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Filosofia marxista: promessa e realidade

Por Mario Bunge
Publicado no Evaluating Philosophies

O marxismo tem sido ignorado, criticado, travestido e difamado por mais de um século. Mas ninguém pode honestamente negar que Karl Marx foi um grande economista, e também um corajoso crítico social e organizador de trabalho, um jornalista brilhante, e o mais profundo e eloquente crítico do capitalismo. Até mesmo o papa Bento XVI admitiu que Marx fascinou e continua a fascinar.

Ironicamente, ninguém duvida que Marx e seu colega de trabalho Friedrich Engels também conceberam um original e amplo sistema filosófico nomeado materialismo dialético, o que em suas próprias opiniões “virou Hegel de ponta cabeça” de forma que mantiveram sua dialética enquanto rejeitavam seu idealismo.

Neste capítulo será discutido se realmente existe tal sistema filosófico ou apenas uma coleção de afirmações imprecisas que cabem em uma página; que Marx e Engels assim como seus seguidores, falharam a entender que a pior característica do sistema de Hegel não era o seu idealismo, mas sim a confusão e obscurantismo; e que suas próprias excursões filosóficas eram grosseiras e estavam em discrepância com a lógica, matemática, e física de seu tempo.

Estes defeitos, juntamente com o fracasso de colocar suas conjecturas filosóficas para teste, explica porque o Marxismo contemporâneo está fragmentado em um número de correntes. Os mesmos defeitos também explicam porque nenhum dos neomarxistas tem feito nenhuma contribuição original para a lógica, semântica, ontologia, epistemologia, metodologia, teoria do valor, ética, ou filosofia política. Em resumo, o Marxismo se tornou escolástica obsoleta e estéril, indigno das intenções inovadoras e emancipadoras de seus fundadores.

Eu sugiro que, para avaliar corretamente e enriquecer o legado de Marx e Engels, é preciso examinar suas principais ideias sob a luz da ciência contemporânea e filosofia, assim como a da história do socialismo, ou o que se passa por isso. Que eu saiba, ninguém tentou essa grande tarefa, talvez porque o pensamento de Marx atraiu em sua maioria fanáticos dos dois lados do espectro ideológico. Aqui limitar-me-ei a criticar o que considero como as principais ideias da filosofia de Marx e Engels, sem levar em conta as incontáveis emendas e enfeites adicionados por seus seguidores.

1. Materialismo dialético

O núcleo filosófico do Marxismo é o materialismo dialético, uma combinação do materialismo com a dialética de Hegel. Esta doutrina não nos diz o que é a matéria, mas exalta a dialética como a teoria de tudo. As assumidas leis da dialética, como formuladas por Engels (1940,1954) e Lenin (1947,1981), são falsas na medida em que são inteligíveis. Vamos dar uma pequena olhada nelas.

A primeira “lei” da dialética, sobre “transformação de quantidade em qualidade”, não faz sentido como é expressa. De fato, toda quantidade é numerosidade de um conjunto ou o grau ou intensidade de uma característica, propriedade, ou qualidade, assim como em “um metro de extensão”. Significativa e verdadeira é a afirmação de que há pontos críticos, como a fusão, e até mesmo mudanças de espécies, como a transmutação dos elementos.

A segunda “lei”, sobre “luta e unidade dos opostos”, é falseada pela existência de coisas simples, como elétrons e fótons. E poucas se existentes coisas complexas ou sistemas, como organismos e firmas de negócios, são decomponíveis em opostos. Por exemplo, pessoas normais raramente estão em desacordo com si próprias, e grupos sociais não se separam no momento em que emergem. Mesmo em sociedades profundamente divididas, o trabalho colaborativo pega muito mais tempo do que a luta, e o esforço pela existência supera conflitos de classes.

A ideia de que a mudança é contraditória é uma instância de pensar em opostos, típico do pensamento primitivo e arcaico. Assim Zeno de Elea acreditava que a mudança é contraditória: a flecha que voa está lá e não está lá – o que é impossível. É claro que os físicos que vieram logo após Zeno não foram prejudicados por esta dificuldade: para eles, repouso é apenas a velocidade zero, um caso particular de movimento, não o seu oposto. No entanto, 25 séculos mais tarde, Engels (1954), ecoando Hegel, repetiu o raciocínio de Zeno, exceto pela conclusão: enquanto Zeno negou mudança juntamente com a contradição, os modernos filósofos dialéticos abraçaram ambos. Assim, tacitamente abdicaram de dois milênios e meio da ciência.

Em particular, Engels (1940, chapter III) achou que seria necessário mudar a mecânica clássica, de modo que pudesse encaixar a dialética. De fato, ele ressuscitou o entendimento de Empedocles-Kant sobre matéria como a unidade de atração e repulsão; ele confundiu força com energia; e ele pensou que um planeta era dirigido por uma força tangencial, em vez da interação gravitacional Sol-planeta. Encurtando, Engels não compreendeu a mais importante teoria física de seu tempo porque ele venerava Hegel e desprezava Newton. (Por contraste, seu brilhante ensaio no “O papel desempenhado pelo trabalho na transição do macaco ao homem”, incluído no mesmo volume, foi um precursor da atual visão biossociológica da evolução humana).

Além de ser confusa e ter muitos contraexemplos como instâncias, a segunda “lei” é politicamente arriscada, porque ela coloca luta e destruição antes da cooperação e construção. É bem sabido que luta não é nem o único nem a melhor maneira de conquistar objetivos sociais: é apenas o último recurso. Cooperação é a alternativa menos arriscada, e é aquela com maior probabilidade de gerar resultados duradouros, porque ela beneficia e atrai um número maior. Confucius não se dá bem com Hegel.

Quanto a terceira “lei” dialética, aquela da “negação” da “negação”, é incompreensível à medida que não nos é dito o que a ontológica “negação” e  “anulação” (Aufhebung) significa. De qualquer forma, eu espero que meus netos não acreditem que são duplas negações de seu avô.

Em suma, as “leis” da dialética não são leis universais de mudança, válidas para a matéria de todas as naturezas – física, química, biótica, social, e técnica. Nós sabemos um número de leis gerais, válidas para corpos, campos, células, ou pequenos grupos sociais. Se existem quaisquer leis universais, isto é, padrões de qualquer tipo de matéria, isto é uma questão aberta. Caso tais leis existam, certamente não seriam encontradas através do método Hegeliano, mas centrando o foco na ciência.

2. O legado desastroso de Hegel

Ontologia é negócio sério – não menos que o núcleo de qualquer sistema filosófico. E uma ontologia séria não pode ser condensada em três sentenças, muito menos se elas são enigmáticas. Obscuridade é tolerável no começo de uma investigação – e.g., entre os pré-socráticos; mas é intolerável depois de Aristóteles. E assim mesmo, Hegel ganhou admiração por escrever tais absurdos como “tornar é a síntese do ser e do não ser”.

Eu sugiro que qualquer Marxista que perceba como o Hegelianismo não é reciclável, deva escolher entre ceder à derrota, ou tentar limpar e desenvolver qualquer coisa possível de ser recuperada do navio naufragado. A primeira opção é perfeitamente honrada, em vista que o próprio Marx desistiu da filosofia quando se comprometeu a escrever sua obra prima; e que mesmo Etienne Balibar, um filósofo Marxista proeminente, pensa que talvez Marx seja “o maior antifilósofo da era moderna”.

Por outro lado, o legado filosófico de Marx e Engels pode ser respeitado como uma tentativa falha de combinar o “método” de Hegel com o esboço de materialismo de Ludwig Feuerbach, assim como bem como com quatro botões radicais e promissores do radical Iluminismo francês: o materialismo sistêmico (Holbach), o evolucionismo (Buffon), o cientificismo (Condorcet) e igualitarismo (Rousseau).

Presumidamente, qualquer tentativa de reconstruir a filosofia Marxista deverá começar por abandonar Hegel, a quem considero como o mais obscurantista de todos os filósofos contra-Iluministas. Isto é porque ele rejeitou toda a ciência de seu tempo, e tentou passar obscuridade e até mesmo absurdos como profundidade – o que faz dele o profeta do pós-modernismo.

Abandonar Hegel não será fácil para Marxistas porque Marx, Engels e Lenin eram fascinados por Hegel. De fato, Marx o chamou de “um poderoso pensador”. Engel admirou Hegel enquanto desprezava Newton ele viu a ciência do seu dia para confirmar sua conjectura que Hegel foi o profeta dela; e atacou Eugen Dühring, um diletante marginal, em vez de escrever um Anti-Hegel. Lenin devotou o ano 1914 de seu exílio em Zürich para estudar e anotar a “grande” lógica de Hegel. E Mao Zedong escreveu seu clássico sobre contradição no mesmo ano em que a segunda invasão Japonesa começou.

A admiração por Hegel era compreensível na Alemanha um século antes: ele havia construído um sistema que parecia ter respostas prontas para tudo e que, em um tempo de grandes mudanças de todos os tipos, exaltava o tornar-se. Além disso, Hegel não era nem mais obscuro nem mais reacionário que seus rivais, Fichte e Schelling. Mas é difícil entender como Hegel encontrou admiradores em 1914, e menos ainda em 1937, em um tempo em que a lógica moderna, física atômica, biologia e sociologia estavam florescendo.

Apego a Hegel era tão forte, que seus primeiros discípulos famosamente se dividiram entre Hegelianos de esquerda e direita. E um século depois, quando a Alemanha estava dividida em duas, existia uma sociedade de Hegel, com seu correspondente anuário, em cada lado das duas metades. É verdadeiro que Marx e Engels criticaram o idealismo de Hegel, mas eles não repudiaram seu culto ao absurdo e sua rejeição a ciência moderna a partir de Newton. Engels até mesmo repetiu a afirmação absurda de Hegel que as leis particulares de Kepler implicavam nas leis gerais do movimento de Newton.

Esse desprezo dos marxistas para a lógica formal teve três consequências infelizes. Uma delas foi a tolerância de absurdos como exemplos de dialética. Segundo: ataques contra os primeiros matemáticos soviéticos que ousaram trabalhar na lógica moderna. Terceiro: a tese de que a lógica matemática é defeituosa em ser estática, enquanto que “lógica dialética” é verdadeira por ser a teoria da mudança. Esta tese é triplamente absurda. Em primeiro lugar, porque confunde a lógica com a ontologia, uma fusão que faz sentido para um idealista objetivo como Hegel, mas é inadmissível para um materialista. Em segundo lugar, porque o estudo científico de mudança, longe de ser a priori, tem um forte componente empírico. Em terceiro lugar, porque “lógica dialética” nunca foi além da fase de programação.

De qualquer forma, essas falhas conceituais da dialética não são nada comparadas ao seu principal produto político: a Revolução Cultural Chinesa (1966-1976), um dos piores horrores da História. De fato, a racionalização para começar o movimento foi essa: Strife (“contradição”) é a fonte de toda a mudança; Agora, a China comunista recentemente tinha resolvido os principais “contradições”: a guerra de classe, o conflito dentro do Kuomintang, e a briga com o Japão; portanto, a sociedade chinesa foi ameaçada pela estagnação; daí a necessidade de um novo grande confronto, desta vez jovem versus velho. É por isso que a liderança comunista incitou adolescentes a destruir tudo que era velho. Esta chamada foi bem sucedida: Estima-se que 50 milhões de pessoas morreram, muitos mais perderam 12 anos de suas vidas, e as instituições inteiras, começando com as escolas, tiveram de ser reconstruídas 12 longos anos depois.

Isso conclui nossa análise rápida do materialismo dialético. (Para mais sobre dialética veja Bunge 1981.)

Vamos agora nos voltar para o materialismo histórico, o que é supostamente a aplicação do anterior para matérias sociais, ainda assim é, na verdade, muito mais original e produtivo.

3. Materialismo histórico

Materialismo Histórico é a ontologia social que postula que todo o social como econômico “em última instância” – um piloto que garante infalibilidade. Ele também adota o postulado de Heráclito “a luta é o pai de todos”. Vamos confinar a nossa análise a estas duas teses – economicismo e agonismo, respectivamente, bem como o holismo e o dualismo economia/cultura.

Holismo (ou coletivismo) é a tese de que o todo precede e domina suas partes, e deve então ser estudado independentemente do último. Aristóteles foi um dos primeiros proponentes do holismo,  Hegel e seus seguidores reflutuaram-no logo após as revoluções americana e francesa proclamarem a supremacia do indivíduo. Em particular, Hegel divinizava o Estado, enquanto Marx, que odiava o estado, viu na classe social a fonte de todas as coisas individuais.

Ambas as posições são logicamente insustentáveis porque por definição da relação parte-todo, nenhum existe sem o outro. Isto é porque um define a relação parte-todo. As implicações teóricas das ontologias sociais em questão são claras: enquanto o individualismo encoraja a estratégia de baixo para cima, o holismo inspira a de cima para baixo. Mas nenhuma destas estratégias sucede por sim mesma, porque cada agente individual ocorre em um sistema preexistente, e sistemas só podem ser entendidos em termos de agência individual – que é o que o sistemismo mantém. Os concomitantes políticos de duas ontologias são tão óbvios quanto: enquanto o individualismo encoraja orc associal ou mesmo liberalismo antissocial, holismo inspira totalitarismo. Vamos agora nos virar para o segundo postulado: economicismo.

Economicismo é a tese de que a economia é o primeiro motor da sociedade. Marx e Engels defenderam esta tese, também chamada “imperialismo econômico”, que hoje é defendido por Gary Becker (1976) e outros membros influentes da escola de Chicago – o bicho papão do Terceiro Mundo.

Eu defendo que a tese economicista se sustenta apenas em alguns casos. Por exemplo, a Revolução Industrial e o concomitante capitalismo mudaram radicalmente quase todos os aspectos das sociedades onde ocorreram. Mas também o fizeram certas mudanças políticas, como a independência das colônias, e ainda certas mudanças culturais como a alfabetização e a adoção do Cristianismo como religião de estado.

É verdade, em devido tempo, Marx e Engels qualificaram a tese economicista: em algumas cartas privadas eles admitiram que, por vezes, a política leva a mão superior, e outras vezes a cultura faz. Mas esta concessão veio com um pouco de dualismo ideia/matéria. De fato, em seu Anti-Dühring, Engels dividiu a sociedade em duas: a infraestrutura material (econômica) e a superestrutura ideal (o resto). Esta é, obviamente, uma transposição do antigo dualismo corpo/mente, da teologia e da filosofia idealista da mente, ao social.

Eu sugiro que um materialista consistente deve considerar o conjunto da sociedade como um objeto material, embora, naturalmente, não física, porque seus componentes são objetos materiais-animais, principalmente pessoas e artefatos. Além disso, o conceito de ação entre sistema material é bem definida, ao contrário dos conceitos de matéria-espírito e seus duplos.

E, em vez de considerar as interações economia-cultura como instâncias da ação matéria-espírito e seus duplos, materialistas consistentes irão vê-los como interações entre entidades totalmente materiais: pessoas e sistemas sociais. Por exemplo, eles vão analisar a frase “economia tecnologia de fluxo” como “o trabalho de tecnólogos em empresas de negócios ou departamentos do governo”.

Além disso, realistas irão alegar que a política e a cultura são tão importantes quanto a economia, como é mostrado por inovações como a democratização e alfabetização em massa. Em outras palavras, eles sugerirão que em toda sociedade nós devemos distinguir, mas não separar, três subsistemas no mesmo patamar: a economia, a política e a cultura.

O dogma de que o modo de produção determina todo o resto, cega os marxistas da habilidade para pesquisar desinteressadamente pelo progresso tecnológico, o que por sua vez alimenta a indústria e o estado. Outra consequência do dogma é que Marxistas ainda estão debatendo onde se deve colocar a ciência e a tecnologia: se é na infraestrutura (como “força produtiva”), como Marx uma vez manteve, ou na superestrutura (juntamente à ideologia).

Fixação nesses dogmas tem impedido a maioria dos Marxistas de perceber a complexidade da sociedade. Talvez essa parcial cegueira, junto com a crença de que o materialismo histórico explica tudo que é social sem a necessidade de mais pesquisas seja o motivo pelo qual não existe uma sociologia, culturologia e ciência política Marxista. De qualquer maneira, continuemos.

O agonismo se originou na tese de Heráclito de que “a luta é o pai de todos”. O agonismo marxista é a tese de que toda a história humana após o nascimento da civilização é a história das lutas de classes. Esta tese é altamente original e parcialmente verdadeiro, mas ignora os processos políticos e culturais importantes que não têm nada a ver com a luta de classes, como o Renascimento, a Reforma, a Revolução Científica, o Romantismo, e as guerras pela independência nacional.

Esta crítica não é para negar a exploração de classe e luta de classes, mas destina-se a alertar contra exageros como o relatado pelo marxista Terry Eagleton (2011: 152): subeditores do British Communist newspaper Daily Worker “Seria entregue relatórios de acidentes rodoviários, com a instrução” coloque isso por ãngulo de classe, camarada.

Mais importante, o agonismo negligencia a cooperação, que na verdade é tão difundida quanto a concorrência. De fato, sem a cooperação não haveria sistemas sociais, portanto, sem conflitos intra-sistêmicos, de brigas de família até os conflitos de pessoal de gestão e lutas políticas. Há pior por vir.

No entanto, mesmo com todas as suas falhas, a ontologia social materialista, uma vez libertada da dialética, em particular do dogma de que o conflito é a mãe de todas as mudanças, tem sido muito mais frutífera do que sua contraparte idealista. Na verdade, mesmo uma análise superficial da literatura da ciência social contemporânea dominante não mostra nenhuma pesquisa séria inspirada no postulado idealista que ideias movem a sociedade. Não é que elas não importem, mas, como Marx escreveu, ideias são eficazes apenas na medida em que orientam ou desorientam as pessoas no sentido de obter o que elas precisam para sobreviver.

Mesmo com todos os seus defeitos, a ontologia social materialista foi muito mais produtiva que sua concorrente idealista, em particular a Escola Verstehen (entendimento, interpretação). De fato, por causa de seu foco em intenções individuais conjecturadas, esta escola conseguiu negligenciar todos os processos macrossociais de nosso tempo. De qualquer forma vamos seguir em frente.

4. Epistemologia e a sociologia do conhecimento

O jovem Marx criticou o empirismo de Bacon, Locke e Hume, e elogiou a tese de Kant sobre a criatividade da mente. Por contraste Friedrich Engels, seu colega, inconscientemente adotou a epistemologia empirista originária dos escolares Aristotélicos que cunharam a famosa formula “Nada existe no intelecto que não estivesse antes nos sentidos”.

De acordo com essa tese, até mesmo os mais abstratos conceitos matemáticos, como o de zero infinito, seriam apenas destilações de perceptos. A socialização dessa tese é a ideia extraordinária de que todas as ideias, não importando quão abstratas, “condensam as experiências das massas”. Se fosse assim, mesmo as fantasias religiosas e pseudocientíficas estariam ancoradas na experiência. E nenhuma ideia contraintuitiva surgiria. Em instância, física de campo, física atômica, genética, biologia evolutiva e a teoria quântica nunca teriam sido concebidas.

Em suma, o Marxismo não enriquece a epistemologia: ele apenas temperou a teoria empirista com confusões dialéticas. Pior, não adotou a melhor contribuição do empirismo, o requerimento científico de que hipóteses devem ser colocadas a teste. Ironicamente, tal apriorismo contradiz o empirismo. No topo disso, ele levou a ossificação da teoria Marxista. De fato, muitos dos filósofos Marxistas argumentaram em um estilo teológico: “Essa opinião é falsa porque contradiz o que Marx (ou Engels) declarou naquele trabalho”.

Enquanto Marx e Engels não enriqueceram a filosofia do conhecimento, eles foram os avôs daquela peculiar sociologia da ciência que clama que todas as ideias, longe de serem processos cerebrais, são construções sociais. De fato. Marx não apenas assegurou que “a existência social determina a consciência”, mas também que a classe social gera ideias, e que o indivíduo as adquire através da educação e tradição. Mas ele não revelou como a classe, que não possui cérebro, pode pensar, muito menos como essa estranha conjectura poderia ser posta a teste. (Mais em Bunge 1999).

Ao construir a versão sociologista do Holismo de Aristóteles de Hegel, Marx e Engels tacitamente rejeitaram a tese materialista de que idealização é um processo cerebral. Isso pode explicar porque a neurociência cognitiva, que põe em prática a filosofia materialista da mente, nasceu fora do dito bloco socialista.

É irônico que uma escola sem sociologia seja sociologista. A concepção sociologista da cognição produziu exageros como Boris Hessen (1931), que em seu famoso paper sobre o Principia de Newton, alegou que aquele trabalho era uma tentativa de resolver os problemas tecnológicos de seu tempo. Não importava para ele que Newton não inventou maquina alguma, mas concebeu a primeira grande teoria científica, que abrangeu as leis especiais de movimento propostos por Galileu, Kepler e Huygens. Também não importou que essa teoria tornou-se a base da engenharia mecânica moderna.

Não devemos superestimar o ambiente social ao redor dos cientistas, uma vez que este irá estimulá-los ou inibi-los. Afinal, a ciência moderna nasceu num punhado de avançados países Europeus, não na Espanha ou Índia. Mas a sociedade, não importa o quão progressiva, não substitui o curioso e ingênuo cérebro. Ninguém, excetuando o historiador especializado, lembra o que aconteceu na Inglaterra no ano de 1687 – exceto pelo fato de que esse foi o ano que o magnum opus de Newton foi publicado.

A tese de Marx de que grupos sociais, não indivíduos, fazem o pensar, foi reinventada um século depois pelos construtivistas sociais, que defendem que todas as ideias científicas, e mesmo fatos, são construções sociais (e.g., Latour e Woolgar 1979). A versão neoliberal dessa visão holista é: Toda pesquisa é, ou deve ser, motivada pelo lucro; e que o especialista, em particular o investigador, é ninguém: o Mercado sabe melhor. Consequentemente as universidades – os templos tradicionais de aprendizado – devem servir os negócios (veja Mirowski 2011 para uma crítica incisiva) Assim, tragicômica, Marx e seus seguidores foram sem querer precursores tanto do pós-modernismo quanto do neoliberalismo. Moral da história: Cuidado com Hegel e holismo em geral.

5. Teoria e praxis, apriorismo e pragmatismo

Na última e mais famosa das suas 11 teses sobre Feuerbach, gravada na lápide de seu túmulo, o jovem Marx afirmou que, enquanto os filósofos têm “interpretado” o mundo de várias maneiras, o ponto é mudá-lo. Esta declaração é ambígua: pode ser lida tanto como a alegação de que a práxis supera teoria, ou como uma chamada à ação social, sem a ciência social.

De acordo com qualquer uma das interpretações, a famosa fórmula é uma máxima pragmatista. Tanto assim, que o filósofo marxista Antonio Labriola chamou o materialismo histórico a filosofia da práxis. Presumivelmente, outros comentadores de Marx propuseram leituras alternativas. Esta é a grande vantagem da ambiguidade: ele se presta a múltiplas leituras, daí as disputas escolásticas infinitas.

De qualquer forma, a essência da Tese XI é que a práxis é superior à teoria. Se esta fórmula é aplicada à filosofia da práxis, verifica-se que este último deve ser substituído com a ação cega, ou seja, ação sem um suporte teórico. Em outras palavras, o pragmatismo radical é suicida, porque aconselha ação irracional.

No entanto, Marx não colocou sua Tese XI em prática, desde que ele assumiu a tarefa hercúlea, perseguido por Engels, de investigar a economia capitalista de seu tempo. O mesmo não pode ser dito de todos os seus discípulos: No decorrer do século passado, as ciências sociais floresceram principalmente fora da caixa Marxista – apesar de que, infelizmente, muitas vezes misturada com pseudociência. As exceções foram os antropólogos russos e arqueólogo (veja Trigger 2006), e os historiadores marxistas britânicos da segunda metade do século passado (ver Barraclough 1979). Mas nenhum desses estudiosos criou uma teoria econômica original ou cultivada sociologia ou ciência política.

Como consequência, a liderança comunista, tanto dentro como fora do bloco Soviético, carecia de um guia atualizado baseado em pesquisas sociais sólidas: isso foi confundido pela utilização de slogans simplistas improvisados por líderes incontestados. Isso foi um caso de pensamento acrítico em escala mundial.

Em particular, o desmoronamento repentino do bloco soviético pegou todos os marxistas de surpresa, porque estes haviam se especializado em criticar o capitalismo em vez de investigar os traços do chamado “socialismo realmente existente”. Ou seja, a adesão dogmática a ideias que tinham sido originais, um século antes cegou para o que estava acontecendo debaixo de seus narizes. O caso mais trágico da incompatibilidade entre a teoria e realidade?

6. Estado e planejamento

A teoria marxista do Estado resume-se a tese de que a sua única função é salvaguardar os interesses da classe dominante. Esta afirmação não se sustenta em geral, porque, desde o seu surgimento cinco milênios atrás, o estado teve duas funções: manter o regime social existente, e gerir a coisa pública ou comunidade, em especial, o território e as obras públicas. Em muitos casos, o Estado também se comprometeu a proteger os fracos e ajudar os despossuídos. Basta lembrar os governos de Hammurabi, Péricles, e Asoka, assim como os estados de bem-estar social dos nossos dias.

Nem Marx nem Engels formulou uma estratégia para tomar o poder. De acordo com o seu determinismo histórico, eles acreditavam que a revolução proletária seria uma consequência automática da “contradição” econômica do capitalismo: “O modo de produção sobe em rebelião contra a forma de troca”, como disse Engels enigmaticamente perto do fim de seu “Socialismo: Utópico e Científico” (1880).

Dada esta visão da história como uma batalha titânica entre as características da economia, em vez de entre pessoas de carne e osso, não deve ser surpreendente que os fundadores do marxismo-leninismo não tinham planos para o dia após a revolução. Planejamento pareceu-lhes uma coisa para utópicos. (Nota-se a falácia subjacente: “Utópicos planejam, então o planejamento é utópico”.) Consequentemente, a Revolução de 1917 travou-lhes sem quaisquer planos para a construção do socialismo.

Lenin afirmou que o planejamento da economia seria “tão simples quanto uma brincadeira de criança”. O resultado de tal improvisação era de que os bolcheviques começaram a construção do socialismo uma década após a tomada do poder, quando o Primeiro Plano Quinquenal (1928-1933) foi iniciado. Este plano foi ainda mais bem-sucedido, uma vez que foi realizado, ao mesmo tempo em que as economias capitalistas afundaram como uma consequência do crash de Wall Street em 1929.

O planejamento soviético da economia foi tão bem sucedido, que foi copiado por muitos governos pró-capitalismo. Mas, por ser excessivamente centralizado e, portanto autoritário ao invés de participativo, tal planejamento corta a motivação e responsabilidade de base, e não dá visão para as dificuldades regionais, que apenas gestores locais podem resolver.

Por estas razões, o planejamento central perdeu eficiência conforme as fases do processo de modernização da economia continuaram, e enquanto a política permaneceu estagnada numa fase pré-democrática. Este desequilíbrio foi uma consequência do economicismo e da divisão infraestrutura/superestrutura.

Resumindo, no “socialismo real” havia estatização, mas não a socialização dos meios de produção, juntamente com a concomitante burocratização, alienação e corrupção. Para colocá-la em termos marxistas, o “socialismo real” foi corroído pela contradição entre a produção, um processo social, e o exercício do poder, confinado à elite dominante.

Apesar de tudo, os planos quinquenais soviéticos transformaram uma economia basicamente rural em uma grande potência industrial; a qualidade de vida melhorou muito, enquanto a desigualdade de renda caiu para o nível mais baixo no mundo; e a URSS derrotou o nazismo e colocou o Sputnik em órbita. Portanto, é falso que o comunismo soviético foi um fracasso total. O que é verdade é que, por ser autoritário e, portanto elitista ao invés de igualitário, o regime não era socialista, e muito menos comunista.

7. Ditadura e desastre

Em 1848, com a ajuda de Engels, Marx inventou o comunismo moderno ao escrever o brilhante Manifesto Comunista. Mas o abortou em 1875, quando criticando o programa de Gotha do Partido Socialista alemão. O documento anterior (que passou despercebido em seu próprio dia) proclamou a conveniência e a inevitabilidade da “emancipação universal”. O segundo documento denegriu a liberdade “burguesa” ou “formal” e propôs que, quando tomar o poder, os socialistas devem instalar a “ditadura do proletariado”.

Marx, Engels e seus sucessores tinham a certeza de que esta ditadura iria “desaparecer” com o tempo, mas eles não dizem qual é o mecanismo: a sua declaração era apenas um dos muitos dogmas marxistas. O que é verdade, é que todos os estados tendem a se expandir, porque a burocracia estatal e as forças de segurança têm interesse em sua própria preservação.

É igualmente óbvio que o “socialismo autoritário” é um paradoxo, porque socializar um bem é compartilhá-lo, e não há participação, sempre que uma pequena minoria, como um partido político, impõe pela força os seus interesses, ideias e planos. Ninguém deveria ter se surpreendido que em 1989 os chamados governos comunistas na Europa entraram em colapso sem disparar um tiro, movidos por algumas manifestações pacíficas de rua: as ditaduras haviam alienado as massas fartas de desigualdades injustificadas. Assim, paradoxalmente, a rebelião anticomunista foi feito em nome da igualdade, não só da liberdade. Mais uma vez, os valores se mostraram em pacotes, não um por um.

8. Conclusão

A filosofia marxista nasceu obsoleta porque resultou da tentativa de combinar os ideais progressistas do iluminismo radical francês com a filosofia retrógrada de Hegel. Os filósofos neomarxistas confinaram-se à expandir e comentar os textos clássicos, em vez de atualizá-los à luz das novidades ciência e lógica. E a maioria dos estudantes marxistas da sociedade têm dedicado mais tempo para comentar sobre os escritos do que para investigar os problemas sociais. Enquanto alguns deles denunciaram as desigualdades inerentes ao capitalismo, nenhum deles denunciou àquelas inerentes ao chamado socialismo real.

Dado o apego de estudiosos marxistas aos escritos que consideravam infalíveis e sempre tópicos, não deve ser surpreendente que quase todos os grandes avanços nas ciências naturais e sociais durante o século passado ocorreram fora da caixa marxista, e que alguns deles, os mais revolucionários, foram criticados em nome do marxismo. Assim, quando ossificado, o marxismo tornou-se um sério obstáculo para o avanço do conhecimento. Ao mesmo tempo, enquanto os marxistas no poder obtiveram vitórias sensacionais sobre a pobreza, atraso cultural e agressão militar, eles não mantiveram a promessa emancipatória de Marx e Engels, pois mantiveram todos os setores da sociedade sob seu punho de ferro ao invés de estimular a participação popular. Nunca lhes ocorreu que a sua fórmula “centralismo democrático” é uma contradição. Diante do fracasso teórico e prático do marxismo, os intelectuais e políticos socialistas contemporâneos têm apenas um caminho a seguir: Considerar o marxismo como uma fase inicial, atualizar a filosofia e os ideais do Iluminismo radical francês, e reinventar o socialismo como democracia integrada guiada pelas ciências sociais e tecnologias (…). Em suma, não “Voltar à Marx!”, mas “Avançar a partir de Marx!”.

Referências

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Erika Silva

Erika Silva

Tudo no universo é simples quando se ignora aquilo que complica.