Por Javier Yanes
Publicado na OpenMind
Primeiro foi a raiva, o patógeno que chamou a atenção de Louis Pasteur no microscópio e o levou a presumir a existência de agentes infecciosos menores que as bactérias. Mais recentemente, teve o Ebola, o vírus de Marburg, o vírus Hendra, o vírus Nipah, o vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), o vírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) e, é claro, o coronavírus SARS-CoV-2 da COVID-19. Todos esses vírus têm algo em comum: eles supostamente surgiram em morcegos e acabaram chegando a humanos. Quase 11.000 tipos de vírus já são conhecidos em morcegos e quase 3.800 deles são coronavírus. Mas eles são apenas vítimas de uma má publicidade ou esses animais realmente têm algo especial que os torna incubadores de vírus? E se sim, como eles sobrevivem?
Os morcegos são animais de notável sucesso evolutivo, como mostrado pelo fato de formarem a segunda ordem mais abundante de mamíferos, depois dos roedores; com mais de 1.400 espécies, um em cada cinco mamíferos conhecidos é um morcego. E todos eles compartilham uma peculiaridade óbvia: eles voam. Essa habilidade permitiu que eles se espalhassem por todos os continentes, exceto a Antártica. Mas apesar do fato de que o “viva rápido, morra jovem” também é uma lei da natureza, uma vez que animais com um metabolismo mais acelerado tendem a acumular danos oxidativos que reduzem sua longevidade, os morcegos são de alguma forma capazes de manter sob controle moléculas reativas, como os radicais livres; enquanto um rato pode ter um período de vida de dois anos, algumas espécies de morcegos vivem mais de 30 anos.
Nessas peculiaridades podem estar algumas das chaves que explicam a incrível capacidade dos morcegos de coexistir com uma enorme diversidade de vírus sem sucumbir no processo, uma relação com seus patógenos que eles mantiveram ao longo de milhões de anos de evolução. Os cientistas sugerem que o metabolismo rápido dos morcegos os mantém em um estado febril que vem junto com uma resposta imunológica benéfica, mais ativa do que o normal.
Uma superimunidade inata
Parte dessa hiperatividade imunológica foi demonstrada pela descoberta em morcegos da presença permanente de interferon-alfa, um dos antivirais encontrados em todos os animais. Curiosamente, embora os morcegos possuam apenas três tipos de interferon-alfa, um quarto do que os humanos possuem, eles fazem um uso mais intensivo deles; embora produzamos apenas interferon-alfa no caso de uma infecção, os morcegos têm esses antivirais constantemente ativados, o que pode estar relacionado à “capacidade dos morcegos de coexistir com vírus na ausência de doença”, escreveram os autores do estudo.
Para Benjamin Neuman, um especialista em vírus emergentes na Texas A&M University, essa superimunidade inata dos morcegos poderia explicar em grande parte não apenas como esses animais toleram infecções virais, mas também porque seus vírus são mais prejudiciais a outras espécies. “O SARS-CoV-2 não é um vírus tão inerentemente perigoso – é perigoso em humanos porque é bem adaptado para os morcegos ou para outros animais com um sistema de interferon muito forte”, explica ele ao OpenMind. De acordo com Neuman, o equilíbrio favorecido pela seleção natural entre o vírus e seu hospedeiro não desliga completamente a resposta imunológica do hospedeiro, mas a mantém em um nível baixo, o suficiente para que o vírus persista. “O perigo do SARS-CoV-2 surge porque o vírus carrega uma aparelhagem genética que é suficiente para ser capaz de acalmar, mas não parar completamente o sistema supercarregado de interferon de um morcego – quando o vírus está em uma pessoa, essa aparelhagem sobrecarrega totalmente nosso sistema de interferon, e assim podemos ficar doentes com o vírus. (…) É como enviar um boxeador peso-pesado intermediário para uma luta contra peso-moscas. O resultado é o que você esperaria”.
Uma característica crucial desse equilíbrio entre os morcegos e seus vírus é que esses animais são capazes de manter essa hiperimunidade sem se prejudicar; em muitos outros animais, a reação inflamatória causada por essa resposta inata permanente seria prejudicial. Um estudo recente analisou detalhadamente os genomas de seis espécies de morcegos, descobrindo que, além de apresentar uma grande quantidade de certos genes antivirais, faltam outros genes que promovem a inflamação.
“Acredito que seja uma adaptação ao voo”, diz a codiretora do estudo Emma Teeling, especialista em evolução molecular e genética de morcegos da Colégio Universitário de Dublin, ao OpenMind. “Dadas as altas necessidades metabólicas do voo e os altos níveis de radicais livres prejudiciais que ocorrem como resultado, os morcegos tiveram que desenvolver um sistema imunológico exclusivo para amenizar rapidamente a inflamação constante que experimentavam devido ao dano celular induzido”. Assim, continua Teeling, essa estratégia inteligente também tem utilidade na resposta contra patógenos, o que explica essa tolerância e longevidade.
Vírus perigosos em outras espécies
No entanto, alguns pesquisadores discordam da ideia de que os morcegos abrigam um número maior de vírus com potencial zoonótico do que outras espécies. Na Universidade de Glasgow, os especialistas em ecologia viral Nardus Mollentze e Daniel Streicker estudaram a presença de vírus infecciosos para humanos em diferentes animais, concluindo que não existem “reservatórios especiais”; vírus perigosos para nós são uniformemente distribuídos entre diferentes espécies, sejam morcegos, roedores ou pássaros. “A variação na frequência das zoonoses entre as ordens de animais pode ser explicada sem depender de relações ecológicas ou imunológicas especiais entre hospedeiros e vírus”, concluem eles em seu estudo.
“O trabalho recente sobre a imunidade de morcegos é fascinante”, disse Streicker ao OpenMind. No entanto, ele esclarece que a extensão dessas respostas que estão disseminadas entre os morcegos e quais são seus efeitos sobre os vírus não foram demonstradas. “Atualmente, não há evidências de que quaisquer características exclusivas dos morcegos tenham levado eles a hospedarem mais vírus por espécie ou a vírus de morcegos terem maior probabilidade de infectar humanos”, acrescenta Mollentze. “Resta saber se as formas supostamente únicas em que os morcegos lidam com a infecção alteraram seu viroma de outras formas importantes”.
Ambos os cientistas admitem que, às vezes, o mesmo vírus é mais perigoso para humanos do que para morcegos, mas ressaltam que falta demonstrar se esse patógeno se originou nesses animais e em que medida essa diferente virulência seria moldada por sua origem. Na verdade, acrescenta Streicker, os morcegos não são invulneráveis a todas as infecções virais, nem são os únicos hospedeiros saudáveis de vírus potencialmente fatais para os humanos; existem outros vírus perigosos para nós que mal prejudicam seus respectivos reservatórios, como o vírus do Nilo Ocidental, a encefalite equina oriental, o hantavírus ou o vírus de Lassa. “A maioria dos animais na natureza são infectados simultaneamente com vários vírus, a maioria dos quais causa doença clínica”, conclui Streicker. “Não se sabe se a proporção destas doenças é menor em morcegos em comparação com outros grupos de animais”.
Apesar dessas incógnitas, o trabalho de Mollentze e Streicker não apenas chama a atenção para a necessidade de monitorar outros animais que são reservatórios, mas também deve servir para combater o estigma que foi colocado sobre os morcegos como sendo inimigos públicos. Quanto a saber se os vírus que atingem os humanos são casos raros de uma “tempestade perfeita” ou ocorrem com mais frequência do que suspeitávamos, embora geralmente sem consequências, parece não haver unanimidade entre os pesquisadores. Mas se há um culpado em tais eventos, somos nós por invadirmos seus habitats. Como diz a especialista em doenças infecciosas emergentes Linfa Wang, da Universidade Nacional de Cingapura, “os morcegos têm muitas características biológicas únicas, como longa vida útil e menor taxa de câncer; temos muito que aprender com eles”.