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Desmistificando o Autismo

Desmistificando o autismo

Por Leonardo Reina Rodrigues Siega*

O autismo é algo que todas as pessoas conhecem, ou pensam conhecer. Todo mundo já deve ter ouvido falar nas crianças autistas, e apenas nas crianças, como se fosse algum tipo de síndrome de Peter Pan e os adultos autistas não existissem. Infelizmente, os autistas ainda têm uma imagem errada perante a sociedade: a de que são crianças malcriadas e/ou com deficiência intelectual, uma imagem que um dia foi compartilhada com as crianças surdas que antigamente eram erroneamente diagnosticadas. A palavra-chave em ambos os casos é comunicação.

Antes de tudo, é importante ampliar o conceito que o leitor tem do autismo: não se trata de uma única condição, mas de um espectro, e as pessoas podem nascer em qualquer ponto desse espectro. Antigamente havia no DSM-IV (do inglês para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) várias classificações diferentes para o que hoje, no DSM-5, é chamado apenas de Transtorno do Espectro Autista (TEA), com variação no grau de 1 (mais “brando”) a 5 (mais “grave”).

O autismo não é definido por apenas uma “grande” característica, mas sim por várias “menores”, sendo as três principais: prejuízos na interação social, prejuízos na comunicação e interesses restritos e repetitivos. Basicamente os autistas precisam ser ensinados (ou ensinar a si mesmos através de observação e raciocínio) como se comportar e como lidar com as pessoas, como se fosse uma matéria de escola. Além disso, mesmo os de grau igual geralmente apresentam um conjunto diferente de características, dizer que “todo autista é único” não é apenas uma forma de expressão.

É um fato, porém, que o DSM-IV ainda é útil para explicar um pouco do autismo para as pessoas leigas no assunto. Segundo esse manual há o autismo clássico, também conhecido como de baixo funcionamento (LFA em inglês), que é o mais conhecido. Depois existe o autismo de alto funcionamento (HFA em inglês), em que o indivíduo não aparenta atrasos na cognição, e dentro dessa classificação há a Síndrome de Asperger, que possui traços bem característicos. Fora esses, há também o TID-SOE (Transtorno Invasivo do Desenvolvimento – Sem Outra Especificação), que é diferente dos outros tipos e não se encaixa dentro de outras condições fora do espectro autista, sendo frequentemente chamado de autismo atípico.

Para simplificar e entender melhor tanto o alto e o baixo funcionamento quanto os graus de autismo, é possível associá-los a “níveis de dependência”. Quanto mais dependente a pessoa, maior o grau e menor o funcionamento, e vice-versa: quanto mais independente a pessoa, menor o grau e maior o funcionamento. Não são termos criados para definir quem é “melhor” ou “pior”, apenas servem para diferenciar o tipo de apoio que cada indivíduo precisa.

Não entrei em detalhes sobre os tipos porque o objetivo do texto é mostrar como os autistas são diversos mesmo entre si, e como algumas crenças em relação ao transtorno são erradas ou pelos menos deixam espaço para dúvida. Por exemplo, a estimativa de autistas no mundo tem aumentado muito nas últimas décadas, mas isso não quer dizer que mais crianças estão nascendo com o transtorno, apenas significa que o diagnóstico está mais acessível graças ao avanço da ciência, melhor preparo dos profissionais e maior conscientização da população em geral.

Em meados de 1970, acreditava-se que a proporção era de 5 casos para cada 10.000 crianças nascidas. Hoje, se estima que a prevalência seja de 1 autista para cada 68 crianças nos Estados Unidos. As estatísticas mostram que o TEA é mais comum em meninos do que em meninas, com uma taxa de 4,5 para 1, mas sabe-se que as meninas tendem a exibir características diferentes e ser melhores em disfarçá-las, o que dificulta o diagnóstico e afeta as estatísticas. Atualmente também é conhecido o fato de que os autistas são possivelmente mais numerosos do que essas estatísticas mostram, pois muitas pessoas são diagnosticadas erroneamente ou passam suas vidas inteiras sem saber que são autistas, o que acontece frequentemente com as de alto funcionamento.

Além disso tudo, mesmo a aparente deficiência intelectual dos autistas não-verbais está sendo posta em dúvida graças a pessoas como Ido Kedar e Carly Fleischman, ambos não-verbais que se comunicam não através da fala, mas pela escrita. Eles e outros mostram para o mundo que são pessoas conscientes de sua própria existência, apenas não conseguem falar por questões neurológicas.

Por fim, repare que foi evitado o termo “pessoa com TEA”, pois isso passa a impressão de que é possível separar o “autismo” da “pessoa”, e também porque “autista” é o termo mais usado e aceito pela própria comunidade autista. Repare também que em nenhum momento foi usada a palavra “vítima”, os autistas não se consideram assim e nem você deveria. O Transtorno do Espectro Autista não é doença, é uma condição neurológica pervasiva, ou seja, se faz presente em todos os aspectos e todos os momentos da vida dessas pessoas, independentemente de onde elas se encontram no espectro. São seres humanos que lutam por compreensão e aceitação em um mundo de maioria neurotípica (neurologicamente típica).

Referências:

  • American Psychiatric Association. (1994). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (4ª Ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association.
  • American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª Ed.). Porto Alegre: Artmed.
  • Attwood, T. (2006). The Complete Guide to Asperger’s Syndrome (1ª Ed.). London: Athaneum Press, Gateshead, Tyne and Wear.
  • Center for Disease Control and Prevention. (n.d.). Autism Spectrum Disorder (ASD) Data & Statistics. Retrieved July 18, 2017, from https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html
  • Christensen, D. L., Baio, J., & Braun, K. V. N. (2016). Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years. Retrieved July 18, 2017, from https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/65/ss/ss6503a1.htm
  • Kandel, E. R. (2014). Princípios de Neurociência (5ª Ed.). Porto Alegre: Artmed.

 

*Este texto foi produzido por Leonardo R. R. Siega, graduando em Biomedicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como proposta de trabalho da disciplina Introdução à Psicologia para Biomedicina. Simulando o processo editorial de publicações científicas (double-blind peer review), após a produção do texto original, dois outros alunos revisaram anonimamente o manuscrito do colega e deram sugestões para o aperfeiçoamento do mesmo. Assim, Leonardo produziu e aprimorou o texto acima, o qual revisei e selecionei para ser publicado aqui, no Universo Racionalista.
Destaco e agradeço a importante iniciativa do Universo Racionalista neste projeto. Ao incentivar a divulgação científica produzida por alunos de graduação, ele não apenas amplia o acesso ao conhecimento gerado na academia, como também ajuda a expandir as perspectivas destes profissionais em formação.
João Centurion Cabral

João Centurion Cabral

Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC). Além de ser pesquisador/doutorando em tempo integral e divulgador de ciência nas (poucas) horas vagas, sou um curioso nato buscando entender a natureza do comportamento humano.