Por Sergio Morales
Publicado na Ciencia del Sur
Tradução de Julio Batista
A evolução humana é uma área de estudo altamente debatida. Dezenas de livros e centenas de artigos analisaram seus aspectos por pouco mais de um século. A literatura é abundante, diversa e muito complicada. No entanto, recentemente uma nova proposta entrou no debate dentro das chamadas teorias neodarwinistas.
Por meio da análise de uma variável insuspeita, esse novo olhar visa reescrever a ciência da evolução humana. Para antropólogos, biólogos e psicólogos desenvolvendo essa abordagem, a cultura não seria um componente anedótica, mas um componente essencial do processo evolutivo humano. Que evidência sustenta essas afirmações?
Cultura, essa variável oculta
Se revisarmos a literatura clássica sobre evolução humana, descobriremos que a cultura não foi necessariamente um tópico muito discutido. A ênfase que se deu primeiramente ao aspecto ecológico e ao biológico, depois ao aspecto genético e ao neurológico, fez da cultura um conceito bastante ignorado, uma variável oculta.
Em A Origem das Espécies, o naturalista Charles Darwin (1859) usou o termo cultura em sua definição do século XIX para se referir ao cultivo de plantas. O mesmo aconteceu naquela obra destinada ao estudo da evolução humana, A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo (Darwin, 1871a, 1871b). No entanto, isso não significa que a cultura como a conhecemos hoje era irrelevante para o naturalista.
Implicitamente, Darwin considerou muitos aspectos que hoje chamamos de culturais: uso de ferramentas, linguagem articulada, religiosidade, moralidade, percepção estética ou sociabilidade. Para alguns estudiosos, “antes de Darwin, ninguém havia discutido a relação entre fatores culturais e evolução física humana com tal amplitude e com tal convicção” (Montagu, 1962, p. VIII).
Talvez à frente de seu tempo, Darwin (1871a) rotulou o ser humano como um “animal social”. De acordo com o naturalista, embora “instintos sociais” ainda impulsionem o comportamento humano, “suas ações são amplamente determinadas pelos desejos e julgamentos expressos de seus semelhantes e, infelizmente, mais frequentemente por seus próprios desejos fortes e egoístas” (Ibid., p. 86).
Quem foi mais explícito em suas menções à cultura foi um outro naturalista. Para Alfred Russel Wallace, embora o homem tenha origem animal (mamífero), certos traços que podemos chamar de culturais (faculdades matemáticas, musicais, artísticas ou metafísicas) não foram desenvolvidos pela seleção natural. Segundo Wallace (1889), “naquelas faculdades especialmente desenvolvidas do homem civilizado […], o caso é muito diferente” (p. 470).
Em meados do século 20, alguns estudos mencionavam que a cultura poderia contribuir para a explicação da evolução humana. No entanto, apesar do que Darwin e Wallace apontaram, este conceito não foi totalmente compreendido. Para o biólogo Richard Alexander (1979), conceber mudanças e características culturais como independentes da seleção natural “seria paralelo a supor que a obesidade é uma função do apetite” (p. 73).
Dada a polissemia do termo (em 1952, os antropólogos Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn coletaram mais de 160 definições) e os avanços na genética, “[o] que foi quase completamente esquecido é que o principal meio de adaptação do homem ao ambiente físico é a cultura” (Montagu, 1962, p. ix). Naquela época, poucos cientistas estavam interessados neste conceito (Eckhardt, 1979; Dobzhansky e Boesiger, 1983).
Antropologia e o estudo (evolucionário) da cultura
Se falarmos de evolução social, veremos que houve outras contribuições também. Nomes como Herbert Spencer, Lewis Henry Morgan ou Edward Burnett Tylor lançaram as bases do evolucionismo social clássico. Eles foram acompanhados pelas obras de Augustus Pitt Rivers, Henry Proctor, Benjamin Kidd e James Mark Baldwin. Obras cujos títulos tinha referências a “evolução cultural” ou “evolução social” eram comuns na época.
Não estamos enganados se dissermos que a antropologia foi a primeira disciplina a compreender a importância da cultura para a evolução humana. Por meio de extensos estudos etnográficos (trabalho de campo) realizados em várias sociedades ao redor do globo, os primeiros antropólogos reconheceram que se havia algo que permitia aos humanos se adaptarem a múltiplos ambientes, era a cultura.
A pesquisa de Franz Boas, Alfred Radcliffe-Brown, Melville Herskovits, Alfred Kroeber, Leslie White ou Julian Steward teve como objetivo analisar o papel adaptativo da cultura. Para Bronislaw Malinowski (1944), injustamente mais conhecido por sua etnografia na Nova Guiné, a “função” da cultura era satisfazer as necessidades orgânicas do homem para adaptá-lo ao seu ambiente:
“[O] homem tem […] que satisfazer todas as necessidades do seu organismo. Você deve criar arranjos e realizar atividades de alimentação, aquecimento, habitação, roupas ou proteção contra o frio, o vento e o clima. Você tem que se proteger e se organizar para essa proteção contra inimigos e perigos externos, físicos, animais ou humanos. Todos esses problemas primários dos seres humanos são resolvidos para o indivíduo por meio de artefatos, organização em grupos cooperativos e também por meio do desenvolvimento do conhecimento, do senso de valor e da ética”. (pp. 36-37)
Se a gente perceber, a antropologia sempre foi uma ciência evolucionária. No entanto, apreender a complexidade da cultura exigiu um esforço próprio que a antropologia social teve de assumir. Embora ambos os campos da disciplina pareçam diferentes, eles são as duas faces da mesma moeda: um estuda o humano biológico e o outro o humano social, mas ambos estudam o ser humano e sua cultura.
O primeiro a tornar explícito o papel adaptativo da cultura em uma linguagem evolucionária foi o antropólogo Ashley Montagu. Para Montagu (1951), cultura é “a forma particular que caracteriza as atividades sociais aprendidas, compartilhadas e transmitidas de um grupo” (p. 5). Da mesma forma, todas as diferenças de comportamento entre pessoas de diferentes famílias, grupos étnicos ou nações são o resultado de diferenças culturais (Ibid., p. 361).
Em Culture and the evolution of man (1962) e Culture: man’s adaptive dimension (1968), Montagu (junto com Haldane, Caspari e outros) discutiu como a cultura influencia a evolução humana em tópicos como sociabilidade, personalidade, desenvolvimento cognitivo e inteligência. Para Montagu (1962), “até hoje, muito recentemente, o papel desempenhado pelos fatores culturais na evolução física do homem praticamente não recebeu atenção” (p. Vii).
No entanto, as obras de Montagu e outros trouxeram visibilidade a cultura. Para o geneticista Theodosius Dobzhansky (1959), a evolução humana só é inteligível como resultado da interação entre os aspectos biológicos e sociológicos. Neste processo, a cultura é fundamental, pois constitui o “meio mais poderoso de adaptação do homem ao seu meio” (Ibid., p. 354).
O que é a teoria da dupla herança?
Em Culture and the evolutionary process , o antropólogo Robert Boyd e o biólogo Peter Richerson (1985) formularam a primeira teoria sistemática sobre a influência da cultura na evolução humana: a teoria da dupla herança (ou TDH). Para a TDH, a biologia e o comportamento humanos dependem de dois sistemas de herança: genético (herdado de nossos parentes biológicos e comum a todas as espécies) e cultural (herdado de nossos parentes sociais e exclusivo da espécie humana).
Considerando as obras de Darwin, bem como do geneticista Luca Cavalli Sforza e do matemático Marcus Feldman, Boyd e Richerson (1985) formularam uma “teoria darwiniana” sobre a evolução dos organismos culturais. Sua proposta descreve como a cultura atende aos critérios para formar um sistema evolutivo independente graças a mecanismos de variação, transmissão e seleção.
O que é cultura para esta teoria? Para Boyd e Richerson (1985), cultura é “a transmissão de uma geração a outra, por meio do ensino e da imitação, de conhecimentos, valores e outros fatores que influenciam o comportamento” (p. 2). Graças à elaboração de modelos matemáticos sobre a transmissão da cultura entre gerações, foi possível estipular as condições pelas quais a seleção natural favorece as formas atuais de transmissão cultural.
O objetivo da TDH é entender como a transmissão cultural interage com as contingências ambientais e gera a evolução cultural. Nessa teoria, a aprendizagem social – considerada uma forma de plasticidade fenotípica – é fundamental. Segundo Boyd e Richerson (1985), “para compreender a evolução do comportamento humano, devemos compreender como a estrutura de transmissão cultural, característica dos humanos, pode ter evoluído” (p. 12).
Como tal, TDH é uma teoria útil porque vincula ecologia e evolução (ao compreender os efeitos históricos e ecológicos), relaciona o indivíduo à sociedade (por meio das propriedades de transmissão cultural no nível da população) e analisa a função dos símbolos (linguagem, arte, rituais ou religião) na evolução humana. Nenhuma outra teoria conseguiu tal integração.
Evolução cultural cumulativa e coevolução gene-cultura
Em The secret of our success, o antropólogo Joseph Henrich (2016) definiu cultura como aquele “grande corpo de práticas, técnicas, heurísticas, ferramentas, motivações, valores e crenças que adquirimos à medida que crescemos, principalmente aprendendo com outras pessoas” (p. 3). O dito “aprendizado cultural” – presente apenas no ser humano – nos permite adquirir informações de outras pessoas e copiar suas ações para se adaptarem ao meio ambiente.
Para Henrich (2016), “[a] chave para entender como os humanos evoluíram e porquê somos tão diferentes dos outros animais é reconhecer que somos uma espécie cultural” (p. 3). Admitir isso permite a inclusão de outros tópicos de estudo, como normas, rituais, religião, prestígio, sociabilidade, cooperação ou inteligência. Para esta estrutura, a cultura é fundamental.
Conforme as sociedades se desenvolvem, a chamada evolução cultural cumulativa se forma. Cerca de 1 milhão de anos atrás, os humanos antigos começaram a aprender uns com os outros, fazendo com que sua cultura se acumulasse. Ao longo do tempo, diversas práticas culturais foram otimizadas para que as gerações sucessoras aperfeiçoassem os conhecimentos adquiridos. De acordo com Henrich (2016):
“Os novos produtos desta evolução cultural, como o fogo, a culinária, as ferramentas de corte, as roupas, as linguagens gestuais simples, as lanças e os recipientes com água, tornaram-se as fontes das principais pressões seletivas que moldaram geneticamente nossas mentes e corpos. Essa interação entre cultura e genes, ou o que chamarei de coevolução gene-cultura, conduziu nossa espécie por um novo caminho evolutivo não observado em outras partes da natureza, nos tornando muito diferentes de outras espécies – um novo tipo de animal”. (p. 3)
Em meados do século XX, os estudos antropológicos mostraram que as evoluções biológicas e culturais não eram processos mutuamente exclusivos (Montagu, 1962,1968). A TDH adota essa tradição e constrói um “meio-termo” entre biologia e cultura (Vauclair e Fischer, 2013). Assim como os genes se adaptam ao meio ambiente, a cultura também faz isso; essa interação produz a coevolução gene-cultura. A TDH é a única teoria evolucionária que de fato (não apenas no discurso) integra biologia e cultura.
Da seleção natural à seleção cultural
Reconhecer a influência da cultura na evolução humana nos convida a reconsiderar parte da estrutura evolutiva. A modificação mais sagaz é que a seleção natural – o motor darwiniano da origem das espécies – agora desempenharia um papel secundário. Para a TDH, enquanto o sistema de herança biológica segue as leis da seleção natural, o sistema cultural obedece aos preceitos da seleção cultural (SC).
O debate sobre o escopo explicativo da seleção natural não é novo; é tão antigo quanto a própria teoria da evolução. Darwin e Wallace foram os primeiros a debater os “limites” e a “insuficiência” da seleção natural em torno das características centrais da anatomia e psicologia humana (Wallace, 1871). Pode-se dizer que o debate nature-nurture foi uma constante e não algo recente.
Se falamos de evolução, a seleção natural é o seu principal mecanismo. No entanto, a cultura tem se mostrado capaz de modificar as pressões da seleção natural para reinfluenciar a evolução humana, mesmo no nível genético. Para Montagu (1962), “é principalmente por meio de pressões culturais que a natureza primata, no caso do homem, mudou para uma natureza humana” (p. Ix).
Essa reviravolta não deve nos levar a acreditar que a seleção natural não tem mais nenhuma função. Seguindo Montagu (1962), “como um novo rio, seu curso foi simplesmente redirecionado para fluir em canais mais novos e mais profundos” (p. Xii). A seleção natural agora opera em novas áreas de adaptação que constituem o novo meio do ser humano: as várias culturas.
Para Henrich (2016), a seleção natural não desapareceu, mas favoreceu os melhores aprendizes, ou seja, aqueles que melhor copiam, usam e transmitem a cultura. Na verdade, reconhecer que somos uma “espécie cultural” implica que a cultura assume um papel de liderança e constitui o “principal motor da evolução genética humana” (p. 315).
Graças a primazia da cultura, surge a SC. Em que consiste esse mecanismo?
A SC é o resultado de nossa psicologia étnica, que reflete nossa capacidade de identificar grupos, assimilar membros, obedecer a regras e punir infratores (Russel e Muthukrishna, 2018). Como tal, refere-se à seleção ocorrida entre “grupos culturais” que compartilham o mesmo “conjunto de traços culturais” como dialetos, normas, valores, crenças ou comportamentos (Ibid.). Para a TDH, certos traços culturais podem dar a certo grupo uma vantagem seletiva sobre outros grupos que carecem de tais traços.
Talvez para destronar a seleção natural, a SC foi um tópico que sofreu alta resistência. Em 2012, esse conceito levou a um debate acirrado no portal Edge.org, onde vários cientistas acabaram divididos em dois campos rivais: aqueles que criticaram a SC (Steven Pinker, Richard Dawkins, Daniel Dennett, John Tooby, Helena Cronin, etc.) versus que a apoiaram (Boyd, Richerson, Henrich, DS Wilson, Peter Turchin, Harvey Whitehouse, Daniel Everett, etc.).
Apesar das críticas, Richerson e companhia (2016) demonstraram que a SC desempenha um “papel essencial” na cooperação – uma característica central do comportamento humano e que se manifesta em fenômenos como a linguagem ou a religião. Por meio de uma “coevolução gene-cultura culturalmente liderada”, as evidências mostraram-se “mais do que suficientes” para considerar a SC “uma explicação básica para a habilidade altamente incomum de nossa espécie de criar grandes sociedades com ampla cooperação entre não-parentes”. (p. 16).
Na verdade, um dos temas mais discutidos por essa nova perspectiva é a cooperação. Considerando que o altruísmo e a seleção de parentesco são “insuficientes” para explicar a cooperação em sociedades complexas e de pequena escala, a TDH “contrasta fortemente” com a “visão canônica” de Pinker e Dawkins (Henrich, 2016, p. 142) E é que, para entender a cooperação humana, devemos considerar “como nossos instintos sociais são aproveitados, ampliados e recombinados dentro de uma rede entrelaçada de normas sociais culturalmente evolucionadas” (Ibid., P. 143).
Evolução culturalmente dirigida e nicho cultural
Em seu estudo sobre a SC, Richerson e companhia (2016) postularam uma “coevolução gene-cultura conduzida culturalmente”. Uma ideia semelhante é encontrada em outros estudos que postulam uma “assimilação genética culturalmente dirigida” (Dor e Jablonka, 2000). Com efeito, a lógica da evolução cultural é que a cultura dirige a evolução humana (algo impensável para a teoria evolucionária padrão). Essa lógica resgata um conceito central.
A construção de nicho se refere a como os organismos modificam seu ambiente, alterando pressões seletivas e influenciando sua própria evolução. Para Kevin Laland e Michael O’Brien (2011), tal conceito enfatiza mudanças nos ambientes e difere da “visão convencional” por reconhecer que os organismos “codirigem sua própria evolução”. Ao modificar seu processo evolutivo, os organismos construtores de nicho não são mais considerados meros “veículos” para seus genes (como Dawkins costumava dizer).
Essa interação organismo-ambiente permite a “herança ecológica”, um conjunto de características herdadas de organismos criadores de nicho de gerações anteriores que opera como um terceiro sistema de herança. Para Laland e O’Brien (2011), no ser humano a construção de nichos é “a maior fonte de funcionalidade no mundo, bem como o maior impulsionador da dinâmica ecológica e evolutiva” (p. 199). Aqui, a cultura novamente assume importância.
Um nicho cultural – a alteração do ambiente por meio de práticas culturais – estabelece como a cultura modifica a seleção natural por meio de interações causalmente recíprocas entre o ambiente e o indivíduo. Isso nos permite entender a adaptabilidade superior do ser humano a múltiplas geografias. Como tal, “os processos culturais fornecem um motor particularmente poderoso para a construção de nichos humanos” (Ibid., P. 195).
Segundo Pascale Gerbault e companhia (2017), a tolerância à lactose é “um dos exemplos mais claros” da construção de um nicho cultural humano. Para os autores, a variação genética relacionada a essa característica corresponde às origens históricas da domesticação do gado e do comércio de laticínios. Ambas as práticas, transmitidas culturalmente, constituem exemplos de nicho cultural e, de forma mais geral, de como a cultura influencia a evolução genética humana.
Então, é biologia ou cultura?
Nos debates sobre a evolução humana, mais famosos do que as teorias são os determinismos e/ou reducionismos que defendem a todo custo que tudo é genético ou biológico porque – como dizem seus entusiastas que promovem essa ideia, com muita conversa interna – o comportamento humano não pode ser explicado apenas pela cultura. A este respeito, a TDH tem uma posição clara que, se olharmos de perto, não é nova.
Para Dobzhansky e Montagu (1962), as mudanças evolutivas anteriores ao ser humano são “processos familiares de todo o mundo vivo” (p. 149). No entanto, embora que seja indiscutível em tópicos puramente biológicos, esse preceito se torna uma “falácia” se for aplicado na evolução humana para defender um “biologismo rígido” (Ibid.). Como tal, o ser humano é um “produto único da evolução” porque “fugiu da escravidão do físico e do biológico para um ambiente social multiforme” (Ibid.).
De acordo com Henrich (2016), a TDH é “bastante diferente” da teoria evolutiva usual, que postula uma “via causal unilateral” (p. 315). Para essas visões “canônicas” – diz Henrich – cultura e evolução cultural seriam “fenômenos relativamente recentes” que mal “perfuram a superfície do grande núcleo da natureza humana que emergiu por meio de processos evolutivos puramente genéticos” (Ibid.) [Figura 1].
Figura 1. Modelo evolutivo obsoleto.
Para essas abordagens certamente antiquadas, o genético, o biológico e o psicológico são essenciais (e até universais), enquanto o comportamental e o cultural são considerados simples epifenômenos. Porém, se adaptarmos o esquema de Henrich às contribuições da TDH, o resultado seria, mais ou menos, o seguinte [Figura 2]:
Figura 2. Modelo evolutivo atual.
Nesse novo modelo, a genética não produz unilinearmente a biologia e a psicologia, nem produz comportamento e cultura unilinearmente. Para a TDH, genes e cultura coevoluem, gerando biologia, comportamento e psicologia humanas. É um rearranjo sutil de termos em que a biologia (outrora matriz de tudo que é humano) é divorciada da genética e é o resultado de pressões culturais. O que sempre foi uma causa agora é uma consequência. Nas palavras de Henrich (2016):
“Não se trata apenas do fato de que essas abordagens anteriores não levam em consideração algumas influências culturais menores na biologia ou alguns ciclos recentes de retroalimentação que mostram como as práticas culturais, como beber leite de vaca, moldaram mudanças genéticas; essas visões evolucionárias agora obsoletas não conseguem reconhecer que a força central que impulsiona a evolução genética humana por centenas de milhares de anos ou mais tem sido a evolução cultural”. (p. 316)
Para Vauclair e Fischer (2013), os defensores da TDH argumentam que os processos biológicos desempenham um “papel muito menor” na explicação da diversidade humana. Essa mudança ocorre porque várias variáveis culturais modificam os processos de seleção biológica e a probabilidade de que a informação genética seja adaptativa (Ibid.). Em outras palavras, a cultura substitui o gene e assume seu lugar como o principal fator explicativo da evolução humana.
Críticas ao adaptacionismo
Em meados do século XX, os biólogos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin (1979) chamaram de “paradigma panglossiano” essa forma de considerar qualquer característica uma adaptação. Os chamados adaptacionistas citam Darwin para afirmar que questões como a linguagem articulada, a preferência feminina por homens ricos ou mesmo o cunilíngua são adaptações biológicas possibilitadas pela seleção natural.
Considerando a cultura irrelevante, as hipóteses adaptacionistas são o principal alvo de ataque da TDH. A disciplina mais acusada de ser adaptacionista é, sem dúvida, a psicologia evolutiva (PE). Embora as críticas a ela sejam assunto para um outro artigo, é pertinente citar algumas para entender esse problema. Embora a antropologia evolucionária (AE) e a PE tenham um objetivo comum (estudar a evolução humana), sua diferença mais notável reside na sua concepção de cultura:
“A partir da teoria da coevolução gene-cultura – disciplina rival e, ao mesmo tempo, complementar à psicologia evolutiva no estudo do comportamento e da cultura humana – autores como Peter Richerson, Robert Boyd ou Joseph Henrich afirmam que as hipóteses de psicólogos evolucionistas interpretam mal o papel que a cultura desempenha na capacidade adaptativa de nossa espécie”. (Castro e Toro, 2018)
Para a PE, a cultura é o produto da seleção natural; em contraste, para a AE, a cultura é a força primária na evolução humana. No início, Boyd e Richerson (1985) apontaram algumas dificuldades sobre como a cultura foi concebida na teoria da evolução clássica. Oposta à sociobiologia, a TDH defende que “os detalhes da transmissão cultural são essenciais para compreender a evolução do comportamento humano” (p. 14).
Jerome Barkow, Leda Cosmides e John Tooby (1992) — fundadores da PE — argumentaram em The adapted mind que a cultura foi gerada por “mecanismos de processamento de informação localizados nas mentes humanas” (p. 3). Portanto, para compreender a relação entre biologia e cultura, devemos primeiro considerar a “arquitetura de nossa psicologia evolucionada”. Nesse texto, os autores também afirmavam que cultura, mente ou comportamento “são todos fenômenos biológicos” (Ibid., Pp. 20-21).
Em entrevista, Henrich (um dos principais críticos) argumentou que na PE não há consideração para a evolução cultural, nem um esforço para modelar a geração de adaptações culturais, nem uma inclusão de diversas populações humanas (eles fizeram experimentos com estudantes universitários ), nem uma teoria da evolução humana, mas sim uma “teorização de baixo nível” (Wilson e Henrich, 2016).
Henrich (2016) também apontou que Pinker e David Buss (principal representante da PE) consideram a seleção natural como “o único processo capaz de criar adaptações complexas” (p. 113). Pelo menos desde o surgimento da TDH, “a seleção natural perdeu seu status como o único processo capaz de criar adaptações complexas bem ajustadas às circunstâncias locais” (Ibid., P. 114).
Quão verdadeiro é o que foi dito?
Para apoiar seu ponto, Henrich citou dois ensaios. No primeiro (incluído em The adapted mind), Pinker e Bloom (1990) afirmaram que a linguagem humana mostra “sinais de design complexo”, portanto, a “única explicação” para tal complexidade seria a seleção natural (p. 726). No segundo, Buss e companhia (1998) argumentaram que a seleção natural era o “único processo causal conhecido capaz de produzir adaptação” (p. 542).
O adaptacionismo ou a superestimação da seleção natural resulta de uma leitura muito otimista (ou muito ruim) de Darwin. Em The adapted mind, Barkow e outros (1992) argumentaram que Darwin forneceu uma “explicação naturalista” dos organismos, incluindo “as propriedades das mentes dos animais, sem exceção dos humanos ” (p. 8) [grifo meu]. Se continuarmos lendo, encontraremos ainda mais superestimação:
“A teoria da evolução por seleção natural expandiu muito a gama de coisas que poderiam ser explicadas, de modo que não apenas fenômenos físicos como estrelas, cadeias de montanhas, crateras de impacto e leques aluviais pudessem ser causalmente localizados e explicados, mas também coisas como baleias, olhos, folhas, sistema nervoso, expressões emocionais e a capacidades da linguagem”. (Ibid., P. 52)
Para Boyd (2018), os psicólogos evolucionistas presumem que a seleção natural molda a psicologia humana para que os indivíduos se comportem de forma adaptativa; entretanto, “não há razão para que os mecanismos de aprendizagem favoreçam o comportamento adaptativo em nenhum caso particular” (p. 60). Se nos referirmos ao comportamento humano, é necessário rediscutir o escopo explicativo da seleção natural. Se formos à fonte, veremos que nem mesmo Darwin (1871) acreditava que todo comportamento humano pudesse ser explicado por meio da seleção natural:
“Por mais importante que a luta pela existência tenha sido e ainda seja, no entanto, no que diz respeito à parte mais elevada da natureza do homem, existem outras agências mais importantes. Porque as qualidades morais avançam […] muito mais pelos efeitos do hábito, da capacidade de raciocínio, instrução, religião, etc., do que pela seleção natural; embora a esta última agência possam ser atribuídos com segurança os instintos sociais que forneceram a base para o desenvolvimento do senso moral”. (pp. 403-404)
Ao refletir sobre a “parte mais elevada” do homem (suas capacidades mais humanas), Darwin preferiu confiar em evidências antropológicas (ele citou Tylor e John Lubbock). Acreditar que Darwin argumentou que todo comportamento humano poderia ser explicado por meio da seleção natural é um erro, já que ser um adaptacionista implica em distorcer seus argumentos. Por este motivo, a PE tem recebido críticas que a EA nunca recebeu porque, embora partilhem objetivos, elas funcionam de forma diferente. Reconhecendo os limites da seleção natural na evolução humana, a TDH faz uma interpretação mais fiel de Darwin do que a PE.
Somos animais, mas animais culturais
Ultimamente, está na moda alguns opinativos e divulgadores do YouTube afirmarem que os humanos são como outros animais porque realizamos os mesmos comportamentos que outras espécies (Morales, 2019). No entanto, comparar o comportamento humano e outro animal é algo arriscado porque não há relação causal entre os dois: chimpanzés, bonobos ou aves fazendo ‘n’ coisas não explica porquê os humanos fazem ‘n’ coisas.
Embora seja verdade que primatas e humanos compartilham, por exemplo, emoções básicas, também é verdade que compartilhamos formas de aprendizagem social. Da mesma forma, argumentar que compartilhamos quase 99% da informação genética com chimpanzés não explica porquê, com esse 1% restante, os seres humanos produziram civilizações, artes, ciências e tecnologias complexas. Em genética, 1% não é insignificante, muito pelo contrário.
Afirmar que o ser humano é um animal não é totalmente errado, mas é uma afirmação limitada por si só. No entanto, explicar o comportamento humano por meio do comportamento animal é um erro porque implica distorcer a teoria evolucionária e colocar um pézinho no biologismo. Se alguém diz que a biologia é mais importante do que a cultura e a socialização juntas, e acompanha sua argumentação com fotos de chimpanzés ou pavões, esse alguém é biologista.
A explicação evolucionária do comportamento humano não está nos genes, mas em como o ambiente o molda. Mesmo se um comportamento fosse determinado geneticamente, a explicação evolucionária nos convida a descobrir quais “padrões ambientais” favoreciam essa transmissão genética (Creanza, Kolodny e Feldman, 2017, p. 7783). Portanto, acusar um evolucionista de determinismo ambiental é como acusar um cientista de cientificismo: pode parecer que o criticamos, mas no fundo estamos lhe fazendo um favor.
Da mesma forma, a instância explicativa do comportamento (o que os metodologistas chamariam de unidade de análise) não pode ser o próprio indivíduo, mas as contingências ambientais nas quais ele está inserido. Para a TDH, a coisa é clara: o ser humano é um animal, mas um “animal diferente” (Boyd, 2018), uma “espécie cultural” (Henrich, 2016). Nas palavras do antropólogo geneticista Robert B. Eckhardt (1979):
“Do ponto de vista antropológico […] o ser humano é, por definição, um ser aculturado. Os humanos só podem se desenvolver dentro de uma cultura; eles não podem sobreviver sem o sistema de crenças e invenções que só podem ser aprendidas com outros humanos. A dependência de todos os humanos em uma cultura elaborada é uma característica distintiva de nossa espécie e é o conceito unificador da perspectiva antropológica”. (p. 10)
Para Robert Boyd e Joan B. Silk (2009), uma abordagem evolucionária “não implica que o comportamento seja geneticamente determinado ou que o aprendizado e a cultura não sejam importantes” (p. Xxiv). Na realidade, é o oposto: “a aprendizagem e a cultura desempenham papéis cruciais no comportamento humano” (Ibid.). Diferenças cognitivas, linguísticas, educacionais, políticas ou de gênero entre várias populações humanas são o resultado da cultura e não de genes, hormônios ou cérebros.
Rumo a uma teoria do comportamento humano
Graças aos modelos verbais e formais que integram as ciências naturais e sociais, a TDH pode ser consagrado como uma potencial Teoria do Comportamento Humano (Russel e Muthukrishna, 2018). Seus modelos matemáticos densos lhe renderam os elogios de Peter Turchin, fundador da cliodinâmica (análise matemática da história). O livro Mathematical models of social evolution (McElreath e Boyd, 2007) aborda adequadamente a formalização das teorias da evolução cultural.
O escopo da TDH é amplo e os assuntos estudados por ele são muitos; alguns deles são fundamentais para a explicação da evolução humana: cognição (Bender, 2019), desenvolvimento do cérebro (Muthukrishna et al., 2018), religião (Norenzayan et al., 2016) ou linguagem (Sterelny, 2016). Da mesma forma, é uma das teorias evolutivas que melhor explica a evolução das culturas animais (Whiten, 2019).
Nenhuma teoria conseguiu integrar o genético e o cultural com tanto rigor quanto a TDH. Atualmente, a evolução cultural como área científica se libertou da antropologia (também há biólogos e psicólogos) e ganhou maior visibilidade na literatura acadêmica (Mesoudi, 2011; Richerson e Christiansen, 2013; Lewens, 2015; Tomlison, 2018; Van den Bergh, 2018). Da mesma forma, por razões óbvias, a TDH está longe de qualquer construtivismo sociocultural.
Quão importante é a cultura para a evolução humana? De acordo com Henrich (2016), “tentar entender a evolução da anatomia, fisiologia e psicologia humana sem considerar a coevolução gene-cultura seria como estudar a evolução dos peixes sem considerar o fato de que eles vivem e evoluem debaixo d’água” (p. 317). Como vemos, existem evidências que são inevitáveis.
Os termos cultura, sociedade, socialização ou papéis não devem assustar aqueles que afirmam conhecer a teoria da evolução. Os alunos mais jovens devem saber que para explicar o comportamento humano evolutivamente não é necessário falar em seleção natural, predisposição genética, Pleistoceno, testosterona, bonobos ou Pinker. Devem saber que no meio acadêmico existem outras e melhores alternativas.
Em meados do século 20, Dobzhansky (1973) argumentou que “nada na biologia faz sentido, exceto à luz da evolução”. Considerando as descobertas da TDH e parafraseando aquele famoso lema, hoje podemos dizer que nada na biologia humana faz sentido exceto à luz da evolução cultural.
Por vários milhares de anos, os humanos não viveram na natureza hostil, mas em organizações culturais complexas (tribos, clãs, sociedades, cidades, estados ou impérios) que, moldando nossos corpos e mentes, nos afastaram da vida selvagem e nos fizeram quem somos. O que comanda nosso comportamento não é a biologia, mas nossa cultura evolucionada. Isso não é reducionismo, é o século 21.
Referências
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