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Argumentando sem links. Um guia para evitar a precipitação argumentativa.

Há uma problemática comunicativa que atinge várias pessoas na modernidade, a precipitação argumentativa. Quem nunca, ao ouvir algo que não lhe soa correto, tentou contra-argumentar e deu de ombros por não ter quaisquer conteúdos disponíveis para tal? Ainda mais… Quem nunca sentiu uma sensação estranha de remorso ou frustração após uma discussão meramente intelectual? Quantas pessoas devem ter se irritado discutindo qual é a cor mais quente ou a validade de um alimento? E quantas, ainda que sem conteúdo, persistiram em uma contra-argumentação por medo do rebaixamento intelectual, por querer provar-se sabichão ou pra sentir um gostinho momentâneo de superioridade? De certo muitas, inclusive eu.

Quem debate em datas definidas ou em grandes espaços de tempo entre uma fala e outra, seja em um tribunal, em um evento ou até na internet, está mal acostumado com um ambiente sossegado de exercício intelectual, onde se estuda todos os argumentos antes de citá-los ou se possui tempo suficiente para montar um argumento satisfatoriamente coeso para cada afirmativa. Essas pessoas (inclua-me nelas), bem como aquelas que não costumam debater de forma alguma, simplesmente estão despreparadas para um confronto real e imprevisível de ideias que ocorra cara a cara. Esses confrontos são bastante comuns com amigos, familiares, conhecidos ou até estranhos no meio da rua e é geralmente neles onde os argumentos mais são precipitados… Mas por que?

Para entendermos melhor essa necessidade de dizermos algo que não sabemos frente a uma contradição, talvez tenhamos que voltar um pouco no tempo.

Voltemos a idade média! Aqui as coisas são um tanto diferentes do que estamos acostumados a ver no século XXI. Não há internet e a autoridade máxima é o rei, autoridade essa instituída por deus. Os debates intelectuais são escassos, com a população deseducada, eles se limitam aos clérigos e a nobreza. Viajemos um pouco mais a frente…

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A revolução francesa acaba! Os ideais iluministas se expandem por toda a Europa e a França vê surgir um novo líder! Napoleão Bonaparte! Napoleão não é um rei, tampouco um clérigo, não há nada que o ligue a uma divindade… Mas ele tem uma coisa nova, algo que o dá poder imensurável e o torna único, o carisma! Napoleão é por muitos considerado um herói, um grande gurreiro, e isso garante a ele todos os olhares dos meros mortais.

Enfim chegamos em 2017. Hoje a administração social não costuma ser absolutista e tampouco restrita a carisma… As nações não são guiadas pela a espada e tampouco por uma autoridade dada por deus… Elas são guiadas por BUROCRATAS. Pessoas supostamente inteligentes que administram, empreendem e inovam, tornando-se celebridades contemporâneas e fazendo as mães repetirem o clichê “estude e serás bem sucedido”.

Não sou eu o mentiroso, foi Weber que escreveu o livro. De fato, o sociólogo Max Weber apontou que há no mundo 3 formas de dominação legítimas, a tradicional, a carismática e a burocrática. Ainda que ainda haja dominação tradicional e carismática e que não se possa mostrar na história uma transição definitiva de uma para outra forma de dominação, é possível discernir em quais períodos determinada dominação foi mais exercida. Foi exatamente isso o que vimos quando viajamos no tempo para o passado. Mas pra quê tudo isso?

Bom, o modelo social moderno é propício a uma coisa que o modelo tradicional não era: A transição de autoridade. Chame isso de meritocracia, ou o que for, o fato é que uma vez que a autoridade não é mais determinada por deus e que ela é acessível por meio da complicação, digo, educação, temos que as pessoas podem se tornar autoridades e pra isso nem precisam ser tão carismáticas quanto foi o Napoleão. De mão dadas com o capitalismo, a especialização se tornou uma mina de ouro a ser explorada, e uma vez que quanto mais satisfeito o consumidor, mais enaltecido o empreendedor, na sociedade moderna, ganha quem é esperto! O mesmo se aplica a política, embora eu tenha de admitir que nessa o modelo de autoridade carismática ainda é bastante expressivo, principalmente nos países de governos populistas (inclua o Brasil). Não obstante, poucos são aqueles que acham que os ministros e o chefe de estado não passam de pessoas sem qualquer instrução formal.

Resumindo: Educação implica status!

E por isso tanta carga emocional é colocada em debates cara a cara, nos agonia a perspectiva de sermos humilhados intelectualmente por um igual tanto quanto outrora deve ter agoniado a um samurai japonês não vencer uma luta. Levamos para o pessoal! Não importa mais a verdade, a lógica ou a razão, apenas a honra! Nos sentimos ameaçados como um cão hidrofóbico perto de uma fonte e nossos instintos primitivos de caça jogam em nossa corrente sanguínea todos aqueles hormônios que não deveriam estar presentes na fisiologia de alguém que pretender ter um debate civilizado e racional com outrem. A educação nunca foi tão valorizada pela sociedade quanto hoje.

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Frente a isso, qual a alternativa racional para nós? A humildade. Longe de ser apenas uma questão moral, a humildade intelectual se mostra absurdamente necessária para um debate pessoal. A noção de que talvez você possa estar errado te dá a serenidade necessária para argumentar tudo o que consegue sem precisar se comprometer com isso e a aceitar toda a contra-argumentação que você certamente discorda, mas não sabe como responder a altura. A frustração de não poder ter um testemunho pra falar por você, como num tribunal, ou um link que prove seu ponto, como na internet, agrava mais o debate, pois deixa todos os presentes nivelados ao mesmo nível de evidência. E quando não se há evidências e se quer que o outro aceite determinada argumentação, entra o perigo, pois qualquer recusa a isso será não apenas uma teimosia intelectual mas será entendida como uma quebra de confiança, o que implica pessoalidade e por ultimo, sentimentos. Nos atordoa que pessoas que nos são próximas não confiem em algo que temos como certo, mas por que isso deveria ocorrer?

A humildade de reconhecer-se como ser humano falho e mnemônicamente impreciso (https://www.youtube.com/watch?v=OkUGmvQ_Snc) deveria nos dar a serenidade necessária para não nos estressarmos com a recusa do outro em confiar em nossas afirmativas quando eles apenas possuem as nossas palavras. E a aqueles que se dão ao debate com pessoas que são incapazes de interpretar a desconfiança com esses olhos deveriam ser compreensíveis, entendendo o valor moderno que a educação possui na vida das pessoas e o valor demasiado alto que essas dão as relações pessoais que envolvem o fator confiança. Por vezes é melhor o silêncio do que a intriga, ainda que essa seja motivada por fatores irracionais. E você sabe… o debate não precisa ser resolvido na hora h! O impulso que temos de refutar a pessoa ali e definitivamente é apenas mais um reflexo de tudo o que vimos até agora, uma mesquinhez humana difícil de ser eliminada. Se você deseja manter o debate, mas também as relações e o seu próprio conforto, volte ao debate em um momento em que os sangues tenham esfriado e que a calma e a paciência estejam presentes em doses convidativas ao raciocínio. Em outras palavras, evite debater com pessoas no meio de uma festa, no meio da rua, num restaurante lotado com pessoas barulhentas.

Os indivíduos já tiveram  muitas formas de minar seus status, nos animais isso também ocorre, as vezes pela luta! Mas na humanidade moderna, cada vez mais é preciso mostrar aos outros que se é esperto para que possamos nos sentir bem com nós mesmos. A alta valorização da educação e a internet constituem uma simbiose praticamente perfeita, uma vez que essa tornou a informação mais acessível do que nunca. Mas nos períodos offline, em assuntos que sequer podemos dar uma googlada ou mostrar quem disse, onde disse e porque disse, a valorização da educação entra em atrito com a vontade de se provar, essa mistura explosiva nos leva a precipitação de argumentos que não fazem lógica alguma, a destruição de relações antes estáveis e ao nervosismo instantâneo. A saída, quem diria, é pela própria educação, mas não a educação meramente cartesiana, mas sim a educação emocional e uma noção mais abrangente do porque isso acontece e como podemos evitar falar e fazer bobagens sem que com isso nos sintamos menos capazes.

Willian Pablo Pereira Reis

Willian Pablo Pereira Reis

Quando criança quis estudar matemática. Desde então quis ser médico, físico, advogado, filósofo, psicólogo e acabou indo parar na economia. http://lattes.cnpq.br/2979735923273280