Traduzido por Julio Batista
Original de Michelle Starr para o ScienceAlert
Podemos estar chegando mais perto de entender por que centenas de grandes estruturas de pedra foram construídas nos desertos do noroeste da Arábia Saudita há milhares de anos.
De acordo com uma nova análise aprofundada, os misteriosos recintos retangulares foram usados por povos neolíticos para rituais desconhecidos, depositando oferendas de animais, talvez como votos para uma divindade ou divindades desconhecidas. As escavações revelaram centenas de fragmentos de restos de animais, agrupados em torno de uma laje vertical de pedra interpretada como sagrada.
Os monumentos de aproximadamente 7.000 anos conhecidos como mustatils (uma palavra árabe que significa retângulos) têm intrigado os arqueólogos desde que atraíram a atenção científica na década de 1970.
Não foi até 2017, no entanto, que toda a extensão de sua propagação pela Península Arábica foi revelada no primeiro paper científico documentando sua descoberta. Levantamentos aéreos ajudaram na identificação de mais de 1.600 mustatils, às vezes em grupos, espalhados pelo deserto.
Apelidados de ‘portões’ por causa de sua aparência na visão aérea, os mustatils foram descritos no paper como “duas linhas curtas e grossas de pedras amontoadas, aproximadamente paralelas, ligadas por duas ou mais paredes muito mais longas e finas”.
Eles consistem em duas plataformas curtas e grossas, ligadas por paredes baixas de comprimento muito maior, medindo até 600 metros, mas nunca mais de meio metro de altura.
Embora tenha desabado muitas vezes, uma das duas extremidades curtas forma uma entrada, enquanto a outra contém câmaras que variam em tamanho. Não se sabe para que eram usadas essas câmaras, mas há uma curiosa ausência de ferramentas dentro e ao redor delas.
Os arqueólogos acreditam que esse conjunto de características sugere que seu uso não era ocupacional; as paredes baixas e a falta de telhados os tornariam impróprios como currais de gado ou depósitos, por exemplo.
O que eles podem conter em alguns casos são lajes de pedra decoradas e em pé, bem como uma dispersão de ossos de animais. Vários mustatils também apresentam um longo pátio, sugerindo um elemento processional.
Em 2019, uma equipe internacional de cientistas liderada pela arqueóloga Melissa Kennedy, da Universidade da Austrália Ocidental, escavou um mustatil de arenito de 140 metros perto de Al-‘Ula, chamado IDIHA-F-0011081, coletando fragmentos de material e catalogando as várias características do monumento.
No topo do mustatil – a extremidade curta com câmaras – eles encontraram um espaço com lajes de pedra. Eles também coletaram 260 fragmentos de ossos, dentes e chifres de animais, a maioria agrupados em torno da laje de pedra.
Eles identificaram 246 desses fragmentos; e, ainda mais intrigante, os pedaços de osso eram exclusivamente pedaços de crânios de animais, retirados de cabras, gazelas, pequenos ruminantes e gado doméstico.
Alguns mostram sinais de marcas de corte; outros apresentam sinais de queimadura.
Isso, disse a equipe, sugere que a laje de pedra é o que é conhecido como bétilo – uma pedra sagrada que representa o deus ou deuses das pessoas que viveram na região há milhares de anos, com cabeças de animais depositadas como oferendas rituais.
Essas pedras eretas não são encontradas em todos os mustatils, mas o suficiente, acreditam os pesquisadores, para serem significativas.
“Nós hipotetizamos que os menires (bétilos) de mustatil IDIHA-F-0011081… os elementos faunísticos foram depositados como formas de oferendas”, escreveram em seu paper.
“Devido ao número e idade dos animais abatidos e à presença de elementos cranianos frágeis, sugestivos de crânios frescos, e marcas antrópicas indicando práticas de processamento específicas, levantamos a hipótese de que o banquete ritual também desempenhou um papel no mustatil IDIHA-F-0011081”.
A datação por radiocarbono mostra uma variedade de datas, sugerindo que o local esteve em uso por um longo período de tempo, de aproximadamente 5307-5002 a.C. a 5056-4755 a.C.
E há mais uma pista curiosa que aponta para o uso do monumento na sociedade antiga: uma pequena câmara retangular de pedra, na qual os pesquisadores encontraram restos humanos, ao lado do topo do mustatil, onde ficava a câmara betílica. Se trata de uma cista; uma pequena e antiga câmara mortuária, construída com lajes de arenito bruto. Ela desmoronou sobre si mesma ao longo do tempo, mas ainda continha restos humanos fragmentados e parcialmente articulados.
O tempo também afetou esses ossos, mas Kennedy e sua equipe conseguiram verificar que o falecido era um homem adulto que provavelmente sofria de osteoartrite. Quem ele era e por que foi enterrado no mustatil permanece desconhecido; mas há algo um pouco peculiar sobre o sepultamento.
O próprio mustatil estava relativamente escondido em desfiladeiros de arenito, mas os restos humanos foram depositados várias centenas de anos depois dos restos animais. Isso sugere que o local permaneceu importante muito tempo depois de não estar mais em uso e foi possivelmente um local de peregrinação, ou pelo menos revisitação de santuários.
“As evidências [do sítio arqueológico] sugerem que a tradição do mustatil foi caracterizada pela interseção de crenças e modos de vida econômicos”, escreveram os pesquisadores.
“A incorporação dessas duas facetas sugere um emaranhado ideológico profundamente enraizado, que foi compartilhado por uma vasta distância geográfica, indicando uma paisagem e cultura muito mais interconectadas do que se supunha anteriormente para o período neolítico no noroeste da Arábia.”
A pesquisa foi financiada pela Comissão Real da AlUla e foi publicada no PLOS ONE.