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Ciência e Religião: Inimigas Naturais

Texto recuperado do extinto blog da Sociedade da Terra Redonda (STR) e mantido de acordo com o antigo acordo ortográfico.

Por Judith L. Hayes
Publicado no The Happy Heretic

Há um motivo por que há canções chamadas de “espirituais”. É porque são canções sobre Jesus, paraíso e outras coisas “espirituais”. A tendência recente de redefinir essa palavra, espiritual, é perturbadora porque há um grande número de cientistas supostamente céticos e racionais que se juntaram ao movimento para fazer com que a palavra signifique algo que ela não significa. Sustento que nós céticos não podemos reivindicar tal título se nós formos levianos com tais palavras. Parecemos estar buscando, desesperadamente, por uma posição conciliatória em face da agressiva imprensa judiciária iniciada recentemente pela Direita Religiosa. Estamos cedendo terreno.

Recentemente pude escrever para a revista Skeptical Inquirer de Julho/Agosto de 1999. Fui direto ao ponto (todas as citações e referências são desse artigo, com exceção de algumas de Carl Sagan). Meu artigo foi dedicado à controversia; controversia esta sobre a ciência e a religião, perguntando se elas podem ou não coexistir pacificamente lado a lado. Elas não podem. Se vamos permitir que as palavras signifiquem o que elas realmente significam, religião e ciência não podem esperar nada além de uma trégua armada.

Problema da Definição

A palavra “espiritual” é um exemplo proeminente do atoleiro de definições no qual parecemos estar afundando. Há muitas outras palavras que estão começando a ser redefinidas de uma forma religiosa-sem-significado; fé e crença entre outras. Mesmo meu herói, o falecido Carl Sagan (1995) discutiu a palavra espiritualidade dizendo que “’Espírito’ vem da palavra latina ‘respirar’. O que respiramos é ar, que é certamente matéria, ainda que fina. Apesar de seu uso em contrário, não há nenhuma implicação necessária na palavra ‘espiritual’ de que estejamos falando de qualquer outra coisa além da matéria (incluindo a matéria da qual o cérebro é feito), ou qualquer coisa além do reino da ciência.” Não conheço nenhuma pessoa que pense que espiritualidade signifique respirar o ar ou que a associe a qualquer outra coisa além da religião.

“Fraudulento” pode ser uma palavra muito forte para se usar, mas tais interpretações confusas são no mínimo enganadoras. Da mesma forma, ao listar modelos diferentes de entendimento de como a religião e a ciência interagem, Eugenie Scott referiu-se a “domínios não-materiais” como se eles existissem. Mas o que é um domínio não-material? Alguém já viu algum? Mesmo o suposto vácuo do espaço intergaláctico contém moléculas, que são certamente materiais.

Nos nossos esforços para sermos conciliatórios, nos recusamos a aplicar palavras como paranormal e místico para religiões organizadas – pro vudu sim, pras religiões organizadas não. Mas por que? Apelar para espíritos invisíveis e incognoscíveis que dêem a nós, mortais, uma mãozinha, pertence ao reino do sobrenatural, o que significa alguma coisa existindo fora do mundo natural, o que significa algo que, para um cético, não existe. O invisível e o inexistente se parecem muito.

Barry Palevitz apresentou uma descrição racional e perspicaz de como ele lida com a insistência, de alguns de seus estudantes de ciências, de fazerem uma conciliação, permitindo que um pouquinho de Deus seja incorporado em teorias científicas. Mas no final ele faz a afirmação desqualificada de que a espiritualidade “não só é possível [na ciência], mas até vantajosa”.

Obviamente precisamos definir espiritual e espiritualidade. Uma estratégia bem sucedida é procurar no dicionário. Se você procurar espiritualidade encontrará todos os tipos de definições como religioso, sagrado, sobrenatural e transcendental; de, ou relacionado a, coisas imateriais, a alma, Deus; fantasmagórico; etéreo; sacro e assim por diante. Em nenhum lugar você encontrará “Do, ou pertencente ao, maravilhoso assombro em contemplar o universo.” Sagan novamente (1995): “Apesar do uso contrário….a ciência não é apenas compatível com a espiritualidade; ela é uma fonte profunda de espiritualidade”. [Grifo meu.]

Mas o nosso uso define nossas palavras e determina como elas aparecem em nossos dicionários. Por exemplo, a palavra “forsooth” costumava significar “indeed” (de fato) ou “in truth” (na verdade); mas a nossa falta de uso a relegou a peças Shakespearianas e versos. Não podemos simplesmente dispensar o uso com um aceno só porque isso pode nos ajudar a evitar uma confrontação filosófica desagradável. Se as palavras devem ter algum significado, devemos vê-las como elas são usadas comumente e compreendidas hoje em dia. Se alguém diz “Ela é uma mulher profundamente religiosa”, não há confusão sobre o significado.

O inglês [idioma original no qual este ensaio foi escrito] é um idioma rico, cheio de tantas nuances, tons muito sutis de significado. Temos palavras como maravilhado, assombro, amor, compaixão, ardor, reverência, respeito, espanto, carinho e assim por diante, quase que indefinidamente. Não há necessidade de cooptar palavras como “espiritual” para fazer duplicidades oblíquas e contorcidas na tentativa de sustentar a ilusão de que os religiosos e os não-crentes têm visões de mundo semelhantes. O golfo que divide essas duas visões de mundo, dependendo da força das crenças religiosas envolvidas, pode ser medido em anos-luz. Eu era uma cristã fundamentalista e posso te assegurar que, de um ponto de vista fundamentalista, essa vida terrena, juntamente com as luzinhas bonitinhas do céu noturno são inteiramente desimportantes. A vida é apenas um lugar para esperar a morte, após a qual a vida de verdade começa.

Então, tomado no contexto correto – o contexto honesto, cru, sem truques, não maquiado – não há nada de científico na espiritualidade e nada de espiritual na ciência.

Ultrapassando Limites

Stephen Jay Gould referiu-se à ciência e à religião como “disciplinas não sobrepostas.” Não sobrepostas? Dificilmente! A tradição judaico-cristã abrange, como verdades, coisas como animais falantes, um arbusto em chamas falante, a abertura do Mar Vermelho, o sol “ficando imóvel no céu” para Josué, comida caindo do céu, um ser humano andando sobre a água, pessoas voltando de seus túmulos e vários indivíduos “ascendendo” em corpo aos céus. Tais “verdades” exigem a suspensão das leis da natureza; se isso não é se sobrepor ao campo da ciência, não consigo imaginar o que poderia ser.

Definir o ceticismo é outra tarefa árdua, embora não devesse ser. A definição clássica de ceticismo é que nenhum conhecimento absoluto é possível, seja devido às nossas próprias limitações, seja devido à inacessibilidade ao objeto sobre o qual buscamos o conhecimento. Artigos inteiros, capítulos de livros e tratados foram escritos sobre esse pequeno sofisma, que é absurdo. A definição por si só é uma contradição óbvia. Se não há meio de saber algo com certeza, então não há meio de saber que não há meio de saber nada com certeza. Não é necessário dizer mais nada sobre esse assunto. Eu gostaria de ver essa definição desaparecer no horizonte para sempre. Sei, com certeza, que essa definição me dá dor-de-cabeça.

A definição em geral mais aceita de ceticismo, de que todas as afirmações devem ser questionadas e testadas para avaliar sua confiabilidade, deveria ser aplicada a todos os cientistas. E geralmente ela é. Mas quando é para se testar as afirmações da religião em busca de sua confiabilidade, muitos cientistas, como o restante de nós, foge do assunto como um todo, como gatos escaldados. Criticamos os videntes, mas não as orações. Por que? Qual a diferença? Rimos dos leprechauns e fadas no jardim, mas não dos anjos da guarda. Por que? Questionamos a idéia de alguém ter sido levado a Júpiter por alienígenas, mas não a idéia de almas invisíveis serem levadas para um paraíso igualmente invisível após a morte. Por que?

A fim de serem coerentes e de manterem a sua credibilidade, os céticos devem lidar com todas as afirmações de fenômenos sobrenaturais. A religião não deveria desfrutar de uma posição privilegiada só porque muitas pessoas são religiosas. Houve uma época em que a maioria das pessoas acreditava que o Sol orbitava a Terra. Copérnico deveria, portanto, ter abandonado suas buscas em deferência àquela maioria? O conhecimento científico não pode ser obtido por uma votação e o questionamento cético não deveria deter-se ao grito de “alto!” por temer ofender aos Verdadeiros Crentes.

Também me sinto sempre frustrada quando ouço pessoas dizendo “Deus” como se houvesse um entendimento universal sobre essa palavra. Nada poderia estar mais longe da verdade. O Deus dos judeus não enviou Jesus como Salvador do mundo, mas o Deus cristão o fez. O Deus mórmon inspirou Joseph Smith, mas o Deus muçulmano inspirou Maomé. E então há Brahma, Vishnu e Shiva – o mundo está cheio de Deuses mutuamente exclusivos. Esse fato, por si só, parece tornar todas as religiões controversas. E quando Einstein fez sua declaração sobre Deus ser sutil, embora não malicioso, você supõe que ele estava falando de Brahma?

Poder Papal

Tanto Richard Dawkins quanto Gould expressam apreciação pelo reconhecimento da evolução pelo Papa em 1996 – Dawkins brevemente e de má vontade, Gould mais amplamente e com entusiasmo. Estou com Dawkins nesse assunto, embora eu nem sequer vá tão longe quanto ele foi. Por que um cientista se importa com o que o Papa diz? Pensei que a religião e a ciência fossem “disciplinas não sobrepostas.” Teria havido aclamação mundial se o Papa tivesse anunciado que agora se poderia reconhecer a existência da tabela periódica dos elementos? Rastejar finalmente para fora do século XIV não merece um aplauso exuberante. E dizer que a posição de João Paulo sobre a evolução é um grande avanço em relação àquela de Pio XII é como dizer que ter três pneus furados todos ao mesmo tempo é um grande avanço em relação a ter quatro. Pra mim não.

Igualmente não posso concordar com a declaração de Gould de que “nenhuma dessas religiões [catolicismo e judaísmo] mantém qualquer tradição ampla de se ler a Bíblia como verdade literal…” Isso deve ter sido uma surpresa para todos os católicos ortodoxos a quem foi dito ser um pecado praticar o controle de natalidade. E de onde vem a autoridade para essa doutrina? De uma interpretação literal das palavras no Gênesis: “crescei e multiplicai-vos.” Será que o Papa não percebeu que, não só nos multiplicamos, mas que a superpopulação é um dos problemas mais sérios do mundo? O sofrimento humano causado pelo repúdio ao controle de natalidade é incalculável. E bem recentemente João Paulo II santificou o repúdio ao controle de natalidade colocando-o na Lei Canônica, garantindo mais miséria humana. Num planeta que há muito está vergado sob o peso de sua carga humana, tal édito é uma terrível crueldade.

Eu sou atéia, obviamente. Tendo dito isto, eu realmente respeito os direitos dos outros de venerar como quiserem – contanto que não tentem forçar suas crenças sobre mim ou sobre nossas cortes de justiça pagas com nossos impostos ou nas escolas públicas. E é aqui onde a batalha entre a ciência e a religião é travada. O assim chamado “criacionismo científico” está avançando rumo às nossas salas de aula, em parte devido à falta de oposição veemente de cientistas com credenciais. A posição conciliatória que mencionei acima ainda é procurada por pessoas demais, cujas vozes imporiam respeito se elas fossem altas o bastante para que as ouvíssemos.

As histórias do Jardim do Éden e da Arca de Noé são bizarras, infantis e positivamente inacreditáveis. A idéia delas serem apresentadas aos nossos estudantes, lado a lado com a evolução, como uma explicação alternativa, mas igualmente válida para a diversidade e a localização de toda a vida animal na Terra, é quase inconcebível. Nem é pouco assustadora. Mas, a não ser que todos nós revidemos, isso irá acontecer, sem dúvida. Medidas inconstitucionais estão acontecendo nas escolas de muitos estados, a Assembléia Legislativa votou a favor de exibir os assim chamados Dez Mandamentos em propriedades públicas, todos no Congresso estão cantando “Deus Abençoe a América” e assim por diante. Repito, o que falta para que os Estados Unidos se tornem uma teocracia é apenas os não-crentes, os cientistas e os céticos não fazerem nada.

Fazer de conta que não vemos as afirmações místicas e mágicas da maioria das religiões não muda a natureza dessas afirmações místicas e mágicas. Os cientistas são treinados na arte do pensamento crítico, exigindo escrupulosamente indícios convincentes antes de adotarem qualquer hipótese como teoria. Enquanto tenho dificuldade para entender como alguns pensadores, normalmente céticos, podem “compartimentalizar” seus pensamentos para acomodar a crença num Deus invisível e incognoscível, cuja existência não pode ser provada ou refutada, reconheço inteiramente seu direito de fazê-lo. Temos sorte de viver numa sociedade que permite liberdade completa de religião. Giordano Bruno, Galileu e centenas de milhares de outros não tiveram essa sorte. Entretanto, a liberdade de crer em algo não valida essa crença. Não há escapatória do fato de que a ciência e a religião entram em conflito se o método científico for aplicado às crenças religiosas.

Referências:

  • Dawkins, Richard. 1999. You can’t have it both ways: irreconcilable differences? SKEPTICAL INQUIRER 23 (4): July/August, 64.
  • Gould, Stephen Jay. 1999. Non-overlapping magisteria. Ibid., 55-61.
  • Palevitz, Barry A. 1999. Science and the versus of religion. Ibid., 32-35.
  • Sagan, Carl. 1995. The Demon-Haunted World. New York: Random House, 29.
  • Scott, Eugenie C. 1999. The science and religion movement. Ibid., 30.
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A Sociedade da Terra Redonda (STR) foi um blog de ceticismo e secularismo criado pelo professor Leandro da Silva Nunes Vieira.