vez mais interessados ​​em abordar as necessidades “espirituais” dos clientes nos últimos anos e, como resultado, tentaram redefinir o termo, de forma que fosse maximamente inclusivo, de modo a se aplicar às pessoas de diversas religiões e para aqueles sem religiões (Koenig, 2008). Muitos estudos têm ampliado o termo para incorporar uma gama de conceitos psicológicos positivos, tais como “propósito na vida”, esperança, interação social, paz interior e bem-estar. Isso se torna problemático para pesquisas que tentam avaliar a relação entre “espiritualidade” e saúde mental, pois, na maioria das definições, a noção de boa saúde mental implica que uma pessoa tem propósitos na vida, é esperançosa, socialmente conectada, além de ter paz e bem-estar. Assim, torna-se tautologicamente sem sentido dizer que a espiritualidade está associada a uma melhor saúde mental quando o termo é exatamente definido dessa maneira (Lindeman & Aarnio, 2007).

Um recente estudo britânico examinou a relação entre espiritualidade e saúde mental usando uma compreensão mais tradicional do termo para evitar esse problema tautológico (King et al., 2013). O estudo envolveu entrevistas com mais de 7000 pessoas na Inglaterra. Os participantes foram classificados de acordo com a compreensão da vida: predominantemente religiosos, espirituais, ou desprovidos de crença/religião. Estes termos foram explicados da seguinte forma:
“Por religião, entendemos a prática real de uma fé, e.g frequentar um templo, mesquita ou sinagoga. Algumas pessoas não seguem uma religião, mas têm crenças ou experiências de espiritualidade. Algumas pessoas dão sentido as suas vidas sem qualquer crença religiosa ou espiritual”

Os participantes também foram entrevistados profundamente sobre saúde mental, uso de álcool e drogas, apoio social, uso de medicação psicotrópica, jogos de azar, e também foram questionados sobre o índice de felicidade geral. Os resultados mostraram que os participantes religiosos eram semelhantes aos não-religiosos/não-espirituais em relação à saúde mental na maioria dos aspectos, embora os religiosos eram menos propensos a terem usado drogas ou foram dependentes de drogas no ano anterior. No entanto, houve diferenças marcantes para aqueles da categoria de espiritualidade, mas não religião. Em comparação com pessoas que não pertenciam à mesma categoria, as pessoas ditas espirituais, mas não religiosas, eram mais propensas a tomar medicação psicotrópica, usar ou ser dependentes de drogas recreativas, ter um transtorno de ansiedade generalizado, fobia ou qualquer distúrbio neurótico ou ter alguma anormalidade comportamental. Essas diferenças ainda se mantêm mesmo quando se leva em conta o suporte social e a saúde física, bem como a idade, sexo e etnia; embora nenhum dos grupos diferenciou em felicidade total. Os autores concluíram que as pessoas que são adeptas de espiritualidade, mas não religiosas, na compreensão da vida, são mais vulneráveis ​​aos transtornos mentais do que outros. A natureza da relação causal entre espiritualidade e transtorno mental é atualmente desconhecida. Um estudo britânico anterior teve resultados semelhantes, os autores observaram que é possível que não ter uma estrutura religiosa para as crenças pode levar a transtornos mentais em pessoas que têm necessidade de uma compreensão espiritual religiosa da vida (King, Weich, Nazroo e Blizard , 2006). Alternativamente, ter um transtorno mental pode levar uma pessoa a se envolver numa busca espiritual na esperança de cura mental ou compreensão mais profunda de seus problemas.

Um estudo anterior sobre os traços de personalidade associados à “espiritualidade” e à religiosidade pode lançar alguma luz sobre a relação entre espiritualidade e transtorno mental (Saucier & Skrzypińska, 2006). A espiritualidade nesse estudo foi definida como “busca de significado, unidade, conexão com a natureza, humanidade e transcendência”. Observe que esta definição se concentra em entendimentos subjetivos e místicos da vida, em contraste com a religiosidade mais convencional que enfatiza a adesão à crenças ortodoxas, dogmas e princípios. Embora muitas pessoas se descreveram em termos de religiosidade convencional e espiritualidade subjetiva, as pessoas que estavam mais focadas na espiritualidade subjetiva e menos interessadas na religiosidade tendiam a ter características de personalidade distintamente diferentes em comparação com aqueles com uma orientação religiosa mais ortodoxa. As pessoas que se descreveram em termos religiosos convencionais tendiam a ser bastante conservadoras em suas atitudes e crenças. Aqueles que eram mais espirituais e menos religiosos tendiam a ter menos conformidades e até peculiaridades em suas perspectivas e traços pessoais. Por exemplo, eles eram mais propensos do que outras pessoas a descreverem pessoalmente como “estranhos” e “loucos”. Além disso, eles tendiam a acreditar em uma série de cosmovisões “alternativas” (tais como psicocinese, reencarnação, astrologia, feitiçaria e poderes psíquicos), afirmando “respeitar o poder da magia”, e pontuaram altamente em medidas de pensamento mágico, propensão à fantasia e absorção.

Características como o “pensamento mágico” têm sido associadas a um conjunto de traços patológicos conhecidos como esquizotípicos, ou propensão para o comportamento levemente psicótico. Esquizotípico refere-se a um conjunto de características cognitivas, emocionais e comportamentais que são semelhantes, mas geralmente mais leves do que aqueles exibidos na esquizofrenia. Ela está associada a crenças incomuns sobre a realidade (por exemplo, que é possível prejudicar outros por “pensar mal” sobre eles) e a tendência a ter experiências perceptivas estranhas (como sentir que estranhos estão lendo sua mente). Outras pesquisas descobriram que os adeptos das crenças e práticas da Nova Era (tais como yoga, Reiki, astrologia e Tarot) tendem a ser elevados em esquizotípias e isso se reflete em um estilo de pensamento holístico ampliado (Farias, Claridge e Lalljee, 2005). A esquizotípia pode estar associada a altos níveis de ansiedade e depressão (Lewandowski et al., 2006).

Poderia ser o caso que as pessoas com tendências esquizotípicas e propensão à ansiedade e depressão podem achar as idéias espirituais não convencionais particularmente atraentes. Também é possível (e admito que isso seja especulação) que a adesão a tais idéias exacerba seus desequilíbrios mentais existentes. (Note-se, no entanto, que muitas pessoas com tendências esquizotípicas são de outra forma bem ajustadas.)

Se a busca por espiritualidade não convencionais são prejudiciais à saúde mental ainda não é conhecido. Em alguns aspectos, a associação entre espiritualidade e transtorno mental parece ser contrária aos benefícios que muitas tradições espirituais pretendem oferecer. A realização espiritual deve levar à paz interior, até à “bem-aventurança”. Na verdade, alguns místicos chegaram a afirmar que o “trabalho” espiritual pode levar a uma transformação interior que resultará em “verdadeira sabedoria e felicidade perfeita”!

A própria ideia de “felicidade perfeita” parece uma miragem impossível, embora uma interpretação mais coerente afirma que o termo é apenas uma metáfora poética e não uma realidade literal. Então por que tantas pessoas espirituais são perturbadas? Pode ser que algumas pessoas simplesmente não sejam bem-sucedidas em buscar qualquer satisfação espiritual que estejam buscando. King et ai. (2013) descobriu que aqueles que eram espirituais, mas não religiosos, classificaram a força de sua crença e a importância da prática de sua fé um pouco menor do que os participantes religiosos. Isso pode indicar uma falta de dedicação ou auto-disciplina por parte daqueles que afirmam ser espiritual, mas não religioso. Estudos mais detalhados são necessários para determinar se é esse o caso.

Outra limitação do estudo de King et al foi não ter examinado o conteúdo específico das crenças e práticas de espiritualidade. O conteúdo das crenças espirituais pode afetar a saúde mental. Por exemplo, a crença na interconectividade das coisas pode ser relativamente benéfica, enquanto que as crenças mais “supersticiosas”, como no “olhar maldoso”, podem ser prejudiciais à saúde mental. A pesquisa poderia examinar se certas práticas espirituais particulares estão mais associadas ao transtorno mental do que outras. Por exemplo, o yoga e a meditação geralmente são considerados benéficos para o bem-estar de alguém, mas práticas mais bizarras (como a “regressão” antes do nascimento) podem encorajar uma pessoa a manter ideias peculiares que podem não lhes servirem bem na vida real . Um enigma adicional é porque os três grupos no King et al. não diferiu em sua felicidade global, mesmo que um grupo foi mais propenso a transtorno mental. A felicidade foi avaliada com uma única pergunta, enquanto o estado de saúde mental foi avaliado com uma entrevista clínica, de modo que uma avaliação mais detalhada do bem-estar poderia fornecer uma imagem mais matizada. Considerando a proeminência crescente na sociedade moderna de pessoas que se consideram espirituais, mas não religiosas, uma pesquisa mais aprofundada é necessária para entender completamente por que este grupo parece ser particularmente vulnerável à doença mental.

Referências

Farias, M., Claridge, G., & Lalljee, M. (2005). Personality and cognitive predictors of New Age practices and beliefs. Personality and Individual Differences, 39(5), 979-989. doi: 10.1016/j.paid.2005.04.003

King, M., Marston, L., McManus, S., Brugha, T., Meltzer, H., & Bebbington, P. (2013). Religion, spirituality and mental health: results from a national study of English households. The British Journal of Psychiatry, 202(1), 68-73. doi: 10.1192/bjp.bp.112.112003

King, M., Weich, S., Nazroo, J., & Blizard, B. (2006). Religion, mental health and ethnicity. EMPIRIC – A national survey of England. Journal of Mental Health, 15(2), 153-162. doi: doi:10.1080/09638230600608891

Koenig, H. G. (2008). Concerns About Measuring “Spirituality” in Research. The Journal of Nervous and Mental Disease, 196(5), 349-355 310.1097/NMD.1090b1013e31816ff31796.

Lewandowski, K. E., Barrantes-Vidal, N., Nelson-Gray, R. O., Clancy, C., Kepley, H. O., & Kwapil, T. R. (2006). Anxiety and depression symptoms in psychometrically identified schizotypy. Schizophrenia Research, 83(2–3), 225-235. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.schres.2005.11.024

Lindeman, M., & Aarnio, K. (2007). Superstitious, magical, and paranormal beliefs: An integrative model. Journal of Research in Personality, 41(4), 731-744. doi: 10.1016/j.jrp.2006.06.009

Saucier, G., & Skrzypińska, K. (2006). Spiritual But Not Religious? Evidence for Two Independent Dispositions. Journal of Personality, 74(5), 1257-1292. doi: 10.1111/j.1467-6494.2006.00409.x

Samuel Fernando

Samuel Fernando

Sou pesquisador na área de neurociência computacional pela Universidade Federal do ABC e atuo nos seguintes tópicos: neurônios espelhos, redes neurais, inteligência artificial, linguagem, transtornos mentais e teoria da consciência. Sou futurista, mas apaixonado por antiguidades, letras, artes e literatura clássica. Scientia et potentia in ídem coincidunt. Transhumanismo sim!