É comum em debates entre ateus e religiosos, evolucionistas e criacionistas, universalistas e relativistas, ou simplesmente entre defensores e críticos da ciência o uso do argumento de que ateísmo, evolução, universalismo e ciência não passam de uma religião, uma crença, exatamente no mesmo nível que suas contrapartidas. Analisaremos esse argumento a fim de responder à pergunta: a ciência é como um culto?
Em primeiro lugar, é necessário analisar o que define culto. Segundo o dicionário Michaelis [1]:
cul.to
adj (lat cultu) 1 Forma pela qual se presta homenagem à divindade; liturgia. 2 A religião: Culto católico, culto protestante. 3 Cerimônias religiosas. 4 Veneração. C. externo: cerimônias e festividades religiosas. C. interno: o que se rende a Deus por atos interiores da consciência.
Como se pode observar, o sentido usado no contexto do argumento (ignorando culto no sentido de instrução) aproxima-se dos significados 1,3,4. Todos relacionados de alguma forma à religião. Dessa forma, cultuar a ciência neste contexto significaria transforma-la em uma divindade, o que implica em ao menos três consequências:
- A ciência é um ídolo a ser adorado e, portanto, jamais é contestado. Isso caracterizaria-o como um sistema dogmático.
- Os enunciados científicos estariam, teoricamente, no mesmo nível de validade que os enunciados de outros sistemas de crença, mitologias e/ou religiões.
- A ciência é onipotente e absoluta, ou seja, possui resposta para toda e qualquer questão.
Uma outra forma do argumento modifica um pouco essas consequências, afirmando que a ciência em si não é como uma religião, mas os seus adoradores fanáticos é que fazem isso. Focaremos primeiro nesta forma original do argumento e depois analisaremos essa segunda versão.
A ciência como dogma
É importante, antes de tudo, esclarecer os diferentes usos da palavra ciência. Existem dois sentidos principais: ciência pode ser considerada um método de investigação que visa produzir conhecimento sobre a realidade, ou pode referir-se a um conjunto de informações que o método científico produziu.
O primeiro sentido se refere a um método, portanto, de acordo com esse significado de ciência, ela não se configura como um sistema de crenças, logo, não pode ser dogmática, porque essa categoria só se aplica a sistema de crenças.
Apesar disso, o método científico é baseado em premissas filosóficas como: “existe uma realidade exterior e independente a mim”, “é possível conhecer essa realidade”.Essas premissas são, no entanto, comuns a todo e qualquer método que se proponha a conhecer algo, do contrário, seria autorefutante. Desse modo, essas premissas não se configuram como dogmas, mas axiomas necessários para que o método seja consistente com sua própria razão de ser. É impossível criar um método para conhecer a realidade sem assumir como premissa de que existe uma realidade e de que é possível conhece-la. Restariam duas alternativas: assumir esses axiomas e ir em frente ou concluir que não existe conhecimento e qualquer empreendimento desse tipo seria sem sentido. A última alternativa é obviamente absurda e enfrenta os mesmos problemas lógicos que o relativismo e o solipsismo.
Poderia alegar-se, então, que são justamente essas premissas que colocariam o método científico no mesmo patamar que os sistemas de crenças. O problema dessa alegação é de que comete um erro de lógica: pressupõe que algumas propriedades comuns implicariam que todas as outras propriedades são comuns, logo, que ambas as coisas fazem parte da mesma categoria. É como dizer que já que uma laranja e uma bola de futebol são redondas, ambas são frutas.
Já o segundo sentido de ciência se refere a um tipo de sistema de crenças, mas que, diferente de outros sistemas (como religiões ou narrativas mitológicas), possui duas características que não o tornam dogmático: a. As informações contidas no sistema são conjecturais, ou seja, não são postas como verdades eternamente certas. b. Essas informações são produzidas a partir da aplicação do método científico, o que significa que o tempo todo são confrontadas com novas evidências, novos testes e revisão por pares. É exatamente por causa disso que o as crenças são conjecturalmente justificadas, o que em termos leigos significa que, por enquanto, temos motivos racionais baseados em evidência para acreditar ser verdadeira uma determinada hipótese científica.
A partir desta análise inicial, é possível concluir que as duas primeiras consequências de se tratar a ciência como um deus caem em contradição por conta da própria natureza da investigação científica e do conhecimento científico.
Os fanáticos por ciência
Apesar dessas contradições, ainda seria possível alegar que existem fanáticos contraditórios que idolatram a ciência, mesmo ela não sendo em si “idolatrável”. Esse poderia ser o caso de pensadores positivistas, que admitem apenas a ciência (e a lógica no caso dos neopositivistas) como formas válidas de conhecimento, empenhando-se principalmente em eliminar a metafísica. Não é muito claro, no entanto, se os positivistas viam a ciência como um conjunto de verdades absolutas (o que configuraria uma postura dogmática, coerente com a visão da ciência como um deus).
Uma grande preocupação dos neopositivistas era de estabelecer um critério de demarcação eficiente entre aquilo que é e aquilo que não é ciência. Segundo esses pensadores, o critério adequado é baseado na verificação dos chamados enunciados atômicos (ou sentenças protocolares). Esses enunciados eram sentenças simples baseadas em dados empíricos. Então, se um enunciado não pudesse ser verificado por meio de dados empíricos, ele era considerado simplesmente não científico e sem sentido pelos positivistas. Ou seja, embora talvez não sejam necessariamente dogmáticos (itens 1 e 2), os positivistas ainda viam a ciência como capaz de responder todas as perguntas, ou ao menos todas aquelas que faziam sentido, o que é, em último caso, petição de princípio, já que o que faz sentido é científico para os positivistas.
Ainda assim, mesmo admitindo-se, pelo bem do argumento, a hipótese de que os positivistas viam a ciência como onipotente e absolutamente certa e verdadeira, isso significa que todo defensor da ciência pensa assim? Não. De fato, desde a época em que o projeto positivista estava no seu auge, diversos defensores da ciência foram críticos a essa interpretação, como é o caso de Mario Bunge e Karl Popper. Se nem os próprios positivistas expressaram exatamente esse pensamento (mas que se pode concluir a partir do critério de demarcação proposto por eles), alargar essa interpretação a todo defensor da ciência não passa de um espantalho.
Nenhuma pessoa que realmente entende como a ciência funciona e o tipo de conhecimento que ela produz poderia alegar que ela afirma verdades incontestáveis e que tem o poder de responder toda e qualquer pergunta. E essas não são alegações da maioria dos defensores da ciência. O que geralmente alega-se é que dentre os métodos disponíveis para se conhecer a realidade, a ciência é o melhor que temos. Portanto, temos mais motivos para confiar nos seus resultados, mesmo sendo pessoas céticas, já que ceticismo, para ser coerente, não pode ser aplicado com a mesma intensidade com relação a tudo independentemente de evidências.
Os enunciados científicos são, por causa da própria natureza do método científico, mais justificados. Isso não significa, no entanto, que se surgir uma nova evidência que contradiga determinada teoria científica devemos continuar acreditando na teoria científica porque esta era mais justificada. A presença de evidências contrárias, que são produzidas pela própria ciência, “diminui” a justificação de uma teoria científica, até o ponto em que ela seja completamente descartada.
Também não é comum alegar-se que a ciência contenha resposta para todas as perguntas. Como foi dito acima, qualquer pessoa que entende como funciona o método científico sabe que questões metafísicas estão fora do escopo científico, ou seja, nem cabe a ciência tentar responder a essas perguntas. A ciência não é, portanto, nem onipotente nem absoluta.
Por que esse argumento é usado?
Como a nossa análise demonstrou, o argumento de que a ciência é como um tipo de religião não se sustenta. Mas, por que este argumento é tão utilizado em meio a debates? O filósofo Stephen Hicks [3] nos oferece uma pista, dando o exemplo do que acontece entre criacionistas e evolucionistas:
“Criacionistas algumas vezes irão argumentar que criacionismo e evolucionismo são igualmente científicos, ou igualmente religiosos, e que eles deveriam, portanto, ser tratados igualmente e receber a mesma atenção[2]. Os criacionistas realmente acreditam nisso? É igualdade de atenção tudo o que eles querem? Claro que não. Criacionistas opõe-se fundamentalmente à evolução – eles estão convencidos que é errada e má e se eles estivessem no poder, iriam suprimi-la. No entanto, como uma tática de curto prazo, já que eles estão no lado perdedor do debate intelectual, eles vão forçar a igualdade intelectual e argumentar que ninguém realmente sabe a verdade absoluta.”
Ou seja, esse argumento é um recurso retórico eficiente quando se está perdendo um debate e é justamente por ser tão eficaz e, ao mesmo tempo, tão falacioso, que é importante disseca-lo e demonstrar suas inconsistências.
Concluímos que a resposta à nossa questão inicial é de que não, a ciência não é em si como um culto, uma mitologia ou um sistema de crenças como outro qualquer, mas é possível sim que alguns fanáticos equivocados interpretem de modo errado o escopo e método científicos. Esses são, no entanto, casos isolados e que não podem ser aplicados a todo e qualquer defensor da ciência. No fundo, o argumento é usado na maioria das vezes como um espantalho, um recurso retórico para virar o jogo em um debate intelectual em que se está perdendo para a ciência.
Notas e referências
[1] Dicionário Michaelis, disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=culto
[2] O texto original utiliza a palavra “time”, que literalmente significa “tempo” em português. Nós pensamos ser mais adequado para o contexto traduzir como “atenção”.
[3] HICKS, Stephen. Explaining Postmodernism: skeptcism and socialism, from Rousseau to Foucault. Scholargy publishing: Tempe, 2004. p. 189
[4] Imagens: http://adagadeoccam.blogspot.com.br/2014/11/tres-concepcoes-de-cientificismo.html * http://4×15.com.br/ciencia-e-religiao/