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As microexpressões faciais da pseudociência

Crédito: Thiago Montalvão.

Você, provavelmente, já ouviu falar sobre a análise das microexpressões faciais, não é? E caso já tenha se deparado com o assunto em determinado canal do YouTube (Aquele-que-não-deve-ser-mencionado) sobre a tal prática, já deve estar acompanhando uma das mais recentes “tretas” entre dois grandes Youtubers sobre o assunto. Caso não esteja completamente inteirado, eu vou ajudar: Em resumo, o comediante e youtuber Tiago Santineli (Esse eu sei que posso mencionar sem o menor risco de sofrer uma ameaça de processo), já fez diversas críticas ao canal “MF” (por assim dizer) em seu próprio canal do YouTube e em outras redes sociais. Em seus vídeos, Santineli questiona a veracidade das informações divulgadas pelo “MF” e alerta os espectadores sobre o risco de serem enganados por pseudociências e teorias conspiratórias. Em alguns de seus vídeos, Santineli aponta diversas falhas metodológicas e conceituais nas abordagens pseudocientíficas utilizadas pelo canal, o que também já havia sido feito anteriormente por outros youtubers de enfoque científico, e de forma mais detalhada. Ele lança mão de seu habitual humor ácido e irreverência para questionar, por exemplo, a validade da leitura corporal e das microexpressões faciais como métodos para identificar emoções e intenções ocultas, e critica a utilização de teorias conspiratórias para explicar fenômenos psicológicos.

Crédito: Tiago Santineli

Além disso, Santineli alerta os espectadores sobre o perigo de confiar em informações que não possuem embasamento científico sólido, destacando a importância de buscar fontes confiáveis e de se manter crítico em relação ao que se consome nas redes sociais. Então antes de prosseguirmos: Muito obrigado xará!

A análise das microexpressões faciais

Pois bem, a dita cuja trata-se de uma técnica que pretende identificar emoções que as pessoas manifestam espontaneamente, e/ou tentam esconder, através de pequenas expressões que duram apenas uma fração de segundo. Supostamente, essa técnica seria útil para detectar mentiras, intenções não verbais, identificar traços de personalidade e até mesmo prever comportamentos futuros. No entanto, apesar de sua popularidade, a análise das microexpressões faciais é considerada uma pseudociência por muitos especialistas.

Em primeiro lugar, é importante entender que as emoções são um fenômeno complexo e multifacetado, que envolve não apenas expressões faciais, mas também mudanças fisiológicas, cognitivas e comportamentais. E a ideia de que é possível identificar emoções verdadeiras através de pequenas expressões faciais é baseada em uma teoria que remonta ao final do século XIX, quando o neurologista francês Guillaume Duchenne realizou uma série de experimentos onde estimulou eletricamente os músculos faciais de pessoas para que expressassem diferentes tipos de emoções. Ele acreditava que havia expressões faciais específicas para cada emoção, vindas diretamente da “alma” do indivíduo, e que essas expressões eram universais e inatas.

Guillaume Benjamin Duchenne: Mecanismo da Fisionomia Humana – Uma análise eletrofisiológica da expressão das paixões. Uma imagem histórica revelando os estudos pioneiros sobre emoções e expressões faciais através da estimulação elétrica.

Contemporaneamente essa teoria foi adaptada pelo psicólogo norte-americano Paul Ekman, que propôs, inicialmente, a existência de seis emoções básicas universais (alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa e aversão), e que essas emoções podem ser identificadas através destas microexpressões faciais. Posteriormente, esta lista foi passando por novas adaptações.

Ainda na década de 70, Paul Ekman foi diretamente responsável pela criação do protocolo FACS (Facial Action Coding System), um sistema de taxonomia das expressões faciais que utiliza a análise minuciosa de pequenos pontos de expressão no rosto chamados de AU (Action Units, ou Unidades de Ação) para determinar, ou descobrir, emoções ocultas. Apesar deste protocolo ter sido diversas vezes adptado, e apesar de ainda ser utilizado massivamente pelos seus adeptos para rotular as expressões emocionais das pessoas, ele carece de evidências científicas válidas e o seu pioneiro, Paul Ekman, já fora acusado diversas vezes pela comunidade científica de manipular dados e fazer vista grossa para os erros metodológicos de seus trabalhos.

Graças a ele, essas ideias ganharam mais destaque do que nunca. No entanto, a teoria das microexpressões faciais vem sendo cada vez mais criticada por diversos motivos. Em primeiro lugar, por não haver evidências científicas sólidas de que as expressões faciais são de fato universais e inatas. Estudos transculturais mostraram que elas variam de cultura para cultura, e que as pessoas podem interpretar as mesmas expressões de maneiras distintas, dependendo do contexto cultural e social em que se encontram. Além disso, a teoria das microexpressões faciais pressupõe que as emoções são estados discretos e bem definidos, quando na verdade as emoções são complexas e dinâmicas, e muitas vezes se sobrepõem e interagem umas com as outras.

Outra crítica à teoria das microexpressões faciais é que não há evidências de que a análise dessas expressões seja útil para detectar mentiras ou prever comportamentos futuros. Vários importantes estudos de revisão e metanálises, em especial as de Bonde e DePaulo (2006) e Jordan et. al (2019), mostraram que a precisão da análise destas microexpressões é muito baixa, e que os especialistas que afirmam ser capazes de identificar emoções verdadeiras através de expressões faciais estão sujeitos a vieses cognitivos e preconceitos pessoais. Além disso, a análise das microexpressões faciais é frequentemente utilizada de forma irresponsável e antiética, como no caso de programas de televisão (e certos canais do YouTube) que afirmam ser capazes de identificar mentirosos, criminosos ou terroristas através de suas expressões faciais. E embora alguns artigos enviesados mostrem uma leve vantagem da análise feitas por peritos em microexpressões, também é importante considerar que nem todos os estudos encontram diferenças significativas entre peritos e pessoas normais na análise de microexpressões faciais nas pessoas, e os resultados podem variar dependendo dos métodos de avaliação e amostras de participantes utilizados. Portanto, é necessário analisar os resultados dos estudos com cuidado e considerar o contexto em que eles foram realizados.

Experimentos de estimulação elétrica facial.

Basicamente, a análise das microexpressões faciais é uma prática que se baseia em teorias não comprovadas e que não tem evidências sólidas de sua eficácia. Embora a ideia de que seja possível identificar as emoções verdadeiras através de expressões faciais possa parecer atraente, é importante lembrar que as emoções são complexas e multifacetadas, e que a análise das microexpressões faciais não pode capturar toda a complexidade das emoções humanas. Além disso, ela pode ser (na grande maioria das vezes é) utilizada de forma irresponsável e antiética, e pode levar a resultados falsos e perigosos. Em seguida estão alguns exemplos de casos reais em que as análises de microexpressões faciais falharam em fornecer informações precisas:

  • Caso Martin Tankleff: no início da década de 90 nos EUA, Martin, aos 17 anos, foi condenado pelos assassinatos brutais dos próprios pais. As análises das suas microexpressões atestaram que ele estava “calmo demais”, portanto, mentindo, o que acabou lhe rendendo 17 anos de prisão. Após todo esse tempo, novas evidências e testemunhas atestaram a sua inocência e ele foi libertado. Ele acabou processando o Estado por todo sofrimento vivido durante o cárcere.
  • Caso de Samuel Sheinbein: Em 1997, o adolescente norte-americano Samuel Sheinbein matou e desmembrou um jovem de 19 anos em Maryland. A análise de microexpressões faciais foi usada em tribunal para tentar determinar se Sheinbein estava mentindo ou dizendo a verdade sobre o assassinato. No entanto, o especialista foi criticado por outros profissionais e pelo próprio juiz do caso, que afirmou que a análise de microexpressões faciais não tinha base científica confiável e não poderia ser usada como prova no julgamento. Depois, um estudo subsequente mostrou que a análise de microexpressões faciais utilizada não foi mais precisa do que a avaliação de um observador comum na identificação das mentiras.
  • Caso Amanda Knox: Em 2007, a estudante norte-americana Amanda Knox foi acusada e condenada pelo assassinato de sua colega de quarto britânica em Perugia, Itália. Um especialista em microexpressões faciais afirmou que Knox estava mentindo quando negou envolvimento no assassinato. No entanto, Knox foi posteriormente absolvida das acusações após uma análise forense de evidências físicas e novos relatos. As cortes europeias condenaram a justiça italiana a pagar por reparações a Amanda pelo tempo que ela passou na cadeia e pelos danos morais sobre ela.
  • Caso Carlos Ghosn: Em 2018, o executivo de negócios Carlos Ghosn foi preso no Japão sob acusações de má conduta financeira. Um especialista em micro expressõesfaciais afirmou que Ghosn estava mentindo quando negou as acusações. No entanto, a análise das microexpressões faciais foi tida como evidência insuficiente e não foi considerada admissível como prova durante o julgamento, e Ghosn fugiu do Japão para evitar a condenação.

Esses casos mostram que a análise das microexpressões faciais pode ser imprecisa e que as pessoas devem ser cautelosas ao confiar nessa técnica para identificar mentiras ou emoções verdadeiras. A análise das microexpressões faciais pode ser influenciada por diversos fatores, como emoções secundárias, culturais ou de gênero, o que pode levar a resultados incorretos e preconceituosos.

As microexpressões da pseudociência

A pseudociência é qualquer prática que se apresenta, ou se comporta, muitas vezes de forma sutil, como científica, mas não segue os princípios e métodos da ciência, e/ou que não é apoiada por evidências empíricas sólidas, e que é contraditória com o conhecimento científico estabelecido. Algumas características que podem indicar a presença de pseudociência incluem:

  • Falta de evidência empírica ou uso de evidências fracas: A pseudociência não costuma apresentar evidências empíricas fortes para apoiá-la. Em vez disso, muitas vezes depende de evidências frágeis, anedóticas ou falsas para respaldar suas afirmações.
  • Ausência de revisão por pares: Uma das características mais importantes da ciência é o processo de revisão por pares, no qual outros cientistas examinam e avaliam criticamente o trabalho de seus colegas. A pseudociência muitas vezes não passa por esse processo crítico e, em vez disso, é promovida por um grupo pequeno de pessoas que compartilham as mesmas crenças.
  • Ausência de falseabilidade: As afirmações pseudocientíficas geralmente são vagas e não podem ser testadas empiricamente, ou não têm condições claras de serem refutadas. Em outras palavras, não há uma maneira clara de provar que as afirmações possam ser falsas.
  • Uso de jargões e terminologia científica incorreta: As práticas pseudocientíficas muitas vezes usam termos científicos para dar a impressão de que estão fazendo algo cientificamente válido, mas comumente usam a terminologia incorretamente ou de maneira enganosa.
  • Resposta insuficiente a evidências que contradizem suas afirmações: A ciência exige que as hipóteses sejam testadas e as afirmações sejam apoiadas por evidências empíricas. A pseudociência muitas vezes ignora ou rejeita as evidências que contradizem suas afirmações e recusa-se a ajustar suas teorias em resposta a novas evidências.
  • Falta de progresso ou inovação: A ciência está em constante evolução, com novas descobertas e teorias surgindo regularmente. A pseudociência, por outro lado, não produz novas descobertas ou inovações e tende a permanecer estagnada em suas crenças e práticas.
Crédito: Pinterest.

Em resumo, a análise de microexpressões faciais é uma pseudociência justamente por se enquadrar em todos os critérios acima, embora os adeptos defendam o contrário, mas apenas com convicções e sem evidências plausíveis. Mesmo que seja possível que os especialistas possam identificar algumas emoções através das expressões faciais, as emoções são complexas e multifacetadas, e a análise das microexpressões faciais não pode capturar toda a sua complexidade. Por isso devemos nos basear em métodos cientificamente comprovados para compreender e lidar com as emoções humanas, como a psicologia científica e a neurociência. Somente desta maneira poderemos ter um entendimento mais preciso e completo sobre elas, contribuindo, assim, para uma melhor qualidade de vida e bem estar dos indivíduos.

Por fim, é importante destacar que a análise das microexpressões faciais não é a única pseudociência que existe no mundo. Há diversas outras técnicas que são vendidas como soluções mágicas para problemas complexos, mas que não possuem evidências científicas que as sustentem. Force aí na memória, que você certamente vai se lembrar de algumas.

É muito importante que as pessoas estejam conscientes e psicoeducadas sobre essas pseudociências e saibam diferenciá-las da ciência real, que se baseia em evidências empíricas, testes rigorosos e análises críticas. A ciência é um processo contínuo de investigação e descoberta, pautada em métodos rigorosos e em constante evolução. As pseudociências, por outro lado, tendem a oferecer respostas rápidas e fáceis para problemas diversos, sem ter provas suficientes para sustentar suas afirmações, onde seus praticantes, na grande maioria das vezes, estão muito mais empenhados em obter a atenção e o dinheiro da conta dos mais desavisados.

As críticas de Santineli têm sido amplamente divulgadas nas redes sociais, e muitas pessoas têm elogiado sua postura cética e consciente em relação às pseudociências e teorias conspiratórias. Entretanto, é importante destacar que a disseminação de informações enganosas e pseudocientíficas é um problema sistêmico, que afeta diversas áreas do conhecimento, e que requer a atenção e o engajamento de todos para ser combatida. Sigamos!

Referências

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Thiago Moreira Maia Montalvão

Thiago Moreira Maia Montalvão

Psicólogo Clínico Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, em Belo Horizonte/MG; Mestrando em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); E Dançarino Profissional pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Rio de Janeiro (SATED-RJ). Thiago Montalvão - Doctoralia.com.br