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As pessoas desistiram das medidas pandêmicas contra a gripe um século atrás quando se cansaram delas – e pagaram um preço muito alto

Traduzido por Julio Batista
Original de J. Alexander Navarro para o The Conversation

Imagine os EUA tendo dificuldades para lidar com uma pandemia mortal.

Autoridades estaduais e locais promulgam uma lista de medidas de distanciamento social, reunindo restrições, ordens de lockdown e decretos que preveem a obrigação do uso de máscaras em um esforço para conter a onda de casos e mortes.

O público responde com conformidade generalizada misturada com resmungos, negação e uns até se sentem pessoalmente ameaçados. À medida que os dias se transformam em semanas, em meses, as restrições tornam-se mais difíceis de tolerar.

Proprietários de teatros e salões de dança reclamam de suas perdas financeiras.

Os líderes religiosos reclamam do fechamento de igrejas, enquanto escritórios, fábricas e, em alguns casos, até salões podem permanecer abertos.

As autoridades discutem se as crianças estão mais seguras nas salas de aula ou em casa.

Muitos cidadãos se recusam a usar máscaras em público, alguns reclamando que se sentem desconfortáveis ​​e outros argumentando que o governo não tem o direito de infringir suas liberdades civis.

Por mais familiar que possa parecer em 2021, essas são descrições reais dos Estados Unidos durante a mortal pandemia de influenza de 1918. Em minha pesquisa como historiador da medicina, tenho visto repetidamente as muitas maneiras que a nossa pandemia atual espelhou aquela experimentada por nossos antepassados ​​um século atrás.

À medida que a pandemia da COVID-19 entra em seu segundo ano, muitas pessoas querem saber quando a vida voltará a ser como era antes do coronavírus. A história, é claro, não é um modelo exato para o que o futuro reserva. Mas a maneira como os estadunidenses emergiram da pandemia anterior pode sugerir como será a vida pós-pandemia desta vez.

Como a COVID-19, a pandemia de influenza de 1918 atingiu o mundo de forma rápida e pesada. Nos EUA, evoluiu de poucos casos relatados em algumas cidades a um surto nacional em poucas semanas. Muitas comunidades emitiram várias séries de ordens de restrição – correspondendo aos fluxos e refluxos de suas epidemias – na tentativa de manter a doença sob controle.

Essas ordens de distanciamento social tiveram um grande papel para reduzir casos e mortes. No entanto, assim como hoje, elas costumam ser difíceis de manter. No final do outono, poucas semanas depois que as ordens de distanciamento social entraram em vigor, a pandemia parecia estar chegando ao fim à medida que o número de novas infecções diminuía.

As pessoas clamavam para voltar às suas vidas normais. As empresas pressionaram as autoridades para ter permissão para reabrir. Acreditando que a pandemia havia acabado, as autoridades estaduais e locais começaram a rescindir os decretos de saúde pública. A nação voltou atrás com seus esforços para enfrentar a devastação que a influenza havia causado.

Para os amigos, famílias e colegas de trabalho das centenas de milhares de estadunidenses que morreram, a vida pós-pandemia foi repleta de tristeza e pesar. Muitos dos que ainda estavam se recuperando de suas experiências com a doença precisaram de apoio e cuidados.

Em uma época em que não havia rede de seguridade federal ou estadual, organizações de caridade entraram em ação para fornecer recursos para famílias que haviam perdido seu ganha-pão ou para acolher as incontáveis ​​crianças que ficaram órfãs pela doença.

Para a grande maioria dos estadunidenses, porém, a vida após a pandemia parecia ser uma corrida precipitada para a normalidade. Sentindo saudades há semanas de suas noites na cidade, eventos esportivos, serviços religiosos, interações em sala de aula e reuniões familiares, muitos estavam ansiosos para retornar às suas velhas vidas.

Seguindo as dicas de funcionários públicos que haviam – um tanto prematuramente – declarado o fim da pandemia, os estadunidenses se apressaram demais para retornar às suas rotinas pré-pandêmicas. Eles lotaram cinemas e salões de dança, lotaram lojas e shoppings e se reuniram com amigos e familiares.

As autoridades advertiram a nação que os casos e mortes provavelmente continuariam por meses. O fardo da saúde pública, entretanto, agora não recaía sobre a política, mas sim sobre a responsabilidade individual.

Previsivelmente, a pandemia avançou, estendendo-se até uma terceira onda mortal que durou até a primavera de 1919, com uma quarta onda atingindo o inverno de 1920. Alguns oficiais atribuíram o ressurgimento aos estadunidenses descuidados. Outros minimizaram os novos casos.

Apesar da persistência da pandemia, a gripe rapidamente se tornou notícia velha. O que antes era um tema regular nas primeiras páginas, tais notícias rapidamente se reduziram a pequenos recortes esporádicos escondidos nas últimas páginas dos jornais do país. A nação seguiu em frente, acostumada com o estrago que a pandemia havia causado e as mortes que ainda estavam por vir. Em grande parte, as pessoas não estavam dispostas a retornar às medidas de saúde pública social e economicamente prejudiciais.

É difícil manter as coisas no lugar

Nossos ancestrais talvez podem ser perdoados por não manterem o controle da pandemia por mais tempo. Em primeiro lugar, a nação estava ansiosa para comemorar o recente fim da Primeira Guerra Mundial, um evento que talvez tenha sido maior na vida dos estadunidenses do que até mesmo a pandemia.

Em segundo lugar, a morte por doença era uma parte muito maior da vida no início do século 20, e doenças como difteria, sarampo, tuberculose, febre tifoide, tosse convulsa, escarlatina e pneumonia matavam rotineiramente dezenas de milhares de estadunidenses todos os anos. Além disso, nem a causa nem a epidemiologia da influenza foram bem compreendidas, e muitos especialistas permaneceram não convencidos de que as medidas de distanciamento social tiveram qualquer impacto mensurável

Finalmente, não havia vacinas eficazes contra a gripe para resgatar o mundo da devastação da doença. Na verdade, o vírus da gripe só seria descoberto após 15 anos, e uma vacina segura e eficaz não estaria disponível para a população em geral até 1945. Dadas as informações limitadas de que dispunham e as ferramentas à sua disposição, os estadunidenses talvez suportaram a medidas de restrições de saúde pública pelo tempo que razoavelmente puderam.

Um século depois, e um ano após o início da pandemia da COVID-19, é compreensível que as pessoas agora estejam muito ansiosas para voltar às suas velhas vidas. O fim desta pandemia inevitavelmente virá, como aconteceu com todas as experiências anteriores da humanidade.

Se temos algo a aprender com a história da pandemia de influenza de 1918, bem como nossa experiência até agora com a COVID-19, no entanto, é que um retorno prematuro à vida pré-pandêmica é um risco de mais casos e mais mortes.

E os estadunidenses de hoje têm vantagens significativas em relação aos de um século atrás. Temos um conhecimento muito melhor sobre virologia e epidemiologia. Sabemos que o distanciamento social e o uso de máscaras funcionam para ajudar a salvar vidas. Mais criticamente, temos várias vacinas seguras e eficazes que estão sendo usadas, com um ritmo de vacinação cada vez mais semanal.

Manter todos esses fatores de combate ao coronavírus ou diminuí-los pode significar a diferença entre um novo surto de doença e um fim mais rápido para a pandemia. A COVID-19 é muito mais transmissível do que a gripe, e várias variantes preocupantes do SARS-CoV-2 já estão se espalhando pelo mundo. A mortal terceira onda de gripe em 1919 mostra o que pode acontecer quando as pessoas baixam prematuramente a guarda.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.