Pular para o conteúdo

Astrônomos podem ter detectado aminoácido glicina na atmosfera de Vênus

Por Evan Gough
Publicado no Universe Today

Atualmente, parece que todos os olhares estão em Vênus. A descoberta do potencial biomarcador fosfina na camada superior da atmosfera do planeta no mês passado atraiu muita atenção, como deveria. No entanto, ainda há alguma incerteza sobre o que significa a descoberta da fosfina.

Agora, uma equipe de pesquisadores afirma ter descoberto o aminoácido glicina na atmosfera de Vênus.

O artigo que anuncia a descoberta é intitulado “Detection of simplest amino acid glycine in the atmosphere of the Venus” (em português: “Detecção do aminoácido glicina mais simples na atmosfera de Vênus”). O autor principal é Arijit Manna, um PhD e pesquisador acadêmico do Departamento de Física do Colégio Midnapore em Bengala Ocidental, Índia. O artigo está no site de pré-publicação do arXiv, o que significa que ainda não foi revisado por pares e nem publicado em um periódico.

Embora a glicina e outros aminoácidos não sejam bioassinaturas, eles são alguns dos blocos de construção da vida. Na verdade, eles são os blocos de construção das proteínas. Eles também foram algumas das primeiras moléculas orgânicas a aparecer na Terra. A glicina é importante para o desenvolvimento de proteínas e outros compostos biológicos.

Os pesquisadores usaram o Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (ALMA) para detectar glicina na atmosfera de Vênus com espectroscopia. Eles a encontraram nas latitudes médias, perto do equador. É onde o sinal era mais forte e não foi detectado nos polos.

Em seu paper, os autores escrevem que “essa detecção na atmosfera de Vênus pode ser uma das chaves para a compreensão dos mecanismos de formação de moléculas prebióticas na atmosfera de Vênus. A alta atmosfera de Vênus pode estar passando quase pelo mesmo método biológico que a Terra passou há bilhões de anos”.

Essas duas frases têm um verdadeiro impacto. Poderia haver algum tipo de processo biológico acontecendo nas nuvens de Vênus? Eles dizem que “pode” ser uma das chaves e “pode ​​estar passando” pela mesma coisa que a Terra passou. O que isso significa?

Primeiro fosfina, depois glicina

Em meados de setembro, uma equipe de pesquisadores relatou ter encontrado fosfina na alta atmosfera de Vênus. Assim como a glicina, ela também foi detectada mais fortemente em latitudes médias. A fosfina pode ser uma bioassinatura e está na Terra. Mas também pode ser criada quimicamente, embora isso exija uma enorme quantidade de energia. Ela foi detectada em Júpiter e Saturno, onde há energia abundante para sua produção. Mas Vênus não tem a energia necessária para criá-la.

A equipe de pesquisadores que descobriu a fosfina foi cautelosa em relação às suas próprias descobertas. Em seu artigo, eles quase imploraram a outros pesquisadores que explicassem a presença da fosfina sem invocar a vida nessa questão. “Agora, os astrônomos vão pensar em todas as maneiras de justificar a presença da fosfina sem vida, e eu acolho isso. Por favor, façam isso, porque estamos no fim de nossas possibilidades de apresentar processos abióticos que podem produzir fosfina”.

Então, algumas semanas depois, outra equipe de pesquisadores fez exatamente isso. Em seu paper, chamado de perspectiva de hipótese, eles disseram que os vulcões podem ser responsáveis ​​pela fosfina.

“Nossa hipótese é que vestígios de fosfetos formados no manto seriam trazidos à superfície pelo vulcanismo e, posteriormente, ejetados para a atmosfera, onde poderiam reagir com água ou ácido sulfúrico para formar fosfina”.

A detecção da fosfina constitui o cenário desta última descoberta. Ambas as descobertas são parte das questões maiores em torno de Vênus: há vida ou o potencial para a vida em Vênus? Ou esses produtos químicos não têm relação com a vida?

Os pesquisadores identificaram uma região da atmosfera de Vênus que pode ser capaz de hospedar vida. Seria um arranjo bizarro e incomum de nossa perspectiva.

Vênus é extremamente inóspito, em sua maior parte. A atmosfera é ácida, a temperatura é alta o suficiente para derreter uma espaçonave e a pressão atmosférica é esmagadora. Mas no alto das nuvens, entre cerca de 48 e 60 km acima da superfície, a temperatura não é tão letal.

Nessa altitude, a temperatura varia de -1°C a 93°C. É muito controverso, mas alguns cientistas acham que um tipo de vida simples poderia sobreviver ali, se reproduzindo perpetuamente, sem nunca tocar a superfície do planeta. A fosfina é facilmente degradada, por isso deve ser continuamente produzida para ser detectada. A vida naquela altitude pode ser a fonte da fosfina.

Esta nova descoberta da glicina apenas aumenta o mistério e a incerteza. Em seu paper, os pesquisadores propõem que as células de Hadley podem ser responsáveis ​​por fornecer um lar para a vida.

“A circulação de Hadley de latitude média pode ser responsável para uma condição de sustento de vida mais estável, com tempos de circulação de 70-90 dias sendo suficientes para a reprodução da vida microbiana (semelhante à Terra)”.

Além disso, a detecção de glicina coincide com a detecção de fosfina. “A distribuição dependente da glicina na latitude corresponde aproximadamente com o limite de detecção onde a fosfina foi recentemente detectada e está dentro do limite superior da proposta célula de Hadley, onde o gás circula entre as altitudes superiores e inferiores”.

Mas não lance a nave espacial ainda

Embora seja uma descoberta intrigante e digna de mais estudos, a presença de glicina está longe de ser uma sugestão decisiva para a busca por vida em outro lugar. Os autores sabem disso e são cuidadosos em apontar tal conclusão.

“Deve-se notar que a detecção de glicina na atmosfera de Vênus é um indício da existência de vida, mas não uma evidência robusta”.

É um ingrediente usado pela vida, mas não uma indicação de vida.

O artigo aponta para alguns experimentos históricos projetados para testar a origem química da vida na Terra. Em 1953, a agora famosa experiência de Miller e Urey recriou as primeiras condições da Terra. Os pesquisadores criaram uma mistura química de água, metano, amônia e hidrogênio e aplicaram energia para simular um raio. O resultado foi uma sopa de compostos orgânicos mais complexos.

O experimento produziu ácido glicólico, um precursor da glicina, e os resultados corroboraram a teoria da abiogênese. A glicina detectada na atmosfera de Vênus poderia ter sido produzida pelo mesmo caminho da experiência de Miller e Urey. Existem também outras vias químicas para a glicina que são possíveis na atmosfera de Vênus.

Um diagrama simples da experiência de Miller e Urey. Nele mostra: a fonte de calor (heat source), o esfriamento (cooling), a direção da circulação (direction of circulation), a entrada de gás (gas inlet), os eletrodos (eletrodes) e as faíscas (spark). Créditos: Carny / Wikipédia.

“Em astrofísica, físico-química e biofísica, as rotas de reação sintética do mais simples aminoácido (glicina), a partir de moléculas simples, têm grande importância na evolução química e na origem da vida”, escrevem os autores.

“A detecção de glicina na atmosfera de Vênus pode indicar a existência de uma forma inicial de vida na atmosfera do planeta solar, porque o aminoácido é um bloco de construção da proteína. Vênus pode estar passando pelo estágio primário de evolução biológica”.

Ou pode não estar.

“Embora na Terra a glicina seja produzida por procedimentos biológicos, é possível que em Vênus a glicina seja produzida por outros meios fotoquímicos ou geoquímicos, que não são comuns na Terra”. Vênus é muito diferente da Terra, e há processos ocorrendo lá que não estão presentes aqui.

É aqui que entram todos os cuidados.

O artigo em si ainda não foi revisado por pares. E existem alguns pontos fracos nos resultados.

Por exemplo, o sinal espectroscópico da glicina é muito próximo ao do óxido de enxofre, então é possível que haja um erro na detecção da glicina. E esta é apenas uma única detecção, não foi verificada e não foi replicada. Além disso, a glicina é o mais simples dos aminoácidos e foi encontrada em outros lugares. Foi detectada em cometas e meteoritos, onde realmente não há esperança de vida.

Também não foi vista em nenhum outro planeta além da Terra, o que significa que seria surpreendente vê-la em um mundo tão hostil como Vênus.

Para descobrir, precisamos de mais espaçonaves visitando Vênus. “Uma missão a Vênus com amostragem direta da superfície e das nuvens venusianas pode confirmar a fonte de glicina no planeta”, afirmam os autores.

A detecção da glicina, se confirmada, é outro desenvolvimento intrigante na busca pela compreensão do surgimento da vida. Ou pode estar nos mostrando que a química que parece ser pré-biótica só é [pré-biótica] em casos raros e, na maior parte do tempo, ela não significa quase nada. Há muita coisa que não sabemos, e as missões a Vênus são a única maneira de descobrir isso e responder a algumas de nossas perguntas.

Mas, por enquanto, podemos ter certeza de que não foi encontrada vida em Vênus. Em vez disso, podemos ter descoberto apenas mais uma peça do quebra-cabeça que é a complicada atmosfera de Vênus.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.