Pular para o conteúdo

Faculdade de Pseudociência

Trago uma breve tradução de um dos capítulos do livro Cien Ideas (em português, Cem Ideias), do físico e filósofo argentino Mario Bunge. Nesse livro, Bunge propõe de forma irônica, a criação de um plano de estudos universitários específicos para as pseudociências.


Por Mario Bunge
Publicado no Cien Ideas

"Cem Ideias" de Mario Bunge, publicado pela Editora Laetoli.
“Cem Ideias” de Mario Bunge, publicado pela Editora Laetoli.

As pseudociências, tais como a astrologia e a quiromancia, sempre foram populares, muitas vezes mais do que as ciências. Atualmente, está na moda exigir que as universidades atendam a demanda do mercado, portanto devemos ensinar abertamente, de forma consistente, ao invés de secretamente nas faculdades de ciências humanas. O consumidor deve poder escolher livremente entre a Faculdade de Ciências e a Faculdade de Pseudociências. E o diploma deverá ser autorizado para exercer a profissão.

Essa ideia não é minha, e não é nova; há quase um século Freud, o fundador da pseudociência mais bem sucedida do século passado, propôs uma análise detalhada para uma Faculdade de Psicanálise da Universidade de Viena. Seu plano de estudos incluía vários cursos de psicanálise, mitologia e literatura. Nada de psicologia experimental e neurociência, é claro, porque aqueles que trabalham nestas áreas têm o hábito desastroso de exigir evidências.

O defeito do plano de Freud foi unilateral: só incluía a psicanálise. O meu é bem aberto: inclui todas as principais pseudociências conhecidas, assim como algumas inventadas. Na verdade, o meu plano de estudos da Licenciatura em Pseudociências é a seguinte:

  • Primeiro ano: Introdução à Pseudociência, História das Pseudociências, Astrologia, Alquimia, Piramidologia e Demonologia. Trabalhos práticos: a transmutação do chumbo em ouro; construção de horóscopos; procurar águas subterrâneas por meio de um “garfo”; levitação; reconstrução de uma pirâmide egípcia; entrar em contato espiritual com um demônio.
  • Segundo ano: Homeopatia, Naturopatia, Psicanálise Freudiana e Numerologia. Trabalhos práticos: fabricação de remédios homeopáticos para curar o câncer, diabetes ou o mal do amor; identificar o complexo relacionado com a bisavó materna; encontrar o significado simbólico do número de Avogadro.
  • Terceiro ano: Psicanálise Junguiana, Parapsicologia, Memética, Psicologia Evolutiva, Grafologia e Seminário I. Trabalhos práticos: encontrar sincronicidades entre tsunamis e terremotos políticos; tocar uma flauta à distância; explicar a última das 10.000 religiões registradas nos EUA como uma adaptação ao ambiente do Paleolítico; encontrar o significado simbólico dos sonhos de um notório terrorista.
  • Quarto ano: Design Inteligente (id est, Criacionismo Científico), Astronomia dos Universos Paralelos, Medicina Holística, Genética Egoísta, Psicanálise Lacaniana, Direito de exercício ilegal da Medicina, Filosofia da Pseudociência e Seminário II. Trabalhos práticos: averiguar os projetos do Todo Poderoso de quando ele projetou o piolho e o dente do siso; averiguar algumas características de um Universo em que as leis da termodinâmica falham; diagnóstico e tratamento holístico do calo da planta do pé; encontrar o gene do seu amor por futebol, poker ou pseudociência; inventar truques para evitar ações judiciais iniciadas por clientes ingratos; desenvolver uma Filosofia da Ufologia, Reflexologia, Psicanálise ou Memética.

Os seminários I e II se dedicariam aos estudos de teorias ou práticas localizadas entre ciência e pseudociência, como a teoria das cordas, o universo começando a partir do vácuo e de uma escolha racional.

Prevejo que o empreendedor acadêmico que propuser a criação de uma Faculdade de Pseudociências não teria dificuldade no recrutamento de professores docentes e estudantes, principalmente porque eles não se encaixam nestes testes de aptidão. Também não teriam qualquer dificuldade na formação de uma biblioteca especializada em pseudociências, e se pode comprovar visitando qualquer livraria. Mas, certamente, o empregador teria que enfrentar a concorrência das faculdades de ciências, medicina e engenharia. Neste caso, você pode usar os seguintes argumentos, que ofereço sem custo:

  1. A liberdade acadêmica inclui a liberdade de ensinar alguma coisa, mesmo que dois mais dois seja igual a sete e que a Terra é plana.
  2. A ciência é falível, por isso, é possível que a pseudociência de hoje seja ciência amanhã.
  3. Na era pós-moderna tudo é relativo, não existem verdades objetivas, não é necessário testar o que se conjectura.
  4. O tempo é ouro, e salvá-lo é aprender uma pseudociência em vez de uma ciência.
  5. As necessidades instrumentais de pesquisa experimental estão se tornando cada vez mais caras que até mesmo os países mais poderosos estão optando por disciplinas que não exigem experimento algum.
  6. A universidade pós-moderna é uma empresa, e como tal, tem o direito e o dever de fornecer os produtos exigidos pelos consumidores.
  7. Em certos países, funcionam faculdades de humanidades que servem apenas para ensinar doutrinas pós-modernas (por exemplo, de que a história é um ramo da literatura) e as faculdades de psicologia ensinam exclusivamente psicanálise. A faculdade que proponho não generaliza e proclama abertamente o que as outras fazem de forma estreita e desleal.

Estes argumentos parecem impecáveis. Mas apenas três dúvidas me carregam. Primeira: legitimam-se o autoengano e o embuste ao ensiná-los nas universidades? Segundo: é necessário que a universidade deixe de ser a principal oficina na busca de verdades? Terceira: uma vez que o direito à mentira é um dos direitos do homem, por que exigir diploma para exercê-lo?

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.