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Atlântida: sem nenhuma chance em lugar algum

Por Kevin Christopher
Publicado na
Skeptical Inquirer

O mito foi contado pela primeira vez em dois dos diálogos de Platão: Timeu e Crítias. O Timeu, principalmente tido como uma ideia sobrenatural da Criação, é muitas vezes incluído no cânon das obras sacras de hermetistas, neo-gnosticistas e outros ocultistas, que se identificam fortemente com as filosofias especulativas de Platão e platônicos posteriores como o egípcio Plotino. Médiuns famosos e ocultistas postaram sobre a própria lenda de Atlântida como um assunto de profecia. Edgar Cayce, no livro “Sleeping Prophet“, previu que Atlântida seria descoberta entre 1968 e 1969; a mística do século XIX Madame Blavatsky afirmou que ela havia passado sete anos no Tibete estudando com mahatmas hindus que ensinaram a ela sobre as civilizações perdidas de Atlântida e Lemúria.

A lenda de Atlântida, após vários anos adormecida na imaginação do público em geral, voltou a popularidade nos últimos anos.

Vários novos livros malucos sobre a lendária civilização submersa podem ser encontrados em [várias] prateleiras nas livrarias. Partindo de uma ‘Ciência Marginal’ [Fringe-Science], os leitores podem escolher entre Gateway to Atlantis, escrito por Andrew Collins, The Blueprint Atlantis, por Colin Wilson e Rand Flem-Ath, e The Atlantis Enigma, por Herbie Brennan.

Para os leitores que procuram uma discussão mais fundamentada e cética, recomendo fortemente Imagining Atlantis, por Richard Ellis (Vintage, 1999) e Frauds, Myths and Mysteries: Science and Pseudoscience in Archeology, pela colunista da CSICOP Kenneth Feder (terceira edição, Mayfield Publishing Co., 1998). O livro de Ellis mostra quase uma enciclopédia de especulações sobre Atlântida. É notável por sua abordagem crítica e exaustivamente pesquisada, que abrange todas as personalidades e hipóteses influentes, mesmo discutindo sobre a ficção científica moderna e as visões de mundo perdido da cultura pop. Ele tem um excelente capítulo sobre Atlântida que mostra de forma concisa todo o essencial (sobre a falta de) provas.

Atlântida: Fato e Ficção

A questão que resiste, agora com dois milênios de idade, é saber se o relato de Platão sobre Atlântida é a descrição de uma civilização real que afundou sob as ondas, ou um conto que surgiu inteiramente das profundezas da imaginação do filósofo ateniense. Em termos gerais, existem três possíveis conclusões a serem feitas para a lenda de Atlântida:

  • a ideia é totalmente factual e inerrante;
  • é uma mistura de fatos, ficção e erros; ou
  • é totalmente ficcional.

A maioria dos idealistas excêntricos, assim como os mais renomados estudiosos, já abandonaram a primeira conclusão. Infelizmente, vários estudiosos concordam com a segunda possibilidade, mas a grande dificuldade é que cada detalhe da Atlântida de Platão que é deixada de lado enfraquece a teoria e a própria premissa de ter resolvido a questão de saber se Atlântida existiu. O bibliotecário Rand Flem-Ath pensa que Atlântida é, na verdade, a Antártida; O geoarqueologista Swiss Eberhard Zangger pensa que Atlântida é Tróia. Cada vez mais que as datas, a localização e outros detalhes são alterados da história de Platão, menos se tem para ser provado sobre a verdade de Atlântida. Torna-se tão ridículo quanto argumentar que uma casa vitoriana demolida em Hackensack, New Jersey, era na verdade uma Villa espanhola da Cidade do México o tempo todo, caso queira demonstrar.

Alguns estudiosos alegam que existe alguma verdade por trás da lenda de Atlântida geralmente argumentando que Platão teve apenas uma vaga lembrança de um cataclismo no Mar Egeu, tendo ocorrido em Creta ou em Santorini, mas que sua ideia é, em grande parte, ficcional. No entanto, todas as evidências mostram, como vou argumentar, que a ideia da Atlântida de Platão está além da dúvida razoável e é um mito totalmente ficcional e utópico inventado para ilustrar fortemente a filosofia política de Platão. Invocando o imperativo categórico de Ray Hyman, devemos primeiro certificar-nos de uma explicação necessária antes de tentar explicar um mistério, e nisto não podemos dispensar qualquer discussão sobre “explicações” ou “fontes” para a lenda de Atlântida.

A maioria das pessoas estão cientes que, superficialmente, “Atlântida” se refere a uma civilização antiga submersa num cataclismo. Quase ninguém, no entanto, está ciente da origem, detalhes, ou o contexto do próprio mito de Atlântida. Precisamos primeiro examinar atentamente todos estes e determinar exatamente o que Platão afirmou como fato, ou se ele tinha a intenção de suspender nossa descrença. Então, precisamos examinar a lenda no contexto da sua fonte literária: o diálogo da República de Platão. Finalmente, creio eu, nós podemos fazer um juízo sobre a credibilidade que a lenda de Atlântida merece.

Origem

Como dito acima, Atlântida é mencionada pela primeira vez em dois diálogos escritos por Platão: Timeu e Crítias. Antes de Platão, não há absolutamente nenhuma referência nos volumes das tradições literárias e mitológicas da Grécia antiga de qualquer lugar onde há uma suposta civilização ausente.

Ideólogos excêntricos argumentam que o conto de Atlântida é uma espécie de mapa do tesouro para algum país desconhecido sob o mar, ideia geralmente identificada com o arqueólogo e empresário Alemão Heinrich Schliemann, do século XIX. Schliemann descobriu as ruínas da cidade perdida de Tróia – cena do poema épico de Homero, a Ilíada, na Turquia, em 1872.

Antes de Schliemann, a maioria dos estudiosos clássicos opinavam que a Ilíada foi uma obra-prima poética tecida inteiramente por mitos e pela imaginação; alegando que Troia simplesmente nunca existiu. Schliemann, no entanto, levou os poemas de Homero tão a sério quanto um fundamentalista Cristão leva a Bíblia, e estava convencido de que Tróia era, de fato, algum lugar real, localizado no canto noroeste da Turquia ao longo do estreito de Bósforo que conduz do Mar Egeu ao Mar Negro. Após ter consultado as descrições geológicas na Ilíada e observando a paisagem turca, ele estava convencido de que Tróia jazia sob uma colina chamada Hissarlik (localização sugerida pela primeira vez por Charles MacLaren, em 1822). Schliemann escavou o morro com alguns instrumentos de trabalho um tanto destrutivos para escavação que eram comuns até mesmo para os profissionais durante a ‘infância da arqueologia’, no século XIX. Ele não encontrou apenas uma Tróia, mas várias. Há restos de sete assentamentos distintos em Hissarlik, com um recorde de ocupação humana datado do terceiro milênio aC.

A verificação arqueológica de Schliemann da Guerra Homérica de Tróia é um exemplo inspirador de como um leigo inteligente pode fazer uma contribuição significativa para uma pesquisa profissional. Infelizmente, Schliemann muitas vezes serviu como garoto-propaganda de excêntricos isolados que imaginaram uma esperança de seu sucesso.

Há diferenças importantes entre a Tróia de Homero e a Atlântida de Platão: a mais óbvia é que as ruínas de Tróia foram encontradas onde Homero disse que elas estavam, “provando do pudim”. Além disso, a Ilíada e seus heróis são parte de uma tradição mítica impregnada de arte e cultura grega. Objetos de cerâmica mostram cenas da Guerra de Tróia e retratam heróis como Aquiles, Ajax e Ulisses. Lendas locais e mitos religiosos de longa data também aludem a muitos dos personagens. Muitos dos lugares mencionados na Ilíada foram reconhecidos pelos gregos da época de Platão. Existe ainda evidências sólidas de que Ilíada (e sua companheira, a Odisseia) têm raízes profundas no passado. O Trabalho de Milman Parry na década de 1930 analisou a estrutura da poesia homérica comparando-a com a poesia oral entre os sérvios, e demonstrando que a Ilíada é, essencialmente, um poema oral tecido a partir de frases convencionais e transmitida através de gerações de bardos gregos. Embora seja escrita, a própria poesia é um produto da oral mnemônica e da composição métrica.

Timeu e Crítias de Platão, no entanto, não são tradicionais: seus diálogos são composições em prosa originais. Atlântida não é mencionada por ninguém antes de Platão, e nunca foi parte de tradições interconectadas mais amplas feitas por arte de cerâmica, poesia, alusões literárias, lendas locais, ou pela arquitetura monumental. Não há nenhuma evidência para mostrar que os contos de Atlântida foram passados por gerações em uma era muito anterior a Platão.

Atlântida em Detalhes e Contexto

Há uma cronologia estabelecida para os diálogos de Platão, com base em evidências estilísticas e outros aspectos. Os últimos diálogos do filósofo foram a República, Timeu e Crítias, os dois últimos nomeando personagens que contribuíram para a parte mais significativa do diálogo. Vale a pena notar aqui que, enquanto eu chamo os participantes destes diálogos de personagens, eles na verdade retratam contemporâneos reais de Platão e Sócrates. Em Timeu, Platão registra um diálogo entre Sócrates, Crítias, Hermocrates e Timeu. Os três últimos aplaudiram Sócrates por sua magistral discussão da sociedade ideal na República, dado as ideias de si próprio. O personagem Timeu descreve a criação do mundo, mas só depois de Crítias contar uma história de Atlântida que ele afirma ter ouvido quando tinha dez anos de idade. Seu avô havia contado essa história para os jovens, Crítias e outros, em um concurso de poesia feito no Koreotis – uma espécie de “Dia das Crianças” – durante o festival ateniense da Apatouria. No último dia da Apatouria, bebês, jovens homens e mulheres recém-casadas ​​eram matriculados em suas phratriai – uma “irmandade” entre as famílias envolvidas. Eu voltarei para o significado desta ocasião festiva na lenda de Atlântida mais tarde. Nos diálogos de Crítias, ele continua seu relato sobre Atlântida, dando detalhes sobre as origens da sociedade, a geografia e a cultura. O diálogo, em seguida, é interrompido abruptamente. Esta pausa é feita coincidindo com a morte de Platão. O filósofo, é claro, nunca chegou a escrever um diálogo de Hermócrates.

Em Timeu, o Crítias afirma que seu avô, então com 90 anos de idade, ouviu a história de seu próprio pai, Dropides. Dropides, por sua vez, ouviu a história do reverenciado poeta e estadista ateniense Solon, que coloca sua proveniência de volta ao século VI aC. Em última análise, o caráter e os atributos de Crítias á história de Atlântida se voltam para os sacerdotes da cidade egípcia de Sais. Ele alega que Solon, durante suas viagens no Egito, reuniu-se com esses clérigos. Eles ridicularizaram Solon e seus compatriotas gregos por sua falta de conhecimento histórico. Os sábios, em seguida, surpreenderam-no com uma alegação antiga sobre a civilização atlante perdida. Eles disseram a Sólon que a história de Atenas vai mais além do que qualquer ateniense lembra, e que a cidade já empreendeu uma guerra com Atlântida a milhares de anos atrás. Mesmo durante a vida de Sólon, a civilização egípcia era antiga, mantida a mais de dois mil anos de história, então esta parte da história seria inteiramente plausível. No entanto, os sacerdotes de Sais, como o caráter do Crítias de Platão informa – insistiram que a guerra Atlante-Ateniense foi travada a cerca de 8.000 anos antes de Sólon nascer, cerca de 9000 aC: muito mais antigo do que qualquer evidência que arqueólogos modernos têm, até agora encontrado para a civilização na Bacia do Mediterrâneo, ou em qualquer lugar do mundo para esse assunto.

O relato de Platão é inequívoco: ele coloca claramente a existência de Atlântida em cerca de 10.000 aC. Ele também explica claramente a alegada proveniência da história de Atlântida até Platão: sacerdotes na cidade egípcia de Sais manteram registros escritos históricos (gegrammena) de Atlântida até 8.000 anos antes de Sólon ouvir o conto. Caso tenha alguma dúvida, simplesmente não havia escrita egípcia, não haviam sacerdotes egípcios, nem qualquer civilização egípcia a 11.000 anos atrás. No entanto, supondo por uma questão de argumento que essa ideia seja possível, então entra a questão do fio tênue dos boatos: 1) os sacerdotes dizem a Sólon sobre a lenda; 2) Sólon diz a Dropides; 3) Dropides diz a seus filhos mais velhos, e ao avô de Crítias 4) que diz a seu neto de dez anos de idade; 5) e, finalmente, Crítias, agora um homem crescido, narra o conto de Sócrates e seus convidados em um diálogo semi-ficcional registrado por Platão. A lenda de Atlântida onde acredita-se que tenha provindo de Platão parece um trecho bastante inacreditável para dar credibilidade a uma história sobre o passado distante.

Em 1969, o sismólogo grego Angelos Galanopoulos deu a proposta que a erupção catastrófica da ilha vulcânica de Santorini (Thera), em 1500 aC., foi a fonte da Atlântida de Platão. Afinal, Santorini é uma ‘caldeira afundada’, e uma cidade enterrada que se extinguiu na catástrofe – Akrotiri foi descoberta na ilha pelo arqueólogo grego Spyridon Marinatos em 1967. Infelizmente, Galanopoulos forçou a data da antiga erupção de Santorini para unir com a história de Atlântida, argumentando que Platão tinha errado suas datas por um fator de dez: a civilização perdida foi submersa a 900 anos, e não a 9.000 anos, antes de Sólon. A confusão de centenas e milhares era, argumentou ele, um erro de tradução entre o egípcio e o grego. No entanto, permanece o fato que os egiptólogos não encontraram quaisquer textos egípcios que registram a lenda de Atlântida, independentemente de sua suposta idade, em Sais ou em qualquer outro lugar. Além disso, Galanopoulos colocou o seu pé na armadilha que eu mencionei anteriormente. Ele está mudando parte da definição de Atlântida, a fim de provar a sua existência. Ao equiparar Atlântida com Santorini, Galanopoulos mexe com a localização e a data, implorando a própria questão de saber se a Atlântida de Platão, ao invés de Galanopoulos, realmente existiu. Em seu livro, Richard Ellis apropriadamente cita, mais tarde, o membro da CSICOP L. Sprague De Camp: “Você não pode mudar todos os detalhes da história de Platão e ainda afirmar ter a história de Platão. Isso é como dizer que o lendário Rei Arthur é “realmente” a Cleópatra; tudo que você tem a fazer é mudar o sexo da Cleópatra, a nacionalidade, o período, o temperamento, o caráter moral, e outros detalhes, e a semelhança se torna óbvia”.

Critias foi bastante claro sobre a data de Atlântida; ele também foi claro sobre a localização: colocada no oceano fora das Colunas de Hércules (tradução de Benjamin Jowett):

“[24e]… Para ela estar relacionada em nossos registros como esteve uma vez, o Estado suspendeu o curso de um poderoso exército, que, a partir de um ponto distante no oceano Atlântico, foi insolentemente usado para atacar toda a Europa e a Ásia. Não haviam navegações pelo oceano naquele tempo; pela frente da boca, como os gregos lhe chamam, e como você diz, “os pilares de Heracles, (isto é, Hércules), estavam em uma ilha que fora maior que a Líbia e a Ásia juntas; e era possível para os viajantes da época cruzarem com ela para chegarem em outras ilhas, as ilhas de todo o continente”

“[25a] defronte deles, engloba-se o verdadeiro oceano. Por tudo o que temos aqui, encontrando dentro da boca da qual falamos, é, evidentemente, um paraíso com uma entrada estreita; mas lá está um verdadeiro oceano, e o terreno circundante pode mais ser justamente chamado, no sentido mais pleno e mais verdadeiro, um continente.”

[25b] das terras daqui que estão dentro do Estreito, eles governaram desde a Líbia até o Egito, e sobre a Europa, tanto quanto em Toscana. Então neste alojamento, estando todos reunidos, fizeram uma tentativa de escravizá-los, de uma vez por todas, atacando tanto ao seu país quanto ao nosso e ao conjunto dos territórios dentro do Estreito…

A alegação da localização de Atlântida é bastante precisa: o Mediterrâneo é o “paraíso”, com uma “entrada estreita”, ou seja, os pilares de Hércules. Atlântida encontra-se fora do Mediterrâneo “á um ponto distante” do oceano Atlântico. Estudiosos como J.V. Luce seguiram para Galanopoulos afirmando que a lenda de Atlântida realmente referia-se a Akrotiri, em Santorini. Em 1992, Eberhard Zangger, do Instituto Arqueológico Alemão em Atenas, Grécia, anunciou sua teoria de que Atlântida foi realmente Tróia, que, como já foi referido, encontra-se a noroeste da Turquia. É uma ideia bastante arriscada dizer que a história sobre uma grande ilha no Oceano Atlântico é, na verdade, uma pequena ilha no Mar Egeu ou uma cidadela na Turquia antiga, mas estudos sérios foram financiados para discutir este ponto. De acordo com Richard Ellis, a Universidade de Stanford e o Instituto Arqueológico Alemão apoiaram os esforços de Zangger de 1984 a 1988.

Os excêntricos, no entanto, são culpados de distorções muito maiores: eles usam a descrição de uma ilha fora da coluna de Hércules ainda mais desleixadamente. Eles tem carta branca para colocar Atlântida quase qualquer lugar da superfície do planeta. Rand Flem-Ath correlaciona Atlântida com a Antártida. John M. Allen, em seu livro Atlantis: The Andes Solution, coloca Atlântida na atual Bolívia, ou, mais especificamente, em uma ilha vulcânica submersa no lago Poopo, no altiplano boliviano. Para mais informações sobre esta teoria, veja www.geocities.com/webatlantis/

Correlacionar Atlântida com uma civilização perdida (real ou imaginária) em qualquer lugar que não seja o Oceano Atlântico requer ignorar uma parte fundamental da descrição de Platão:

[25d] e um dia de tristeza e de noite se abateu sobre eles, quando todo o corpo de seus guerreiros foram engolidos pela terra, e a ilha de Atlântida, em sua forma, foi engolida pelo mar e desapareceu; Por isso também o oceano naquele local agora se tornou intransitável e insondável, sendo bloqueado pela lama e pelos cardumes que a ilha criou quando se estabeleceram lá (tradução de Benjamin Jowett).

Nem a Antártida nem o Lago Poopo são cardumes enlameados intransitáveis ​​no Oceano Atlântico.

Qualquer prova potencialmente possível de que Atlantis existiu depende de uma definição mantida, especialmente a de Platão. Ele é claro sobre a Atlântida que está falando, e até que uma grande ilha submersa seja encontrada no Atlântico com ruínas de uma antiga civilização de navegantes que existiu a 11.000 anos atrás, o cético pode confortavelmente assumir que Atlântida nunca existiu.

Finalidade dos escritos de Platão sobre o Mito de Atlântida

Os diálogos de Platão expuseram a sua filosofia e têm algumas características peculiares. Um desses recursos é o uso de contos extraordinários afirmados como verdade a fim de expressar vividamente suas ideias. No final de Górgias, por exemplo, Sócrates reconta uma história sobre a ilha dos abençoados e o mundo inferior (versões gregas do Céu e do Inferno), profetizando-o assim: “Ouça, então, como os contadores de histórias dizem, um conto muito bonito, que eu ouso dizer que você estará disposto a considerar apenas como uma fábula, mas que, como eu acredito, é um conto verdadeiro, e eu quero dizer isso falando a verdade” (tradução de Benjamin Jowett).

No final da República, Sócrates conta a história de Er, que, gravemente ferido em batalha, tem uma experiência de quase-morte. Ele encontra-se em uma pira funerária (felizmente não iluminada). “E assim, Glauco, o conto foi salvo e não desapareceu, e vai nos salvar se formos obedientes à palavra falada; e passarmos com segurança sobre o rio do esquecimento e a nossa alma não será contaminada” (Jowett). Platão usa o dispositivo de contos incríveis como “verdadeiros” em outros diálogos, incluindo Meno e Leis. O Timeu, como mencionado acima, é uma sequela do grande diálogo da República de Platão sobre a natureza da sociedade ideal e sua governança. Ao expor as práticas de formação do estado ideal e da cidadania, Platão discute as ferramentas a serem empregadas na educação da juventude. Uma ferramenta é o uso de histórias totalmente fabricadas, apresentadas aos jovens como histórias verdadeiras.

“[República, 376] Nesta educação, você deve incluir histórias, não? Estas são de dois tipos, histórias reais e de ficção. Nossa educação deve usar tanto uma quanto outra, começando com a ficção… E o primeiro passo, como você sabe, é sempre o que mais importa, especialmente quando estamos lidando com aqueles que são jovens e tenros. Esse é o momento em que eles são facilmente moldados e qualquer impressão que optar por fazer deixará uma marca permanente (tradução de Desmond Lee).”

Mais tarde, Platão escreve, antecedendo o “Mito do sangue e do solo”,

“[República: 414 b-c] “Agora eu me pergunto se poderíamos inventar uma daquelas histórias convenientes que falamos á alguns minutos”, eu perguntei. “Alguns magnificam o mito que, por si só, leva a convicção de toda a nossa comunidade, incluindo, se possível, os Anciãos […] Nada como um novo conto de fadas para os poetas contarem e persuadirem as pessoas a acreditar sobre o tipo de coisa que muitas vezes não aconteceram, ‘era uma vez’, mas nunca ocorreram e nem eram suscetíveis: na verdade, seria necessário um monte de persuasão para levar as pessoas a acreditar” (tradução de Desmond Lee).”

Como o filósofo moderno Karl Popper observa no primeiro volume da série de duas partes “A sociedade aberta e seus inimigos” (Princeton, 1962), Platão via as lendas sobre as origens de um povo, a fortaleza moral e as grandes realizações como ferramentas de doutrinação socialmente úteis – mentiras nobres.

Crítias, o personagem no Timeu que conta a história de Atlântida para Sócrates e seus convidados, é alguém especial, por muitas razões. Em primeiro lugar, ele é o grande tio de Platão. Ele também foi um dos Trinta Tiranos – o regime autoritário que assumiu Atenas depois da Guerra do Peloponeso. Ele era anti-democrático e pró-Esparta. A sociedade ideal delineada na República de Platão é feita por acaso, sendo tão anti-democrática quanto notavelmente era a sociedade de Esparta. Crítias era também um bom poeta e professou a doutrina da “mentira nobre” compartilhada por Platão na República.

De acordo com Popper, ele “foi o primeiro a glorificar as mentiras da propaganda, cuja invenção ele descreveu em versos fortes, elogiando o homem sábio e astuto que fabricou a religião…” (1962, 142 p.).

Como propaganda, o mito da Atlântida é mais sobre Atenas do que uma civilização afundada. O conto coloca a história de Atenas profundamente no passado, fazendo dos atenienses um povo surgindo “a partir do solo”, e retratando seus cidadãos em uma batalha heroica contra o poder ameaçador dos inimigos da Atlântida. No Timeu, Crítias responde ao pedido de Sócrates para “descrever com precisão a minha cidade [Atenas] lutando uma guerra digna dela”:

“[25c] [Atenas] em elegância e com todas as artes bélicas, atuando em parte como líder dos gregos, e em parte em pé, sozinha, por si só quando abandonada por todos os outros, depois de encontrar os perigos mortais, ela derrotou os invasores e criou um troféu; em que ela salvou da escravidão, os que ainda não foram escravizados, e todo o resto de nós que habitam dentro de seus limites; Heracles, de bom grado, nos libertou. (tradução de Benjamin Jowett).”

O contexto do festival durante o qual Crítias ouve a história é de seu avô que está dizendo, como eu mencionei acima. A festa de Apatouria envolve a indução de crianças, jovens e mulheres na fratria, ou ‘clã de famílias’. Isto é onde a sociedade induz a sua próxima geração para o rebanho, exatamente o contexto em que a finalidade para a educação através de ficções apresentadas como fato é exposta na República. Também notável é o fato de que este é um concurso em recital de poesia épica. A poesia épica foi o meio clássico na sociedade grega para contos sobre os homens heroicos de outrora.

Não há nenhuma evidência para indicar que Atlântida represente qualquer lugar real em qualquer época. Onde a história contém descrições ou eventos que se assemelham a acontecimentos históricos, ela só faz isso na medida em que qualquer peça de ficção baseia-se nas experiências da realidade. Todas as evidências apontam para a história como sendo uma das mentiras nobres de Platão: ficções úteis usadas para fazer um ponto, não para referir-se ao passado.

Atlântida continua a cativar a imaginação das pessoas, pois oferece a esperança de quem perdeu seus ideais ou algum potencial humano para explorar o que um dia vai ser descoberto, pertencendo aos blocos de alvenaria de uma civilização morta. Vidências de estradas desmoronadas em Bimini ou sobre o esboço de alguma terra incógnita em um mapa forjado ignora a real Atlântida, o país não descoberto que existe apenas nos ideais humanos.

Iran Filho

Iran Filho

Estudante de Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade Potiguar (UnP) e entusiasta da tecnologia, filosofia, economia e ficção científica.