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Como acabar com a ciência: ABC da ‘ciencidiologia’, de Mario Bunge

Se queremos saber como fazer para promover o desenvolvimento da ciência, não podemos deixar de saber o que pode prejudicar esse desenvolvimento. Em geral, todas as receitas devem conter regras para fazer as coisas da forma correta e evitar cometer os erros mais comuns, ou seja, deve se ter uma lista do que fazer e não fazer. Isso não aconteceu até hoje com a política da ciência: nós propusemos receitas, boas, más e ruins para promover a investigação científica, mas elas ainda não nos disseram o que é suficiente para dificultar ou mesmo impedir o avanço da ciência. Neste apêndice proponho uma para preencher esse vazio ou melhor, colocar a pedra angular da ‘ciencidiologia’, como eu proponho chamar a ciência de matar a ciência (outros, mais eruditos, talvez prefiram epistetanatología Wissenschaftstodeslehre).

Ciência e desenvolvimento

Por Mario Bunge. Editora: Itatiaia/Edusp

Filósofos muitas vezes têm ignorado, e pesquisadores em ciências básicas normalmente esquecem que a ciência não está em um vácuo, mas em um contexto biológico, econômico, político e cultural. Isso é conhecido, em parte, graças ao esforço de historiadores e sociólogos da ciência que tentam encontrar as circunstâncias externas que é o que aqueles (filósofos e pesquisadores) não entendem. No entanto, convém recordar rapidamente algumas características do contexto, porque cada cientista social, com exceção do antropólogo, tende a ver apenas um componente ou aspecto do sistema global que é a sociedade.

Toda sociedade, seja qual for seu nível de desenvolvimento, pode ser considerada como um sistema caracterizável pela pela sua composição, meio e estrutura. Por sua vez, este sistema pode ser analisado em quatro grandes subsistemas: o biológico, econômico, cultural e político. O primeiro abrange todos os membros da sociedade; o segundo, aqueles que produzem e distribuem bens, bem como a prestação de serviços; o terceiro, aqueles que criam ou disseminam bens culturais; e o quarto, a todos os que tomam decisões de alcance social ou se ocupam de que sejam cumpridas. Cada um dos quatro subsistemas condiciona os outros três: os quatro são interdependentes e se, por vezes, um predomina, outros prevalecem.

A investigação científica, mesmo quando realizada por um indivíduo por conta própria, é uma atividade social e, mais precisamente, cultural. Utiliza meios conceituais e materiais elaborados por outros e exerce influência, por minima que seja, sobre a conduta social das pessoas. E, assim como outras atividades sociais, a investigação científica ocorre em condições biológicas, econômicas, políticas e culturais. Por exemplo, um físico teórico, por mais abstrato que seja o problema que ele se ocupa, necessita estar são e ter meios para pensar seu problema; também precisa se comunicar com seus colegas, pessoalmente ou através de publicações; e precisa de liberdade acadêmica para escolher o seu problema e disseminar os resultados do seu trabalho (especialmente se forem contrários a alguma doutrina aceita).

Essas condições, que parecem tão óbvias, não ocorrem em conjunto na maioria das nações. As condições que são dadas frequentemente são condições para impedir a investigação ou pelo menos atrasa-la. Estas condições desfavoráveis ​​ocorrem espontaneamente, raramente são criadas de forma deliberada para impedir o avanço da ciência. É hora de acabar com esse amadorismo: se você realmente quer impedir o progresso científico, deve levar a coisa a sério, isto é, cultivando a ciencidiologia. Para isso, vamos desenvolver receitas biológicas, econômicas, políticas e culturais, a fim de impedir o avanço da ciência, a fim de proceder de forma metódica e, se possível, que isso soa como um paradoxo, cientificamente. As receitas biológicas são as mais eficazes, uma vez que com o cachorro morto se acaba a raiva. Convém assim, começar por elas. Aqui estão:

RB1. Mantenha as pessoas em um estado de subdesenvolvimento biológico. Para isso basta assegurar que as pessoas comuns consumam menos do que 70 gramas de proteína por dia. Um dos efeitos da desnutrição é um desenvolvimento subnormal do córtex cerebral e, assim, um acentuado declínio nas faculdades mentais. Em particular, é alcançada apatia. Em tais condições, é difícil que surja jovens com preocupações científicas, pelo menos entre o povo. Se, por algum descuido, aparecer jovens com essas preocupações entre as classes alta ou média, será preciso:

RB2. Elimine todos os intelectuais rebeldes. Nunca faltará motivos para aplicar essa prescrição, porque os intelectuais tendem a ser individualistas e rebeldes. Mas é preciso exercer isto com moderação, uma vez que todo o estado moderno precisa de intelectuais. Não se trata de acabar com todos, mas apenas com os não-conformistas. Outros, os mansos, devem ser utilizados. Se falharem as receitas anteriores, será preciso recorrer ao remédio heróico:

RB3. Declare uma guerra qualquer com um pretexto qualquer. Esta receita foi testada com grande sucesso e repetidamente por várias potências europeias, que conseguiram lacunas de gerações irreparáveis. (A vantagem científica indiscutível dos EUA é explicada por esta razão: enquanto outras nações enviavam para o exílio ou a morte seus jovens promissores, os norte-americanos acolhiam os exilados e se mantinham fora do conflito). Note-se que a guerra não só mata cientistas e aprendizes: também interrompe investigações que talvez nunca mais serão retomadas.

As receitas biológicas por mais eficazes que sejam, não são infalíveis. A perseguição dos intelectuais pode causar uma rebelião. Por exemplo, a perseguição dos intelectuais pode causar uma rebelião, ou levar o extremo de privar o Estado de funcionários competentes. E uma guerra pode ser ganha ou perdida antes de ser cortada a flor e nata da juventude. Por estas razões, e porque a ciência também depende de fatores extra biológicos, é essencial elaborar receitas para controlá-los. Passemos agora a elas.

A receita econômica mais eficaz é óbvia:

RE1. Mantenha um regime econômico e social que exija que todos se ocupem apenas de sua subsistência. A ciência só pode florescer quando é hora de pensar em problemas que não se relacionam com as necessidades imediatas; por isso que não existe nas regiões ou períodos em que essas necessidades imediatas não forem cumpridas.
No entanto, às vezes acontece, especialmente em sociedades com uma tradição de respeito pelo conhecimento, aparecem pesquisadores científicos. Neste caso, temos de recorrer a:

RE2. Remunere precariamente pesquisadores científicos. A aplicação desta receita irá limitar as filas de pesquisadores à indivíduos independentes financeiramente e alguns poucos infelizes que preferem morrer de fome só para satisfazer a sua curiosidade. O primeiro será visto como extravagante; este último, como parvo: nenhum deles vai ser tomado como um modelo. E eles serão vistos quase sempre como fanáticos e não como profissionais.

Aplicado a fundo e sem vacilações, resta apenas uma única prescrição política:

RP. Restrinja drasticamente as liberdades políticas, começando pela liberdade de investigação, de informação, de crítica e de ensino. Sem liberdade de investigação não há pesquisa original sustentada; no máximo, há investigação de rotina, a aplicação de resultados de pesquisa originais feito em outros lugares ou outras vezes, mas raramente se abre caminhos. Sem liberdade de informação (incluindo a capacidade de estabelecer e manter contatos pessoais com colegas nacionais e estrangeiros) pode-se não ter informações atualizadas, incluindo informações sobre novas abordagens, novos problemas e novos métodos. Sem liberdade de crítica enfraquece-se a inovação, que muitas vezes se opõe ideias ou métodos estabelecidos, e faz florecer o dogmatismo. E sem liberdade de educação, os jovens são impedidos de enfrentar problemas cujo tratamento pode levar a questionar os dogmas estabelecidos.

Mas, posto que mesmo nas sociedades mais fechadas aparecem ocasionalmente cérebros curiosos e imprudentes, a regra de RP será ineficaz, a menos que complementada por regras de política cultural muito específicas. Aqui estão algumas delas:

RC1. Mantenha ou crie uma atmosfera ideológica não cientifica. Fomente a superstição, adote uma ideologia que explica tudo e comemore a adesão fanática a esta ideologia.  Se a religião tradicional já não paralisa o cérebro, lute em nome de uma ideologia intolerante e que propicie as ciências ocultas,  pseudociências e práticas mágicas. Ensine o misterioso e mágico, ao invés da razão e da experiência controlada. Combata a tolerância ao pluralismo e proteja o monolitismo. Enfatize os limites da ciência em oposição ao poder ilimitado de fé cega. Obviamente, isso não é suficiente para proteger o irracionalismo e estagnação, é também necessário combater ativamente os seus opostos. Por esta razão, recomenda-se aplicar ao mesmo tempo:

RC2. Submeta as ideias, todas elas, a um controle rigoroso. A novidade pode explodir de onde menos se espera: em astronomia ou química, biologia ou sociologia e até mesmo filosofia. Para impedir o seu desenvolvimento deve pegá-lo em seus estágios iniciais antes que se espalhe. E para isso, é essencial que uma vigilância rigorosa e constante seja exercida. É aconselhável para este fim um corpo profissional especializado,  o Sistema Nacional de Vigilância Intelectual, como parte do Conselho de Segurança Nacional. O diretor deverá gozar da categoria de ministro e dispor de todos os recursos humanos e financeiros similares que, nas sociedades abertas, têm os diretores de cultura. Mas é um erro, cometido muitas vezes, que a comissão de vigilância intelectual seja encarregada de forças de repressão, policial e à mão armada. Apenas um intelectual é capaz de discernir a novidade intelectual. Portanto, o diretor de vigilância intelectual não deve ser um chefe de polícia ou um coronel, nem mesmo um general, mas um intelectual, se possível prestigioso, embora, naturalmente, manso e inimigo da novidade. Um filósofo ou o cientista pode servir a este cargo, desde que não seja criativo.

Um otimista,  isto é, uma pessoa ingênua e inexperiente, acreditará que a aplicação completa das regras descritas acima irá assegurar que a ciência irá se desenvolver apenas como um servo da técnica. Nada mais errado. O homem, como o rato, é perverso e astuto, e escapará pela menor diferença deixada. Para evitar tais vazamentos é necessário elaborar um regulamento que rege todos os detalhes das atividades permitidas aos cientistas. Vamos passar para a elaboração destes regulamentos.

A primeira regra de qualquer política anti-científica eficaz será o seguinte:

RPC1. Tolere apenas investigação aplicada, jamais básica. A ciência é, por definição, investigação de problemas cognitivos por meios controláveis e com fim de encontrar leis. O resto é ciência aplicada à tecnologia, mas não ciência propriamente dita (ou básica ou pura). Para evitar o desenvolvimento da ciência, basta privar de recursos aqueles que pretendem fazer a pesquisa básica, seja experimental, seja teórica: eles dirão que o que eles querem fazer é “irrelevante” para os interesses nacionais (que são, por exemplo, produção de goma de mascar e prisioneiros políticos). Eles irão dizer o que fazer no lugar disso. Para levar a cabo esta política será necessária para evitar que a direção do ministério de Ciência e Tecnologia seja por pessoas com conhecimentos científicos: confia-se o cargo a um gerente de cargo público, advogado, político ou, no máximo, engenheiro ou médico.

RPC2. Obrigue pesquisadores a converterem-se em gestores. Se um pesquisador é obrigado a preencher um formulário para cada peso (ou real ou bolivar ou quetzal) que recebe em apoio da sua investigação, ele logo deixará de investigar. Forçado a fazer contas complicadas e detalhadas, elaborar propostas e relatórios volumosos, frequentemente não encontrará tempo e nem energia para pensar sobre os problemas científicos. Infelizmente, este método é caro e não consegue evitar o nascimento da ciência só serve para acabar com ela. Por esta razão, apenas países desenvolvidos podem dar-se ao luxo de implementar o RPC2. Outros deverão contentar-se em preencher formulários mas sem receber recursos em troca.

RPC3. Recompense pesquisadores medíocres e castigue os originais. É bom que o público saiba que aqueles que buscam a verdade, ao contrário daqueles que já tem, não devem esperar recompensas externas: os prêmios, cadeiras e outras distinções acadêmicas serão reservados aos incapazes de descobrir ou inventar. O inovador, no entanto, será ignorado ou punido. Se, apesar de todas as precauções tomadas, alguns têm alcançado alguma notoriedade, o RB2 obrigará a comprá-los com cargos burocráticos ou decorativos a partir do qual não poderão fazer qualquer dano.

RPC4. Destine todo orçamento de pesquisa para adquirir edifícios e equipamentos a fim de manter a burocracia obstrutiva, de modo que assim, não estará pagando bons salários para pesquisadores, técnicos de laboratório, bibliotecários e outro pessoal de produção.

RPC5. Monte o uso de laboratórios sem fornecer a infra-estrutura necessária: aparatos mecânicos, vidrarias, eletrônicos etc. Todos os instrumentos devem ser adquiridos no estrangeiro, se possível por catálogo, sem consultar os usuários, para formar um museu de instrumentos de inatividade ou de bens que apodreceram.

Temos seguido tentando justificar os princípios fundamentais da ciencidiologia. Estes princípios são resumidos na regras práticas fáceis de entender: a ciencidiología é uma disciplina de fácil alcance, a tal ponto que muitos governantes têm a praticado sem o saber.

Qual dos princípios da ciencidiologia escolherá o zeloso guardião do subdesenvolvimento? Estima-se que apenas uma combinação de todos eles pode garantir o sucesso, porque, sendo  a sociedade um complexo sistema, uma mudança profunda e permanente não pode ser alcançada em um dos seus subsistemas sem também alterar outros. Mas a combinação deve ser criteriosa: não se aplica os princípios mecanicamente e sim simultaneamente.

Isso não é uma paródia, mas um estudo sério, apesar de preliminar, sobre um problema grave, a saber: o subdesenvolvimento científico.

Propus mostrar que as regras do subdesenvolvimento não são caprichosas: todas elas foram testadas com sucesso por qualquer governo, em algum momento, e vários delas são implementadas por muitos governos hoje. Seria, portanto, absurdo descartá-los como mera diversão de um brincalhão. A coisa não é ridícula, mas trágica.  A ciencidiologia pode simplesmente gravar e codificar as regras que regem a conduta daqueles que impedem o desenvolvimento científico. Tanto é assim que, caso o objetivo seja oposto, ou seja, de incentivar o desenvolvimento científico, basta inverter os princípios da ciencidiologia prosseguidos. Mas cuidado com o Departamento de Vigilância Intelectual, fique sempre alerta!

Mario Bunge, filósofo da ciência.

Amanda Soares de Melo

Amanda Soares de Melo

Estudante de Filosofia da Universidade Federal do ABC no estado de São Paulo, possui graduação em Ciências e Humanidades pela mesma universidade. Interessa-se por filosofia da ciência, nas subáreas: filosofia da biologia e filosofia da matemática. Amante das ciências e das artes.