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Os buracos negros são mais simples do que as florestas e a ciência tem seus limites

Por Martin Rees
Publicado na Aeon
Traduzido por Tomás Aguirre

Albert Einstein disse que “a coisa mais incompreensível sobre o Universo é que ele é compreensível”. E ele estava certo de ficar surpreso. Os cérebros humanos evoluíram para serem adaptáveis, mas a arquitetura do nosso sistema nervoso mal mudou desde que nossos antepassados ​​percorriam a savana e lidavam com os desafios que a vida nessas condições apresentava. É certamente admirável que esses mesmos cérebros nos permitiram dar sentido ao mundo quântico e ao cosmos, noções muito distantes do “senso comum”, mundo cotidiano em que evoluímos.

Mas acredito que a ciência atingirá os seus limites em algum momento. Há duas razões pelas quais isso pode acontecer. A otimista é que nós vamos esclarecer e sistematizar certas áreas (como a física atômica) ao ponto de não haver mais nada a dizer. Uma segunda possibilidade mais preocupante é que alcançaremos os limites do que nossos cérebros podem entender. Pode haver conceitos, cruciais para um entendimento completo da realidade física, que estão além dos limites de nossa capacidade de compreensão, da mesma forma que um macaco não é capaz de compreender darwinismo ou meteorologia. Algumas ideias poderão ter que aguardar uma inteligência pós-humana.

O conhecimento científico é realmente surpreendentemente irregular – e os mistérios mais profundos muitas vezes estão por perto. Hoje, podemos interpretar de forma convincente medidas que revelam dois buracos negros que ficam a mais de um bilhão de anos-luz da Terra. Enquanto isso, fizemos pouco progresso no tratamento do resfriado comum, apesar de grandes avanços na epidemiologia. O fato de que podemos estar confiantes de fenômenos cósmicos obscuros e remotos, e paralisados por coisas cotidianas, não é tão paradoxal quanto parece. A astronomia é muito mais simples do que as ciências biológicas e humanas. Os buracos negros, embora pareçam exóticos para nós, estão entre as coisas menos complicadas da natureza. Eles podem ser descritos precisamente por equações simples.

Então, como nós definimos complexidade? A questão de quão longe a ciência pode ir depende parcialmente na resposta dessa questão. Algo feito de apenas alguns poucos átomos não pode ser muito complicado. As coisas grandes também não precisam ser complicadas. Apesar de sua vastidão, uma estrela é bastante simples – seu núcleo é tão quente que moléculas complexas se destroem e nenhum produto químico pode existir, então o que resta é basicamente um gás amorfo de núcleos atômicos e elétrons. Alternativamente, considere um cristal de sal, composto de átomos de sódio e cloro, organizado em camadas e mais camadas para formar uma rede cúbica repetitiva. Se você tirar um grande cristal e cortá-lo, há pouca mudança em sua estrutura até que ele se divida na escala de átomos únicos. Mesmo que seja enorme, um bloco de sal não pode ser chamado de complexo.

Tanto os fenômenos atômicos quanto os astronômicos – o muito pequeno e o muito grande – podem ser bastante básicos. É tudo no meio dos dois que fica complicado. A mais complexa de todas as coisas são os seres vivos. Um animal tem estruturas internas diferentes em cada escala, das proteínas em células individuais até os membros e órgãos principais. Ele não existe mais se for partido em pedaços da forma como um cristal de sal continua a existir quando cortado e cortado em cubos. O animal morre.

A compreensão científica às vezes é considerada tal como uma hierarquia, ordenada da mesma forma que os pisos de um edifício. Aqueles que lidam com sistemas mais complexos estão nos andares mais altos, enquanto os mais simples residem nos pisos mais baixos. A matemática está no porão, seguida da física das partículas, então do restante da física, então química, daí biologia, depois botânica e zoologia e, finalmente, vem as ciências sociais e comportamentais (com os economistas, sem dúvida nenhuma, reivindicando a cobertura).

Ordenar as ciências não é algo controverso, mas é questionável se as “ciências do térreo “- a física das partículas, em particular – são realmente mais profundas ou mais abrangentes do que as demais. De certo modo, elas claramente são. Como o físico Steven Weinberg explica em Dreams of a Final Theory (1992, livro sem edição em português), todas as setas explicativas apontam para baixo. Se, como uma criança teimosa, você continuar perguntando “Por que, por que, por quê?”, você acaba no nível de partículas. Os cientistas são quase todos reducionistas no sentido dado por Weinberg. Eles se sentem confiantes de que tudo, por mais complexo que seja, é uma solução para a equação de Schrödinger – a equação básica que governa o comportamento de um sistema, de acordo com a teoria quântica.

Mas uma explicação reducionista nem sempre é a melhor ou mais útil. “Mais é diferente”, como disse o físico Philip Anderson. Tudo, por mais intrincado – florestas tropicais, furacões, sociedades humanas – é feito de átomos e obedece às leis da física quântica. Mas, mesmo que essas equações pudessem ser resolvidas para imensos conjuntos de átomos, eles não ofereceriam o esclarecimento que os cientistas procuram.

Sistemas microscópicos que contêm um grande número de partículas manifestam propriedades “emergentes” que são melhor compreendidas em termos de novos conceitos irredutíveis apropriados ao nível do sistema. A valência, a gastrulação (quando as células começam a se diferenciar no desenvolvimento embrionário), imprinting genômico e seleção natural são alguns exemplos. Mesmo um fenômeno tão pouco significativo como o fluxo de água em tubulações ou em rios é melhor entendido em termos de viscosidade e turbulência, ao invés de interações entre átomos individuais. Especialistas em mecânica de fluidos não se importam que a água seja composta de moléculas de H2O; eles podem entender como as ondas se quebram e o que faz um fluxo se agitar apenas porque eles encaram líquidos como um contínuo.

Novos conceitos são particularmente cruciais para a nossa compreensão de coisas realmente complicadas – por exemplo, aves migratórias ou cérebros humanos. O cérebro é uma reunião de células; uma pintura é uma montagem de pigmentos químicos. Mas o que é importante e interessante é como o padrão e a estrutura aparecem à medida que subimos de camada, o que pode ser chamado de complexidade emergente.

Assim, o reducionismo é verdadeiro em certo sentido. Mas raramente é verdade em um sentido útil. Apenas cerca de 1 por cento dos cientistas são físicos de partículas ou cosmólogos. Os outros 99 por cento trabalham em níveis “mais altos” da hierarquia. Eles são sustentados pela complexidade de seu assunto, e não por qualquer deficiência em nossa compreensão da física subnuclear.

Na realidade, portanto, a analogia entre ciência e uma construção é realmente muito pobre. A estrutura de um edifício está em perigo se tiver bases fracas. Em contraste, as ciências de “nível superior” que lidam com sistemas complexos não são vulneráveis ​​a uma base insegura. Cada camada de ciência tem suas próprias explicações distintas. Fenômenos com diferentes níveis de complexidade devem ser entendidos em termos de diferentes conceitos irredutíveis.

Nós podemos esperar grandes avanços em três fronteiras: o muito pequeno, o muito grande e o muito complexo. No entanto – e eu estou colocando meu pescoço em risco agora – meu palpite é que existe um limite para o que podemos entender. Os esforços para entender sistemas muito complexos, como nossos próprios cérebros, podem ser os primeiros a atingir esses limites. Talvez agregados complexos de átomos, sejam cérebros ou máquinas eletrônicas, nunca podem saber tudo o que há para saber sobre si mesmos. E podemos encontrar outra barreira se tentarmos seguir as setas de Weinberg mais abaixo: se isso levar ao tipo de geometria multidimensional que os teóricos das cordas preveem. Os físicos talvez nunca compreendam a natureza fundamental do espaço e do tempo porque a matemática é difícil demais.

Minha afirmação de que há limites para a compreensão humana foi desafiada por David Deutsch, um físico teórico distinto que foi pioneiro no conceito de “computação quântica”. Em seu provocador e excelente livro The Beginning of Infinity (2011), ele diz que qualquer processo é computável, em princípio. Isso é verdade. No entanto, ser capaz de calcular algo não é o mesmo que ter uma compreensão perspicaz disso. O lindo padrão fractal conhecido como o conjunto Mandelbrot é descrito por um algoritmo que pode ser escrito em algumas linhas. Sua forma pode ser plotada mesmo por um computador com pouco processamento:

https://d2e1bqvws99ptg.cloudfront.net/user_image_upload/517/site-Mandel_zoom_00_mandelbrot_set.jpg
Conjunto Mandelbrot. Wikipédia.

Mas nenhum humano que tiver acabado de receber o algoritmo consegue visualizar este padrão imensamente complicado no mesmo sentido que ele consegue visualizar um quadrado ou um círculo.

O campeão de xadrez Garry Kasparov argumenta em livro Deep Thinking (2017, sem edição em português) que “máquinas junto a humanos” é mais poderoso do que qualquer um dos dois sozinho. Talvez seja por explorar a simbiose cada vez mais forte entre os dois que novas descobertas serão feitas. Por exemplo, vai se tornar progressivamente mais vantajoso para usar simulações de computador em vez de executar experimentos em desenvolvimento de drogas e ciência de materiais. Se as máquinas eventualmente nos ultrapassarão em um grau qualitativo – e até mesmo se tornarão conscientes – é uma controvérsia viva.

O pensamento abstrato por cérebros biológicos tem sustentado o surgimento de toda a cultura e a ciência. Mas esta atividade, que abrange no máximo algumas dezenas de milhares de anos, provavelmente será uma breve precursora dos intelectos mais poderosos da era pós-humana – desenvolvida não pela seleção darwiniana, mas sim por “design inteligente”. Se o futuro a longo prazo reside nos pós-humanos orgânicos ou em máquinas super inteligentes eletrônicas é uma questão que levanta debates. Mas seríamos antropocêntricos demais se acreditarmos que uma compreensão completa da realidade física está dentro do alcance da humanidade e que nenhum enigma permanecerá para desafiar nossos descendentes remotos.

Tomás Aguirre

Tomás Aguirre

Estudante de ensino médio na cidade de São Paulo, fascinado pela expansão dos limites do conhecimento humano e interessado por áreas diversas como física, matemática, filosofia e economia.