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Como ler (e compreender) um texto filosófico

O texto a seguir possui caráter meramente introdutório.

Kant, Descartes, Sócrates, Aristóteles, Hume, Voltaire, Maquiável – esses, dentre muitos outros, são autores renomados da filosofia e que todo o estudante da mesma, cedo ou tarde, terá de se deparar com alguma obra. E, tão logo isso aconteça, um problema nos salta aos olhos: como compreender o que esta escrito na referida obra?

Em primeira instância, parece uma questão trivial. Porém, basta olharmos, por exemplo, para um simples fragmento da obra A Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant, para compreendermos a essência do problema:

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição ‘Deus é onipotente’ contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra ‘é’ não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser ‘Deus é’, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito.

O leitor não habituado com a natureza dos textos filosóficos, tendo contato com texto supracitado, perceberá as enormes dificuldades acerca da compreensão do mesmo. Donde, compreender-se-á que a leitura de tais textos – principalmente os mais antigos – requer um conhecimento prévio, requer um método – e portante, não é à toa que as universidades, no currículo do curso de filosofia, costumam inserir logo no seu início uma disciplina chamada Metodologia Filosófica ou Introdução aos Textos Filosóficos, dentre outras nomenclaturas.

Por conseguinte, aquele que se propõe a estudar, analisar, criticar, concordar ou discordar de algum texto, antes de mais nada, deve estar disposto à compreender este mesmo- , para tal se faz necessário entender o pretexto, i. é, a motivação do escritor que levou-o a escrever determinada coisa. E para isso, se faz necessário compreender o contexto, i. é, a localização sócio-histórico-politico-cultural do autor. Para compreender Aristóteles, se faz necessário saber como a sociedade grega estava organizada na época, que ele não era um ateniense, dentre outros fatores que o influenciaram nas suas ideias. Com isso, entender-se-á que o motivo que levou Aristóteles, em sua Ética à Nicômaco, a defender a escravidão, não foi o mesmo motivo que levou o empirista britânico John Locke à fazê-lo, assim como esclarecer-se-á a diferença de argumentação entre ambos, para sustentar o que é, aparentemente, a mesma afirmação. No entanto, mais importante do que compreender o que ambos, Locke e Aristóteles, sustentam, é não julga-los pelos atuais valores sociais que condicionam a nossa visão de mundo – nosso contexto, completamente distinto dos supracitados, encerra um círculo hermenêutico que não se pode ignorar, e olhar para estes ou para qualquer outro pensador com um olhar pejorativo seria uma atitude cega e impensada.


Compreendendo o contexto e posteriormente o pretexto (nesse ponto, surge a importância de ler um resumo biográfico dos autores), entender o texto propriamente torna-se uma tarefa bem menos árdua – ou seja, para compreender o trecho citado no inicio deste artigo, se faz necessário saber que Immanuel Kant viveu entre os séculos XVIII e XIX na cidade de Königsberg (antiga Prússia); que foi altamente inspirado pelo filósofo empirista David Hume; que o trecho pertence à uma obra sobre Epistemologia, na qual Kant tenta responder à pergunta das condições de possibilidade do conhecimento e que na seção aonde encontra-se o texto em questão, Kant dedica-se à refutar a ideia de uma prova ontológica da existência de Deus concebida por pensadores como Descartes e Santo Anselmo.

Portanto, estudar filosofia necessariamente pressupõe conhecer história – pelo menos no que tange ao(s) autor(es) abordado(s). Para tal, em outro momento, será dedicada uma abordagem aos grandes contextos pela qual a filosofia passou – desde os tempos pré-socráticos, até a era contemporânea.


Em relação à leitura do texto filosófico propriamente dita, seguiremos uma obra intitulada Metodologia Filosófica, escrita por Dominique Folscheid e Jean-Jacques Wunenburger. Sintetizando, a obra sugere uma decomposição do texto, procurando definir os seguintes itens:

  • Tema: i. é, sobre o que o autor esta falando no texto, do início ao fim;
  • Tese: a afirmação central do autor, ou seja, qual seu posicionamento a respeito do tema;
  • Problema: o conjunto do tema, da tese e da movimentação argumentativa do autor, suscita uma série de problemas que o autor tentará responder – o foco aqui é detectar qual(is) são este(s) problema(s);
  • Movimentação argumentativa: é o conjunto ordenado de argumentos da qual o autor se utiliza para sustentar sua tese. É uma movimentação essencialmente lógica, i. é, apresenta uma série de premissas, da qual se infere uma ou mais conclusões, e usando dessas conclusões como novas premissas, infere-se em outra conclusão, até atingir sua tese (importante ressaltar que cada autor tem sua forma de elaborar um determinado texto: alguns preferem anunciar sua tese logo no início e em seguida, apresentar seus argumentos; outros, em contrapartida, preferem deixar para apresentar sua tese central no fim do texto, assim como existem outros que apresentam sua tese no meio do texto);
  • Conceitos-chave: neste ponto, apresenta-se a importância de se ter um dicionário filosófico em mãos – pois existem certas palavras-chave na qual cada autor atribuí seu significado específico, mas nem sempre ele faz questão de explicar esse significado. Por conseguinte, anotar os termos centrais do texto para posterior consulta a um dicionário, é de vital importância para a compreensão do mesmo: por vezes, pensamos que um texto critica X e discordamos dele por tal, enquanto na verdade ele crítica Y, posto que ele pode ter usado um termo que é normalmente associado à uma tal ideia para referir-se à uma outra ideia diferente da primeira.

A forma mais didática de se realizar este exercício é executá-lo na ordem contrária na qual os itens foram apresentados: primeiro, deve se anotar os conceitos-chave do texto; segundo, determinar quais são os argumentos do texto e em qual ordem aparece, tomando o cuidado para não confundir um argumento qualquer com a tese do autor; terceiro, analisa-se os argumentos para suscitar os problemas os quais o autor tenta responder; por último, levantando as respostas sugeridas pelo autor a esses problemas, procura-se estabelecer qual a sua afirmação central, i. é, afirmação na qual gira em sua volta todos os argumentos do autor – sua tese. Partindo desta, determina-se qual o tema do texto.

Utilizando-se desta metologia, vamos analisar o trecho da obra de Kant citada no início do texto:

  • Sua tese é apresentada logo na primeira linha do texto:

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa.

O que esta em negrito é sua afirmação, sendo que a expressão em destaque – predicado real – é considerada um conceito-chave de vital importância. A seguir, na parte sublinhada, Kant fornece uma lacônica e contundente explicação desse conceito, que será explicada posteriormente no próprio texto. Deste ponto, já é possível determinar o tema central do texto (ainda que este ficará mais clara nos argumentos posteriores): “O significado do juízo de existência, do ‘ser’, do ‘algo existe’ – assim como já é possível imaginar a problemática que o texto tenta responder: Qual o significado do verbo ‘ser? ou Existe um significado particular para o verbo ‘ser’?

  • Continuando na mesma sentença, encontramos seus dois argumentos principais, que não deixam de ser uma parte crucial de sua tese:

É apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo.

Cada um dos argumentos foi destacada de uma forma – o primeiro em sublinhado, o segundo em negrito, e então se percebe que Kant esta oferecendo uma resposta à questão Qual o significado do verbo ‘ser’? – e temos ai o problema central do texto.

  • Posteriormente, Kant apela para o seguinte exemplo:

A proposição ‘Deus é onipotente’ contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra ‘é’ não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito.

Este trecho serve de sustentação para o segundo argumento (ser enquanto cópula de um juízo). Aqui, ele explicita a função semântica do verbo ser na frase ‘Deus é onipotente’ que aparece conjugado na 3ª pessoa do singular (é): este executa a mera função de conectar o sujeito Deus com o predicado onipotente; ao passo que onipotente é considerado um predicado real, ou seja, ele é acrescentado ao conceito Deus, e acaba por expandir seu significado. Aqui, Kant quer demonstrar que o verbo ser não possui a mesma função do adjetivo onipotente, i. é, o ser não expande o conceito de Deus e, portanto, não é um predicado real (tese).

  • E para sustentar seu primeiro argumento – o ‘ser’ sendo usado para evidenciar a posição do sujeito ou de suas determinações -, Kant diz:

Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser ‘Deus é’, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito.

Neste trecho, Kant se dirige diretamente para os juízos de existência, por exemplo: “Deus existe”; “Deus é”, ou podemos alterar o exemplo para facilitar o entendimento: “O livro é azul, pequeno e existe.” Neste último exemplo, a frase atribuí dois predicados reais ao sujeito livro: azul e pequeno. O adjetivo existe (“é”) não pode ser considerado um predicado real (tese), pois este – em contrapartida aos conceitos azul pequeno – não aumenta meu conceito de livro, mas sim, coloca o sujeito em questão (juntamente com todos os seus predicados reais) em evidência, relacionando esse sujeito com o objeto empírico que corresponde meu conceito de livro (claro, no texto, o exemplo utilizado é Deus e não livro).


Deste ponto, o trecho que era inicialmente de difícil compreensão torna-se legível até para os mais leigos no assunto, e a filosofia deve ser assim: clara, sucinta e metódica. Claro, Kant escrevia de tal maneira devido ao contexto sócio-histórico-político-cultural em que vivera, por isso seus textos – assim como o de muitos outros – tende a ser de dificílima compreensão. Contudo, com o método adequado, não existe texto impossível de ser compreendido (com exceção daqueles que escrevem na pura intenção de confundir os leitores – mas estes nem deveriam se encaixar na concepção de filosofia).

Referência

  • FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques; Metodologia Filosófica, Martins Fontes, São Paulo, 2002.
Lennon da Silva Rocha

Lennon da Silva Rocha

Estudante filosofia na PUC-RS. Sustenta que aulas de lógica deveriam ser lecionadas desde o Ensino Fundamental, pois já esta cansado de ter escutar as mais básicas falácias nos debates do cotidiano.