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Experiências fora-do-corpo e projeção astral: tudo bobagem

Traduzido por Julio Batista
Original de Robert Novella para o The New England Skeptical Society

As experiências fora-do-corpo são interpretadas por muitos crédulos como eventos profundos e reveladores. Acredita-se que essas experiências fornecem evidências convincentes ou pelo menos um testemunho poderoso de que nossas personalidades e memórias não estão ligadas à matéria de nossos cérebros, mas a um substrato etéreo ou astral. Uma vez liberto, segundo essas pessoas, esse corpo pode voar temporariamente, viajar pelo mundo e voltar para se reintegrar com sua contraparte física. Essa crença é mantida em todo o mundo, mas é uma interpretação sustentável dessas experiências?

Uma experiência fora-do-corpo (EFC) é uma percepção de que o eu ou a consciência de alguém de alguma forma deixou o corpo físico, que pode então vê-lo e ao mundo de uma perspectiva que está fora de seus limites normais. A duração dessa experiência é geralmente breve, geralmente durando apenas alguns segundos, com alguns “casos” que duram minutos ou até horas. A ocorrência desse fenômeno é mais comum do que geralmente se pensa. Em uma das pesquisas mais abrangentes já feitas, o pesquisador John Palmer mostrou que 14% das pessoas da cidade de Charlottesville, Virgínia, EUA tiveram pelo menos uma EFC (Palmer, 1979).

Os eventos antes, durante e após as EFCs são altamente variáveis, mas muitos elementos comuns foram identificados. Este último inclui uma sensação de energia, sensações de vibração, sensações de estalo na cabeça e ruídos altos estranhos. A própria EFC muitas vezes envolve não apenas uma visão do próprio corpo, mas também uma observação incorpórea do próprio mundo. Muitos descrevem viajar pelo mundo desta forma e até mesmo compartilhar aventuras e até “experiências sexuais” com outros seres semelhantes. O próprio mundo foi descrito dicotomicamente como um tanto estranho ou incomum e por outros como indistinguível da realidade. A clareza desse ambiente externo também foi descrita como vibrante e detalhada ou transparente e sem detalhes. Ocorrências um pouco menos frequentes, mas importantes para esta discussão, incluem paralisia corporal e a existência de um “cordão prateado” ancorado entre o corpo físico e o corpo etéreo não-físico.

Teosofia

O filtro primário através do qual as EFCs são interpretadas quase universalmente (e muitas vezes inconscientemente) é uma filosofia/religião/”ciência” chamada teosofia. Sempre que você apimenta uma discussão de EFC com palavras como “corpo astral” e “cordão de prata”, você está falando teosoficamente. A Sociedade Teosófica foi fundada em 1875 em Nova York pela nobre russa Helena Petrovna Blavatsky [1] (1831–1891). O objetivo dessa sociedade era “… reconciliar todas as religiões, seitas e nações sob um sistema comum de ética, baseado em verdades eternas” (Blavatsky, 1889). Helena, geralmente chamada de Madame Blavatsky, era obviamente muito prestigiada e carismática e era considerada por seus seguidores uma santa e um gênio. Seus críticos mais veementes, no entanto, a consideravam “uma das impostoras mais talentosas, engenhosas e interessantes da história” (Carroll, 2002). Ela aparentemente costumava usar truques para convencer seu rebanho de que ela tinha poderes paranormais. Isso inclui fingir a materialização de uma xícara de chá e pires e mensagens misteriosas de seus professores psíquicos.

Madame Blavatsky viajou extensivamente pela Índia e outros lugares e foi profundamente inspirada pelo hinduísmo, seus professores tibetanos e as mensagens “canalizadas” de mestres ascensos ou mahatmas. Acredita-se que esses mahatmas etéreos tenham habilidades psíquicas quase divinas, mas não são vistos como divinos, apenas mais “evoluídos” do que as pessoas normais. Ela acreditava que o “conhecimento” que esses seres transmitiam a ela era algum tipo de sabedoria antiga e divina; de fato, teosofia significa “sabedoria divina”. O resultado foi, entre muitas outras coisas, a concepção de que as pessoas não consistem simplesmente em uma mente e um corpo, mas que existem muitas camadas coexistentes diferentes do ser. Nossos corpos físicos e mentes representam a manifestação mais simplificada e menos sutil. Mais ou menos como uma boneca russa da Nova Era.

Os teosofistas acreditam que somos compostos por um total de sete corpos, que correspondem aos sete grandes “planos da realidade”. Esses corpos e planos são chamados de Físico, Astral, Mental, Búdico, Nirvânico, além de dois outros que aparentemente estão tão além de nosso alcance que raramente são discutidos. Os seres humanos, portanto, são compostos de corpos aninhados ou concêntricos, cada um sendo distinto, mas ainda nos representando como habitantes desses sete planos. À medida que os corpos progridem para dentro (ou seria para baixo? sei lá, eles confundem tudo) do físico para o astral e depois para o mental, etc., eles se tornam menos densos e cada vez mais sutis e bons. Além disso, cada um desses corpos pode atuar como “veículos de consciência”, separando-se dos demais e viajando por seu plano.

Interpretações Astrais

O corpo astral e o plano astral são de interesse primário para nós em um contexto de EFC porque a maioria das pessoas, tomando emprestado da teosofia, interpreta EFCs como projeções do corpo astral a partir do corpo físico. Essas duas ideias tornaram-se tão entrelaçadas que frequentemente aparecem juntas, aparentemente dando substância uma à outra. Este doppelganger astral deve se parecer conosco, até no penteado e na roupa íntima. No entanto, tem algumas qualidades especiais (afinal, é astral, não é?). Isso inclui afirmações de que o corpo astral é o locus primário dos desejos, sentimentos e paixões humanas. Também possui uma aura, que foi descrita como um padrão de energia causado pelas “vibrações” do corpo astral (Hefner, 2002) (onde estariam os conceitos da “Nova Era” sem palavras como “energia” e “vibrações”?). O corpo astral também tem a capacidade de atravessar paredes e viajar a uma velocidade incrível, tão rápido que você encontraria seu corpo astral em qualquer local momentos depois de apenas pensar nele. Finalmente temos o cordão de prata. Este cordão, que sempre conecta um corpo astral a um corpo físico, é mais uma contribuição teosófica para o fenômeno de EFC. Frequentemente descrito como de cor prateada, diz-se que o cordão astral é muito elástico e muito forte. Dizem ainda que, se o cordão se rompesse, invariavelmente ocorreria a morte [2].

O conceito de que todos os humanos têm uma parte semelhante que pode se separar de nós antes da morte não era algo novo quando Blavatsky concebeu a ideia de corpo astral. Essa noção remonta pelo menos aos gregos antigos. No diálogo “Fedro” de Platão, ele escreveu: “…estamos aprisionados no corpo, como uma ostra em sua concha.” (Platão, 360 a.C.). Ele acreditava que nosso corpo espiritual interior era prisioneiro de nosso corpo físico carnal e, se libertado, seria capaz de ver as coisas com mais clareza e comungar com os mortos. Os egípcios também acreditavam que todos nós temos um gêmeo invisível que eles chamavam de ka. Eles acreditavam que o ka de cada pessoa é criado quando seu corpo físico é criado e que também pode se mover independentemente à vontade. A comida e os itens terrestres deixados nas tumbas eram especificamente para uso do ka. O livro tibetano dos mortos discute um corpo Bardo que é uma duplicata exata de nós, feito de matéria, mas em um estado invisível e etéreo. Este corpo pode passar pela matéria normal e viajar instantaneamente para o local desejado. Duplicatas de corpo também habitam a mitologia popular de muitas culturas em todo o mundo hoje. Na Noruega, muitas histórias são contadas sobre vardogers ou duplicatas que costumam chegar ao destino de um viajante antes que ele. Na Escócia, o taslach serve a um propósito semelhante, muitas vezes batendo em uma porta e sendo deixado entrar bem antes que o corpo original chegue. Você já deve ter ouvido falar do fetch inglês ou do doppelganger alemão, que há muito tempo foi tido como um termo comum para duplo, duplicata ou duplicado.

O plano

O plano pelo qual o corpo astral viaja durante uma EFC é um pouco difícil de definir. Para algumas experiências, a hipótese do plano astral claramente não se aplica. O corpo astral é descrito como simplesmente movendo-se através de nosso plano físico como uma aparição observando as coisas. Ocasionalmente, há alegações de que a matéria física é afetada pela “matéria” astral, como objetos sendo movidos ou a comunicação com pessoas. Se um corpo astral está de alguma forma manipulando objetos físicos, parece-me que precisaria estar realmente no plano físico para fazer isso. Para muitos outros casos de EFCs, existe a crença explícita de que o ambiente que está sendo atravessado não é físico, mas absolutamente astral. Este lugar é comumente percebido como indistinguível de nosso plano porque tudo nele é uma duplicata astral perfeita até a poeira sob nossas camas. Essa crença tornou-se mais comum principalmente porque elimina o problema da interação do material astral com o material físico. Ainda há alguns que acreditam que o plano astral é bem diferente. Ao pesquisar para escrever este artigo, fiquei impressionado com o quão complexos e elaborados (por assim dizer) os crédulos tornaram o plano astral com muitos níveis “vibratórios” separados, suas próprias comunidades, salas de concerto, museus, flores e montanhas, tudo mais esplêndido e mais bonito do que qualquer coisa que nosso insignificante plano de existência oferece (Marc, 1995).

Em certo sentido, a teosofia tem sido bem-sucedida na interpretação de experiências extracorpóreas porque seus conceitos são muito difundidos. Suspeito que muitas pessoas comuns, se perguntadas sobre EFCs, mencionariam projeção astral e cordões de prata ou pelo menos seriam capazes de descrevê-los. Essa influência também afetou muitos pesquisadores de EFCs cujos participantes de estudos encontraram muitas ideias e termos teosóficos, como projeção astral, úteis para descrever suas experiências. Eu, porém, não gosto dessa interpretação. As EFCs por si só parecem fenômenos bastante bizarros. Explicá-los ou interpretá-los com teorias ainda mais bizarras e não verificadas é uma clássica manobra pseudocientífica que pode parecer legal, mas não faz parte do processo científico.

Shmastral Astral

Então, o que há de errado com a interpretação ou hipótese astral? Um problema-chave é o fato de que muitos relatos de EFCs simplesmente não são passíveis de alguns dos princípios-chave da teosofia. A pesquisadora de EFC, Celia Green, acumulou uma série de casos em que não há menção de nenhum corpo externo (astral ou não). Em vez disso, há menção de pontos de luz, bolhas ou nada perceptível. Também não há uma referência significativa a um cordão de prata (Green, 1968). Os estudos de caso muito completos e amplamente conhecidos de Celia surpreendentemente mostraram que apenas 20% de seus participantes relataram um corpo ou duplicata semelhante na forma astral. Além disso, apenas 3,5 por cento relataram uma conexão visível como um cordão astral (Blackmore, 1982).

É claro que existem soluções alternativas para esses problemas. A visão astral pode ser confusa, o que impede a percepção de um corpo astral. Talvez o cordão de prata tenha sido esticado até se tornar tão fino como uma teia de aranha que era imperceptível ou apenas passou despercebido. Se você não pudesse tornar seu eu astral visível para um amigo, obviamente não haveria matéria etérica suficiente para fazer isso. Isso leva a outro problema com a hipótese astral; é muito maleável e adaptável. Se uma teoria pode ser deformada sem limites para caber em qualquer conjunto de observações, então é apenas ciência básica considerar a teoria como fraca e provavelmente insustentável. Por que testar uma teoria quando ela pode se adaptar a qualquer resultado experimental possível? Quando uma teoria se torna cada vez mais complexa para explicar dados problemáticos, uma alerta vermelho deve ser dado indicando que é hora de a Navalha de Occam agir.

Ainda outro problema com a interpretação do “corpo astral” das EFCs reside na percepção da luz que emana do plano material. Contrariando princípios bem compreendidos de ótica e biologia, devemos acreditar que um olho flutuante, transparente e indetectável está interceptando a luz e transmitindo-a ao nosso cérebro material. O primeiro requisito para a percepção da luz é um meio que focalize a luz, como uma lente. Isso precisa ter uma densidade diferente do ar ao redor, assim como as lentes de nossos olhos. Essas lentes do olho astral causariam distorções incomuns no ar, não muito diferentes do brilho nebuloso visto acima de objetos quentes ou mesmo do brilho das estrelas. Eu tenho procurado, mas ainda não li e nem encontrei nenhuma distorção inexplicável, em movimento e em forma de olho. O ponto principal é que uma substância que não é feita de matéria (ou qualquer outra coisa que a ciência possa reconhecer) não poderia interagir com o mundo material. Visto que a visão, por definição, precisa de tal interação, a visão não seria possível (nem, aliás, nenhum dos outros sentidos).

Acredito que é esse “problema de interação” que levou os teosofistas a postularem que o corpo astral está interagindo apenas com o plano astral e todos os seus fac-símiles astrais e não com o plano físico. Isso é capcioso, no entanto, uma vez que o corpo astral ainda precisaria eventualmente interagir com o corpo físico, pelo menos para se comunicar com ele. Talvez a “realidade” astral tenha, afinal, algumas propriedades físicas que permitiriam algum tipo de interação limitada entre os dois planos. Infelizmente, todas as tentativas de revelar isso desde o século passado não resultaram em nada. Experimentadores tentaram tirar fotos de corpos astrais e até mesmo pesá-los, sem sucesso. Eles instalaram sensores sofisticados sensíveis à radiação infravermelha e ultravioleta. Eles até usaram magnetômetros e termistores para capturá-los.

Sonhos lúcidos

O principal problema com a interpretação astral das Experiências Fora-do-Corpo tem dois lados. Muitos relatos não são facilmente vistos através de uma lente astral, ou seja, não havia corpo astral perceptível ou cordão de prata. Mais condenatório é o problema de interação em que um mundo não material se comunica ou interage de outra forma com nosso mundo material. Existe, no entanto, outro mundo imaterial e fantástico com o qual todos interagimos todas as noites, o mundo dos sonhos. Pode parecer absurdo propor que as pessoas estão confundindo um sonho com um fenômeno de EFC de aparência realista, mas existe um tipo de sonho muito incomum e relativamente desconhecido que já foi considerado tão sobrenatural quanto as próprias EFCs; este é o sonho lúcido.

Sonhos lúcidos não são sonhos lógicos, consistentes e que fazem sentido como nossas vidas acordados (na medida em que progridem). Eles não são como os sonhos normais nos quais o experimentador está perdido em uma fuga e estranhamente não afetado pelos acontecimentos bizarros que ocorrem ao seu redor. Durante os sonhos lúcidos, o sonhador, por definição, percebe que o ambiente e as experiências ao seu redor são construções criadas inteiramente por sua mente. Ele percebe que está dormindo na cama e todas as pessoas ao seu redor não são indivíduos reais, mas criações de seu cérebro adormecido. O sonhador lúcido, na verdade, acordou enquanto ainda dormia.

Isso pode soar como um fenômeno bizarro e suspeito, mas é reconhecido como real pelas principais comunidades de pesquisa psicológica e de sonhos. De fato, eu mesmo já experimentei muitos sonhos lúcidos e posso atestar suas características intrigantes. Meus comentários e conclusões não são, no entanto, derivados de minhas experiências, mas de experimentos controlados que foram conduzidos por anos em muitos laboratórios ao redor do mundo.

Lucidez histórica

O termo “Sonho Lúcido” foi cunhado em 1913 pelo psiquiatra holandês Frederik van Eeden. O próprio conceito, suspeito, remonta a milênios; provavelmente desde que tenhamos uma palavra para “sonho”. O primeiro relato registrado, no entanto, é do século IV a.C. Em seu “Sobre os sonhos”, Aristóteles escreveu: “quando alguém está dormindo, há algo na consciência que declara que o que é apresentado é apenas um sonho”. (Aristóteles)

Em 415 d.C., Santo Agostinho forneceu ao mundo ocidental seu primeiro relato escrito de um sonho lúcido. Isso foi na forma de uma carta descrevendo o sonho de Genádio, um médico de Cartago. Esses escritos esparsos e nada esclarecedores ao longo dos séculos contrastam fortemente com os relatos escritos por monges tibetanos entre 700 e 800 d.C. Eles aperfeiçoaram uma forma de ioga que lhes permitiu manter a plena consciência ao entrar em um estado de sonho. Isso lhes permitia ter sonhos lúcidos da mais alta ordem, controlando seus sonhos com sutileza requintada. Mais importante, essa habilidade gerou uma compreensão da verdadeira natureza do mundo dos sonhos que estava séculos além de outras culturas. Eles foram os primeiros a perceber que os sonhos eram puramente um produto da mente.

Séculos depois, São Tomás de Aquino fez uma referência passageira ao reconhecimento de Aristóteles de um tipo especial de sonho no qual os sentidos eram relativamente inalterados. Mas ideias como essa na Europa medieval eram desaprovadas. Isso se devia à crença persistente e perniciosa de que os sonhos eram causados ​​por agentes externos, como demônios ou outras entidades sobrenaturais. Isso estava prestes a mudar, no entanto. Durante o século XIX, finalmente ocorreu ao mundo ocidental que os sonhos eram produtos da mente e não as entranhas do submundo. Esse foi o primeiro passo crucial necessário para que os sonhos fossem abordados de maneira científica por psicólogos e fisiologistas.

Um dos primeiros pioneiros da pesquisa esotérica dos sonhos foi o professor de literatura e língua chinesa Marquês d’Hervey de Saint-Denys. Um pesquisador meticuloso e dedicado, ele documentou vinte anos de seus sonhos em seu livro de 1867 “Sonhos e como guiá-los”. Neste livro, ele descreve como aprendeu sequencialmente a melhorar sua recordação de sonhos, depois como “despertar” em seus sonhos e, finalmente, como exercer controle limitado sobre eles. Esta foi uma demonstração fundamental que influenciaria os pesquisadores no futuro de que era possível aprender a ter um sonho lúcido.

Crédulos mais notáveis ​​durante este período incluem Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud. Infelizmente, ambos fizeram apenas referências passageiras aos sonhos lúcidos, pois embora a pesquisa dos sonhos finalmente tivesse uma base mais científica, ainda havia muito ceticismo em relação ao conceito de sonhos lúcidos. Em “A Compreensão dos Sonhos” Nietzsche é citado dizendo: “…e talvez muitos, como eu, se lembrem de ter às vezes gritado alegremente e não sem sucesso em meio aos perigos e terrores da vida onírica: ‘É um sonho! Vou continuar sonhando” (DeBecker). Freud foi um pouco mais direto na segunda edição de “A Interpretação dos Sonhos” quando afirmou:

“… há algumas pessoas que estão claramente conscientes durante a noite de que estão dormindo e sonhando e que, portanto, parecem possuir a faculdade de dirigir conscientemente seus sonhos. Se, por exemplo, um sonhador desse tipo está insatisfeito com o rumo de um sonho, ele pode interrompê-lo sem acordar e recomeçar em outra direção – assim como um dramaturgo popular pode, sob pressão, dar à sua peça um final mais feliz.” (Freud, 1900)

A primeira pesquisa séria sobre sonhos lúcidos teve que esperar até 1913, quando Frederik van Eeden cunhou o termo e apresentou um paper à Sociedade de Pesquisa Psíquica. Nela, ele descreveu 352 de seus sonhos lúcidos que coletou de 1898 a 1912. Ele afirmou:

“Nesses sonhos lúcidos, a reintegração das funções psíquicas é tão completa que o adormecido atinge um estado de perfeita consciência e é capaz de direcionar sua atenção e tentar diferentes atos de livre vontade. No entanto, o sono, como posso afirmar com segurança, é imperturbável, profundo e revigorante. (van Eeden, 1913)

Os céticos

Nas décadas seguintes, outros pesquisadores começaram a estudar seriamente os sonhos lúcidos, mas a atitude da comunidade científica era, no mínimo, cética. Eles pareciam ter uma objeção filosófica instintiva ao próprio conceito de sonho lúcido. Para a maioria, era visto como nada mais do que devaneios. Parte dessa dúvida se devia ao fato de que a comunidade parapsicológica estava interessada nesse fenômeno. Estudar sonhos lúcidos foi visto como um “campo contaminado” devido à sua associação com fantasmas, experiências extra-sensoriais e discos voadores. Exemplos desse ceticismo foram relatados pelos psicólogos Alfred Maury e Havelock Ellis nos anos 1900. Maury gostava de dizer que “esses sonhos não podem ser sonhos”. O mais conhecido Ellis afirmou: “não acredito que tal coisa seja realmente possível, embora tenha sido testemunhado por muitos filósofos e outros de Aristóteles… em diante”.

Mesmo no final dos anos 70, o ceticismo era a ordem do dia para os principais pesquisadores de sonhos. Para explicar o que os sonhadores lúcidos estavam experimentando, a posição de muitos pesquisadores foi um paper francês publicado em 1973. Os autores do paper observaram que muitas pessoas com distúrbios do sono experimentavam breves despertares durante o sono REM. Foi durante esses breves momentos entre o sono e a plena vigília que essas experiências devem ter acontecido. Esses “microdespertares”, como foram denominados, foram então apresentados como uma possível explicação fisiológica para os sonhos lúcidos.

Esse ceticismo pode parecer injustificado, mas é importante considerar que, neste momento, todas as evidências de sonhos lúcidos eram anedóticas. A ciência não avança e não deve avançar apenas com base na palavra de alguém. O potencial de distorção e erro é muito alto. Mesmo em 1975, quando a pesquisadora de sonhos lúcidos e autora Patricia Garfield mostrou um sucesso incomparável com o aumento da frequência de sonhos lúcidos e a seleção de tópicos de sonhos, a reação foi mista. Sua apresentação para a influente APSS (Associação para o Estudo Psicofisiológico do Sono) gerou empolgação e interesse, mas fez pouco para amenizar o ceticismo da maioria dos membros.

LaBerge e Lucidez

Foi nesse ponto que o pesquisador de sonhos Stephen LaBerge entrou em cena. Desde os cinco anos de idade, ele tem sonhos lúcidos e um interesse permanente por sonhos em geral. Stephen percebeu que a comunicação direta do mundo dos sonhos era o ingrediente que faltava para persuadir os cientistas céticos. Nisso ele foi inspirado pelo pesquisador Charles Tart, que sugeriu isso pela primeira vez. Isso é tão difícil quanto parece, especialmente porque estar sonhando é, por definição, estar paralisado.

A evolução instilou uma proteção importante em nossos cérebros adormecidos. Toda vez que estamos em sono REM e estamos sonhando, uma condição chamada atonia REM se instala, paralisando todos os nossos músculos, exceto nossos olhos e os músculos responsáveis ​​pela circulação e respiração. Se não fosse esse o caso, todos nós representaríamos nossos sonhos, o que poderia ser um problema se estivéssemos sonhando em voar, correr ou até mesmo caminhar. Parece que me lembro de um paper sobre um gato que teve sua atonia REM desligado, por assim dizer. Este gato, enquanto dormia, espreitava e atacava animais invisíveis; aparentemente ele estava sonhando em pegar sua próxima refeição.

Como os músculos oculares eram os únicos músculos voluntários que não estavam paralisados, LaBerge percebeu que eles deveriam ser a chave de comunicação do estado de sonho lúcido. Foi demonstrado em estudos anteriores que havia uma correspondência direta entre o movimento dos olhos e a direção do olhar do sonho. O exemplo canônico é de um voluntário de pesquisa de sonhos cujos olhos adormecidos estavam consistentemente movendo para o lado e para o outro horizontalmente por um longo período de tempo. Ao acordar, ele mencionou que estava sonhando em assistir a uma partida de pingue-pongue.

LaBerge percebeu que um padrão específico de movimentos oculares poderia ser iniciado durante um sonho lúcido e registrado por um polígrafo. Ele tentou a primeira parte em casa e durante seu próximo sonho lúcido ele produziu com sucesso um padrão específico de movimentos oculares. Esta foi a primeira vez que um comunicado foi enviado do mundo dos sonhos para o mundo acordado. Infelizmente, ninguém estava lá para registrar isso cientificamente.

Ele teve que provar isso de uma forma que os céticos não pudessem ignorar. Em setembro de 1977, ele inscreveu na Universidade de Stanford o seu estudo de doutorado dos sonhos lúcidos. No outono daquele ano, ele estava em seu laboratório de sonhos e pronto para sonhar. Ele descreve sua segunda tentativa no laboratório de sonhos no dia fortuito de sexta-feira, 13 de janeiro de 1978:

“…depois de sete horas e meia na cama tive meu primeiro sonho lúcido no laboratório. Um momento antes, eu estivera sonhando, mas de repente percebi que devia estar dormindo porque não conseguia ver, sentir ou ouvir nada. Recordei com alegria que estava dormindo no laboratório. A imagem do que parecia ser o manual de instruções de um aspirador de pó ou de algum eletrodoméstico passou flutuando. Pareceu-me mero borrão no fluxo da consciência, mas conforme me concentrei nele e tentei ler a escrita, a imagem gradualmente se estabilizou e tive a sensação de abrir meus olhos (no sonho). Então minhas mãos apareceram, com o resto do meu corpo onírico, e eu estava olhando para o livrinho na cama. Meu quarto dos sonhos era uma cópia razoavelmente boa do quarto em que eu estava realmente dormindo. Como agora eu tinha um corpo de sonho, decidi fazer os movimentos oculares que havíamos combinado como um sinal. Movi meu dedo em uma linha vertical à minha frente, seguindo-o com os olhos. Mas fiquei muito empolgado por poder finalmente fazer isso, e o pensamento interrompeu meu sonho, de modo que desapareceu alguns segundos depois.” (LaBerge, 1986)

Finalmente alguém apresentou evidências objetivas de que um sonho lúcido ocorreu durante o sono REM.

Evidências como essa ainda não eram a panaceia que LaBerge esperava. Ele tentou enviar sua pesquisa para as revistas Science e Nature, mas foi rejeitado em várias ocasiões. Ele conseguiu ser publicado na revista menos prestigiosa “Perceptual and Motor Skills”. No entanto, quando chegou junho de 1981, o Dr. LaBerge compilou resultados mais detalhados e copiosos de muitos sonhos lúcidos e de outros sonhadores em seu laboratório. Durante a reunião anual da APSS naquele ano, ele apresentou quatro trabalhos sobre sonhos lúcidos e finalmente chegou ao ponto em que suas conclusões eram inegáveis. Mesmo os céticos mais obstinados não podiam mais negar que os sonhos lúcidos eram um fenômeno real.

Notas

Aqui está um aparte interessante; foi alegado que uma das sucessoras de Blavatsky, Alice Bailey, cunhou o agora onipresente termo “Nova Era” (Kelly, 1990).

Se você já se perguntou por que as pessoas acreditam que nunca se deve acordar um sonâmbulo, esse pode ser o motivo.

Em 1980, o Dr. LaBerge descobriu que o Dr. Keith Hearne, de Liverpool, Inglaterra, havia feito experimentos semelhantes antes de LaBerge realizar o dele. Hearne, no entanto, manteve sua pesquisa em segredo e não experimentou a aceitação popular do sonho lúcido.

Referências

  1. Morris, R.L.,Harary, S.B., Janis, J., Hartwell, J. and Roll, W.G. ‘Studies of Communication During Out-of-Body Experiences’ (Journal of the American Society for Psychical Research, 1978, 72, pp. 1-22).
  2. H.P. Blavatsky, The Key to Theosophy, Theosophical University Press, 1889
  3. Robert Todd Carroll, The Skeptics Dictionary: Theosophy, 2002, http://skepdic.com/theosoph.html
  4. Platão, Fedro, 360 a.C., traduzido por Benjamin Jowett
  5. Green, C. E. Out-of-the-Body Experiences (London: Hamish Hamilton, 1968) [Gre68b] —. Lucid Dreams (London: Hamish Hamilton, 1968)
  6. Blackmore, S. J. Beyond the Body: an Investigation of Out-of- Body Experiences (London: Heinemann, 1982)
  7. Macy Marc, The Astral Planes and Other Worlds Of Spirit, http://www.spiritweb.org/Spirit/astral-planes-macy.html
    Pert Alan, Vocábulo “Astral”, http://www.harbour.sfu.ca/~hayward/van/glossary/astral.html
  8. Alan G. Hefner, The Mystica Website, http://www.themystica.com/mystica/articles/a/aura.html, © 1997 2002
  9. Kelly, Mary Olson, Fireside Treasury of Light, Simon and Schuster, NY, 1990, p. 23.
  10. Palmer, J. (1979). A community mail survey of psychic experiences. “Journal of the American Society for Psychical Research, 73”, 221-251.
  11. Aristóteles, Sobre os sonhos, publicado em Hutchings, R. M., ed., Great Books of the Western World, vol. 8 (Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952), pp. 702-06
  12. deBecker, R., The Understanding of Dreams (London: Allen & Unwin, 1965), p. 139
  13. Freud, S.: The Interpretation of Dreams (originalmente publicado em 1900; James Strachey translation, 1965) (Avon)
  14. van Eeden, F., “A study of dreams,” Proceedings of the Society for Psychical Research 26 (1913): 431-61.
  15. LaBerge, Stephen, Ph.D., Lucid Dreaming, Ballantine, 1986
Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.