Por Kentaro Mori
Publicado no Ceticismo Aberto
No livro “The Gold of the Gods” (1973), Erich von Däniken anuncia logo no início:
“Para mim, essa é a mais incrível e fantástica história do século. Poderia facilmente ter vindo diretamente dos campos da Ficção Científica se eu não tivesse visto e fotografado a verdade pessoalmente. O que eu vi não foi produto de sonhos ou imaginação, era real e tangível. Um sistema gigantesco de túneis, com milhares de quilômetros de comprimento e criado por construtores desconhecidos em uma data desconhecida jaz a grande profundidade no continente sul-americano”. [ênfase inserida]
Tão ou mais incrível que o sistema subterrâneo de milhares de quilômetros sob nossa América do Sul era o conteúdo de algumas das imensas cavernas, “tão grandes quanto o hangar de um avião Jumbo”. Descrito em primeira pessoa, o autor suíço descreve suas aventuras adentrando uma delas e a revelação em meio ao escuro de incontáveis estátuas de material desconhecido, formando um magnífico zoológico de figuras de animais, de elefantes a leões, incluindo mesmo dinossauros, adornados por algo ainda mais inacreditável: uma miríade de placas de metal contendo inscrições com “o que é, provavelmente, um sumário da história de uma civilização perdida … contendo a sinopse da história da humanidade, assim como um relato da origem da humanidade na Terra e informação sobre uma civilização desaparecida”.
O descobridor dessa mais incrível e fantástica história do século seria Juan Moricz, guia de Däniken na fabulosa expedição. O leitor empolgado com a descoberta, no entanto, poderá ficar intrigado com o fato de que entrada do sistema de túneis ainda deveria ser mantida secreta, “guardada por índios hostis entre o triângulo formado pelas três cidades de Gualaquiza, San Antonio e Yaupi na província de Morona-Santigago” (no Equador). O livro contém ainda uma foto do que se entende ser o autor adentrando a caverna, com a legenda:

Uma mentira de efeito
Pouco após a publicação do livro, o próprio Moricz desmentiu Däniken. Em entrevistas aos jornais alemães, Moricz assegurou que Däniken nunca havia visto o que descreveu. “Exceto se ele foi em um disco voador… se ele diz ter visto a biblioteca e as outras coisas por si mesmo, então, isso é uma mentira”.
No documentário da BBC Horizon, “The Case of the Ancient Astronauts”, que você confere no link, ao redor dos 40 minutos o próprio Erich von Däniken admite a inverdade. Questionado se a história que publicou da visita às cavernas realmente aconteceu, Däniken responde com um cachimbo na boca:
“Não, isso não aconteceu”, admite. “Mas penso que quando alguém escreve livros no meu estilo, que não são livros científicos, … são um tipo de livro popular, mas não são ficção científica. Embora os fatos existam … então, um autor pode usar efeitos. Assim, pequenos detalhes como esse não são importantes realmente porque não afetam os fatos, estão apenas estimulando o leitor, e pode-se fazer isso”.
Quanto à foto publicada dentro do sistema de túneis, também se pode ver Däniken explicando que a expedição teria sido feita por Juan Moricz em 1969 e que ele mesmo nunca esteve lá. “Eu estive em uma entrada lateral em um local completamente diferente. Eu nunca estive aí”. Apesar do que a legenda sugere no contexto da história – depois admitida como uma fantasia dramática – a fotografia publicada não mostra o autor suíço, mas Gastón Fernández, a parte da expedição de Moricz na Cueva de los Tayos em 1969.
“Os livros de Däniken são vendidos como factuais. Como o leitor saberá se o autor está usando ‘efeitos dramáticos’ ou se está simplesmente contando mentiras?”, questiona o narrador da BBC.
Eram os deuses contadores de histórias?
Erich von Däniken já foi condenado e cumpriu penas em três ocasiões. A primeira foi aos dezenove anos, por furto. Um psiquiatra descreveu na ocasião que ele exibia uma “tendência a mentir”. A segunda condenação foi por fraude relacionada a uma negociação de joias, pela qual cumpriu nove meses de pena. A terceira também foi relacionada a fraudes, através das quais o então hoteleiro havia tomado empréstimos somando uma dívida de $130.000, enquanto viajava pelo mundo coletando material que usaria em “Eram os Deuses Astronautas”. Foi condenado a três anos e meio de prisão, cumprindo um ano antes de ser liberado. No julgamento, foi descrito novamente como um mentiroso e um psicopata criminal pelo psiquiatra que o avaliou.
Tais condenações pouco deveriam afetar a realidade de suas ideias ou evidências, se não fosse o fato de que se relacionam com fraudes, falsificações e mesmo avaliações psiquiátricas que, como visto acima, parecem, no mínimo, parcialmente confirmadas quando o próprio autor admite se valer de “efeitos” dramáticos, ou simples mentiras. Para ele, um autor “pode fazer isso”.
O imbróglio do sistema secreto de túneis sob a América do Sul não é o único engodo do qual Däniken participou na criação ou divulgação. Ainda na América do Sul, outra fraude notória promovida nos livros de Däniken é a história muito similar de “Tatunca Nara”, um suposto índio que seria portador da fantástica “Crônica de Akakor”, estendendo-se por tempos imemoriais de outra (ou a mesma?) civilização avançada e perdida nos subterrâneos da Amazônia. Parte dessa fantasia permeou no último filme de Indiana Jones, onde Akakor foi referido como “Akator” e mesclado com crânios de cristal e extraterrestres.

No mesmo documentário da BBC em que Däniken admite ter inventado sua visita à câmara subterrânea, as pedras de Ica também são apresentadas, ao lado de seu criador: não uma civilização perdida de homens que viviam ao lado de dinossauros e realizavam operações cardíacas, mas o índio Basilio Uchuya, que por muitos anos tem riscado pedras que encontra com um estilo muito característico, assando-as em meio ao estrume de seu burro e, então, polindo-as com graxa de sapato para completar a aparência antiga.


“… a banana é um problema. É encontrada mesmo na mais remota das Ilhas do Sul. Como essa planta, que é tão vital para a nutrição da humanidade, originou-se? Como ela fez o caminho ao redor do mundo, visto que não possui sementes? Será que os ‘Manu’, sobre quem a saga indiana conta, a trouxe consigo de outra estrela – como um alimento completo?”
Em uma cândida e demolidora entrevista concedida na revista Playboy em agosto de 1974 ao então novato jornalista Timothy Ferris – que, posteriormente, produziria o disco dourado enviado nas sondas Voyager –, após expor como mal havia lido e pesquisado boa parte das supostas provas que apresentou, concedendo que várias delas, como o pilar de ferro de Delhi, não seriam realmente um mistério “e podemos esquecer sobre essa coisa”, o clímax chega quando Ferris encerra:
Ferris: Uma última pergunta vem à mente sobre suas teorias, a nossa favorita é aquela em Gold of the Gods, em que você sugere que a banana foi trazida à Terra vinda do espaço. Você estava falando sério?
Von Daniken: Não, e poucas pessoas sacaram isso.
Ferris: O que nos leva a perguntar a você se tudo que você escreveu é uma piada. Você diria que é, como um escritor sugeriu, ‘o mais brilhante satirista do século na literatura alemã’?
Von Daniken: A resposta é sim e não. Temos um maravilhoso termo em alemão: jein. É uma combinação de ja e nein, sim e não. Em parte, absolutamente não; eu realmente acredito no que digo seriamente. De outras formas, eu tento fazer as pessoas rirem.
Ferris: Bem, você teve sucesso em alcançar as duas coisas.
Podemos ter sido visitados por civilizações extraterrestres, uma ideia verdadeiramente fabulosa e fantástica. Ela foi proposta com mais propriedade e parcimônia por diversas figuras anos antes que o hoteleiro suíço condenado e preso por fraudes fizesse fortuna com seu “estilo” repleto de “efeitos” os quais se permite como autor tentando “de outras formas fazer as pessoas rirem”.

Nota
- O livro “Ouro dos Deuses” de Erich von Däniken, publicado no Brasil pela editora Melhoramentos, apesar de seu título, não é uma tradução de “The Gold of the Gods”, mas de outro livro do autor, “Trude von Laschan Solstein Arneitz”. A fantasia das cavernas de Moricz e a falsa visita de Däniken, bem como o que ele reconheceu posteriormente como uma piada sobre bananas, não são citadas nessa versão.


