Por Brendan Borrell
Publicado na Science
A lista com possíveis tratamentos para o novo coronavírus inclui um candidato improvável: a famotidina, o composto ativo do Pepcid, um medicamento de venda livre para azia. Em 7 de abril, os primeiros pacientes com COVID-19 da Northwell Health em Nova York começaram a receber famotidina por via intravenosa, nove vezes a dose para azia. Ao contrário de outros medicamentos que o sistema de 23 hospitais está testando, incluindo o sarilumabe da Regeneron e o remdesivir da Gilead Science, Northwell manteve o estudo da famotidina em sigilo para garantir um estoque para pesquisas antes de outros hospitais ou até o governo federal começar a comprá-lo. “Se conversássemos sobre isso com as pessoas erradas ou muito cedo, o suprimento da droga desapareceria”, diz Kevin Tracey, ex-neurocirurgião encarregado da pesquisa do sistema hospitalar.
Até sábado, 187 pacientes com COVID-19 em estágio crítico, incluindo muitos em ventiladores, foram incluídos no estudo, que visa um total de 1.174 pessoas. Relatórios da China e resultados de modelagem molecular sugerem que o medicamento, que parece se ligar a uma enzima chave no coronavírus 2 da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), pode fazer a diferença. Porém, a promoção em torno da hidroxicloroquina e da cloroquina – os medicamentos antimaláricos não comprovados divulgados pelo presidente Donald Trump e por alguns médicos e cientistas – fez Tracey evitar qualquer entusiasmo prematuro. Ele está de boca fechada com as perspectivas da famotidina, pelo menos até que os resultados intermediários dos primeiros 391 pacientes cheguem. “Se funcionar, saberemos em algumas semanas”, diz ele.
Um médico especialista em doenças infecciosas chamado Michael Callahan foi o primeiro a chamar a atenção para a droga nos Estados Unidos. Callahan, que trabalha no Massachusetts General Hospital em Boston e tem extensas conexões no mundo da biodefesa, passou algum tempo em zonas quentes de doenças em todo o mundo, incluindo o surto de 2003 de outra doença por coronavírus, a SARS, em Hong Kong. Em meados de janeiro, ele estava em Nanjing, China, trabalhando em um projeto de gripe aviária. Quando a epidemia da COVID-19 começou a explodir em Wuhan, ele seguiu com seus colegas chineses para a cidade cada vez mais desesperada.
O vírus estava matando um em cada cinco pacientes com mais de 80 anos de idade. Pacientes de todas as idades com hipertensão e doença pulmonar obstrutiva crônica estavam se saindo mal. Callahan e seus colegas chineses ficaram curiosos sobre o motivo de muitos dos sobreviventes serem pobres. “Por que esses camponeses idosos não estão morrendo?”, ele pergunta.
Ao revisar os 6.212 registros de pacientes com COVID-19, os médicos notaram que muitos sobreviventes estavam sofrendo de azia crônica e utilizando famotidina em vez de omeprazol, o mais caro (Prilosec), o medicamento preferido nos Estados Unidos e presente entre os chineses mais ricos. Os pacientes com COVID-19 hospitalizados com famotidina pareciam estar morrendo a uma taxa de cerca de 14% em comparação com 27% para aqueles que não utilizavam o medicamento, embora a análise fosse grosseira e o resultado não fosse estatisticamente significativo.
Porém, isso foi suficiente para Callahan prosseguir com a questão em casa. Depois de voltar de Wuhan, ele informou Robert Kadlec, secretário-assistente de Preparação e Resposta do Setor de Saúde e Serviços Humanos, depois consultou Robert Malone, diretor médico da Alchem Laboratories, uma organização manufatureira contratada na Flórida. Malone faz parte de um projeto chamado DOMANE, que utiliza simulações computacionais, inteligência artificial e outros métodos para identificar rapidamente medicamentos aprovados pela Food and Drug Administration dos EUA e outros compostos seguros que podem ser reaproveitados contra ameaças como novos vírus.
Malone estava de olho em uma enzima viral chamada protease semelhante à papaína, que ajuda o patógeno a se replicar. Para ver se a famotidina se liga à proteína, ele normalmente precisaria da estrutura 3D da enzima, mas isso não estaria disponível por meses. Assim, Malone recrutou o químico computacional Joshua Pottel, presidente da Molecular Forecaster, com sede em Montreal, para prever a partir de duas estruturas cristalinas da protease do coronavírus SARS de 2003, combinadas com a sequência de RNA do novo coronavírus.
Dificilmente seria algo como plug-and-play (ligar e usar, em tradução literal). Entre outras coisas, eles compararam as sequências genéticas das antigas e novas proteases para descartar diferenças cruciais na estrutura. Pottel, então, testou como 2.600 compostos diferentes interagem com a nova protease. A modelagem produziu várias dezenas de acertos promissores que os químicos farmacêuticos e outros especialistas reduziram para três. Famotidina era uma delas. (No entanto, o composto não apareceu em telas in vitro de bibliotecas de medicamentos existentes para atividade antiviral.)
Com os dados tentadores da China e a modelagem apontando para a famotidina, um medicamento geralmente seguro e de baixo custo, Callahan contatou Tracey sobre a realização de um estudo randomizado, duplo-cego. Os pacientes com COVID-19 com função renal diminuída seriam excluídos porque altas doses de famotidina poderiam causar problemas cardíacos neles.
Depois de obter a aprovação da Food and Drug Administration, Northwell utilizou seus próprios fundos para iniciar a pesquisa. Apenas a metade da famotidina necessária em frascos estéreis levou semanas, porque a versão injetável não é amplamente utilizada. Em 14 de abril, a Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico Avançado dos EUA (BARDA), que opera sob Kadlec, concedeu à Alchem um contrato de US$ 20,7 milhões para o experimento, valor que cobriu a maior parte dos custos da Northwell.
O protocolo do projeto de estudo tinha como objetivo apenas avaliar a eficácia da famotidina, mas o medicamento antimalárico “revolucionário” de Trump estava rapidamente se tornando o padrão de atendimento para pacientes com COVID-19. Isso significava que os pesquisadores só poderiam recrutar sujeitos suficientes para um estudo que testasse uma combinação de famotidina e hidroxicloroquina. Esses pacientes seriam comparados com um grupo exclusivo de hidroxicloroquina e um grupo de controle composto por centenas de pacientes tratados no início do surto. “Isso é uma boa ciência? Não”, diz Tracey. “É o mundo real”.
Evidências anedóticas encorajaram os pesquisadores da Northwell. Depois de falar com Tracey, David Tuveson, diretor do Centro de Câncer do Laboratório Cold Spring Harbor, recomendou a famotidina a sua irmã de 44 anos, engenheira dos hospitais de Nova York. Ela havia testado positivo para COVID-19 e desenvolveu febre. Seus lábios ficaram azul-escuros devido à hipóxia. Ela tomou sua primeira megadose de famotidina oral em 28 de março. Na manhã seguinte, sua febre baixou e sua saturação de oxigênio voltou ao normal. Cinco colegas de trabalho doentes, incluindo três com COVID-19, também mostraram melhorias dramáticas ao tomar versões sem receita da droga, de acordo com uma planilha de relatos de casos que Tuveson compartilhou com a Science. Muitos pacientes com COVID-19 se recuperam com medicamentos simples para aliviar os sintomas, mas Tuveson credita o medicamento para azia. “Eu diria que foi um efeito da penicilina”, diz ele.
Depois que uma sequência de e-mails sobre a experiência de Tuveson se espalhou amplamente entre os médicos, Timothy Wang, chefe de gastroenterologia do Columbia University Medical Center, viu mais sugestões da promessa da famotidina em sua própria revisão retrospectiva de registros de 1.620 pacientes hospitalizados com COVID-19. Na semana passada, ele compartilhou os resultados com Tracey e Callahan e os adicionou como coautores em um artigo agora em análise no Annals of Internal Medicine. Todos os três pesquisadores enfatizam, no entanto, que o teste real está sendo realizado agora. “Ainda não sabemos se funcionará ou não”, diz Tracey.
Callahan se mantém ocupado desde seu retorno da China. Kadlec o colocou em missões de evacuação médica de americanos em dois navios de cruzeiro fortemente infectados. Agora, voltando às rondas de pacientes em Boston, ele diz que a famotidina conduz a importância da diplomacia científica diante de uma doença infecciosa que não conhece fronteiras. Quando se trata da experiência com a COVID-19, ele diz: “Nenhuma quantidade de pessoas inteligentes nos Institutos Nacionais de Saúde, Harvard ou Stanford pode superar os médicos de Wuhan”.