Por Carly Cassella
Publicado na ScienceAlert
Os crânios de dois babuínos, mumificados há mais de 3.000 anos, ajudaram a delimitar a localização de uma lendária “terra da abundância”, que no passado abastecia o Antigo Egito com ouro, incenso, mirra e macacos.
Conhecida como a terra de Punte, ou ‘terra de Deus’, esse reino distante e fantástico pode ter realmente existido fora de sua mitologia famosa, apesar de nenhum vestígio físico dele ter sido encontrado.
Escritos e desenhos antigos da época convenceram muitos arqueólogos de que a terra de Punte estava localizada em algum lugar próximo ao Mar Vermelho e foi fundamental para o surgimento das rotas das especiarias, também conhecidas como rotas marítimas da seda, que ligaram as culturas e o comércio oriental e ocidental.
Ou talvez devessem ter sido chamados de ‘terra do babuíno’. Os pesquisadores agora pensam que o tráfico de um macaco sagrado, conhecido como babuíno-sagrado (Papio hamadryas), foi “um fator importante que contribuiu para a expansão do comércio do Mar Vermelho durante o segundo milênio a.C.”.
Os antigos egípcios pareciam ter reverenciado o babuíno-sagrado. O deus Thoth, o ser supremo da lua e da sabedoria, às vezes é representado como um babuíno (Thoth também é frequentemente representado com a cabeça de um íbis), com estátuas da divindade nos templos. Os antigos egípcios também enterraram múmias de babuínos em tumbas.
Como tal, os antigos egípcios viajavam grandes distâncias para adquirir babuínos vivos. Seu comércio é na verdade o primeiro registro de transplante de fauna estrangeira na história da humanidade.
A terra de Punte era um grande empório para macacos e babuínos-sagrados especificamente. A arte mostra esses animais sendo transportados de volta ao Egito em barcos e às vezes por terra, mas o antigo comércio de animais é frequentemente esquecido quando os historiadores discutem a localização misteriosa de Punte.
Rastreando as origens de várias múmias de babuínos encontradas em templos e tumbas egípcios antigos, os pesquisadores agora pensam que os babuínos-sagrados se originaram de uma região que abrange a Etiópia, Eritreia, Djibouti e algumas partes da Somália e Iêmen.
“Este resultado é uma prova do tremendo alcance da navegação egípcia durante o segundo milênio a.C.”, escrevem os autores. “Isso também corrobora com o consenso das conjecturas acadêmicas sobre a localização de Punte”.
No passado, especialistas argumentaram que as terras lendárias de Punte ficavam perto da costa da Somália. Outros pensavam que se entendia ao leste em direção à Eritreia ou incluíam mais partes da Península Arábica, como o atual Iêmen. Há mesmo quem argumente que a terra se estendia até Uganda ou Moçambique, embora esta noção seja mais fortemente contestada.
A nova localização estimada, embora ainda provisória, ajuda a estreitar nosso foco.
“Muitos estudiosos vêem o comércio entre o Egito e Punte como o primeiro longo passo marítimo de uma rede de comércio conhecida como rota das especiarias, que iria moldar as relações comerciais e geopolíticas por milênios”, explica o antropólogo Nathaniel Dominy da Faculdade de Dartmouth (EUA). “Os babuínos eram fundamentais para esse comércio, portanto, determinar a localização de Punte é importante”.
Além de examinar babuínos mumificados, os pesquisadores analisaram o tecido de 155 babuínos modernos de 77 locais (que existiam no local atual hipotetizado de Punte). Comparando as composições químicas nos dentes, ossos e cabelo dos macacos, a equipe foi capaz de descobrir de onde eles vieram.
As assinaturas químicas deixadas nos restos do animal podem nos dar informações sobre onde eles viveram. A mistura de isótopos de estrôncio varia de acordo com a comida que eles comem, por exemplo, e são fixados no esmalte dos dentes desde o começo da vida.
Analisando essas assinaturas químicas, as novas descobertas mostram que ambas as múmias de babuínos-sagrados – EA6738 e EA6736 – não nasceram no Egito. Em vez disso, os autores pensam que esses restos mumificados, permanentemente na posição do deus Thoth, vieram de um local na Eritreia, Etiópia ou Somália.
Um dos babuínos-sagrados, EA6738, parece ter vivido no Egito por muitos anos. Sua casa original foi encontrada dentro da distribuição natural de sua espécie – exatamente onde Punte existe.
O outro macaco, EA 6736, morreu pouco depois de chegar ao Egito. Com apenas alguns dias ou meses em uma nova terra, seu cabelo e esmalte não tiveram tempo suficiente para serem contaminados com sedimentos do Nilo.
Como seus caninos haviam sido arrancados, os autores acreditam que esses macacos viviam em torno de pessoas, possivelmente como animais de estimação reais, colhedores de frutas ou até mesmo animais policiais. Como observam os autores: uma mordida desses bichos poderia cortar um músculo da coxa até o osso.
Em contraste, cinco babuínos mumificados de outra espécie, comercializados na África várias centenas de anos antes, parecem ter nascido e sido criados no Egito em circunstâncias muito diferentes.
Como o Egito era considerado desprovido de qualquer espécie de macaco, os autores acham que as múmias fornecem “pistas tentadoras de um programa de reprodução em cativeiro para babuínos nesta época, provavelmente em Mênfis, uma antiga capital do Baixo Egito, a noroeste do Mar Vermelho”.
Para que esses macacos eram usados é outra questão, mas eles parecem ter vivido vidas mais difíceis do que os idolatrados babuínos-sagrados. Seus corpos mumificados mostraram vestígios de confinamento interno prolongado e deficiências de vitamina D.
“Deixando de lado a intrigante questão do porquê os antigos egípcios deificavam o babuíno-sagrado, o nível de reverência era suficiente para justificar a importação, manejo e mumificação dele e de outra espécie, P. anubis, o babuíno-anúbis”, escrevem os autores.
Embora muitas vezes esquecido por historiadores e arqueólogos, babuínos mumificados do antigo Egito podem ser a última pista remanescente para a terra perdida de Punte.
“O comércio de produtos de luxo exóticos, incluindo babuínos, foi o motor por trás das primeiras inovações náuticas”, diz Dominy. “Por mais de 150 anos, Punte foi um mistério geográfico. Nossa análise é a primeira a mostrar como babuínos mumificados podem ser usados para servir de base para este debate duradouro”.
O estudo foi publicado na eLife.