Texto de J. G. Licio
Salve!
Eu sou um físico, e estou no caminho para ser historiador da ciência. Hoje falarei um pouco dessa minha área de atuação, tentando esclarecer alguns pontos e desmistificar outros.
É comum, mesmo nos materiais introdutórios sobre ciências, encontrarmos referências a episódios históricos sobre grandes cientistas, descobertas que mudaram a humanidade, lutas quase heroicas entre pensamentos revolucionários e conservadores, e até mesmo anedotas pitorescas sobre a vida de certas celebridades do mundo da ciência [1]… Mas qual o ponto disso tudo? Qual a necessidade de alguém pra “contar história”, e, segundo um professor que tive na graduação, “ficar mostrando foto de velho barbudo” ou “esse monte de blá blá blá histórico” [2]?
Primeiramente, é bom termos em mente que essa visão histórica de “grandes gênios”, atos “heroicos” de cientistas, o foco em um ou outro cientista famoso como se fossem os “pais” de uma teoria, ou o uso excessivo de anedotas que não levam a lugar algum já é obsoleta entre historiadores profissionais da ciência faz algumas décadas [3]. Hoje em dia essa abordagem não parece trazer nada de realmente relevante se queremos entender sobre ciência, pois muitas das informações trazidas nem sequer procedem historicamente.
A própria área da história da ciência tem muitas vertentes: há quem dê ênfase ao uso da história pra ensinar física, há quem estude episódios históricos a fundo, indo atrás de documentos, cartas, registros, catálogos, e o que mais for necessário pra se entender determinado desenvolvimento científico; há quem faça abordagens mais “externalistas”, isto é, sob pontos de vista alheios à ciência, por exemplo quem estuda uma sociologia da ciência sem levar em consideração os aspectos científicos [4]… E, claro, existem pontos de concordância e discordância entre todas essas abordagens.
Nesse texto, dou ênfase ao uso da história e da filosofia da ciência para se ensinar física. Geralmente, quando pegamos um livro-texto médio, padrão, não raramente encontramos certas anedotas a respeito do trabalho de alguns cientistas: fulano saiu correndo pelado quando descobriu uma coisa, ciclano tinha um peixe de estimação chamado Alberto, beltrano sapateava em cima da mesa do escritório enquanto mastigava a tese de doutorado… Numa visão minimamente crítica, vemos que esse tipo de informação, jogada desse jeito, não serve pra absolutamente nada! Talvez seja por essa falta de foco (e, eventualmente, por tantas distorções históricas) que as vezes, num curso mais “de exatas”, a gente acabe menosprezando o papel da história da ciência. Ela simplesmente não está sendo usada da maneira certa.
Mas qual seria a maneira certa de se usar esse campo pra se ensinar física? Bom, antes de mais nada, é necessário que haja um bom motivo para se abordar o episódio histórico em questão. Apesar de eu gostar muito de história da ciência (“gostar” no sentido “amo/sou” e “não vivo sem”), reconheço que ela não é obrigatória para se ensinar física, dependendo da abordagem adotada. Por exemplo: se você quer entender como alguns aparelhos tecnológicos atuais funcionam, talvez seja mais esperto dar ênfase na parte técnica e prática do que ficar falando das origens do aparelho, de patente que foi registrada, de experimento que aconteceu no porão de uma casa com telhado quebrado em Dublin, etc. Não é necessário que se aborde a história, nesse tipo de caso. Às vezes, é inclusive melhor que não se fale nada sobre a “história” do que propagar anedotas inúteis e informações duvidosas, que mais atrapalham do que ajudam.
Por outro lado, usar a história da ciência como ferramenta para se discutir episódios específicos pode ser de grande valor: podemos entender, por exemplo, por que em determinado contexto histórico duas teorias científicas igualmente respeitadas, mas contrárias, uma delas saiu “vitoriosa” e outra não; podemos entender como se dá o processo de validação de um novo conhecimento científico; podemos entender por que a ciência, mesmo tendo tantos aspectos humanos, temporários e tentativos, ainda é confiável; podemos debater sobre quais são os métodos da ciência… De maneira geral, esses aspectos “metacientíficos”, ou seja, sobre a ciência, são bem úteis para serem explorados à luz do estudo de alguns episódios históricos específicos [5]. Além disso, o próprio entendimento de conceitos técnicos pode ficar mais claro: será que o que os cientistas do século XIX chamavam de “campo” é a mesma coisa que os cientistas atuais chamam de campo? Se não for, o que mudou? Por que foi necessário mudar? Seria possível entendermos o que entendemos hoje se esse conceito não tivesse sido alterado?
Esses tipos de questões são importantes, mesmo para a ciência, pois nos permitem ter uma visão mais crítica e informada sobre o conhecimento científico, e, em última análise, quando os cientistas são mais críticos sobre seus trabalhos, toda a ciência ganha com isso. Quando se entende que a ciência não é uma coisa isolada do resto da sociedade, é possível tomar decisões mais eficazes não só no rumo de uma pesquisa, mas também em como relacionar essa pesquisa com o resto do mundo, e como convencer não-cientistas da validade e confiabiliade desse conhecimento, sem precisar apelar pra argumentos de autoridade por si só. E, claro, para não-cientistas esse tipo de informação também é importante para que se possa haver um posicionamento crítico quando um tema científico está em voga, pois a ciência está relacionada ao cotidiano de todos e todas, e não somente dos e das profissionais da ciência.
Não é difícil encontrar casos de polêmicas que poderiam ser resolvidas de maneira bem eficaz com estudos de episódios específicos da história da ciência:
– Ao estudar de maneira crítica o discurso de Alexander Fleming ao receber o prêmio Nobel de medicina pela descoberta da penicilina, podemos vislumbrar o quão complexo é o processo entre a ideia de que certa observação pode gerar um medicamento e a produção em massa para seres humanos. Isso traria alguma informação a mais quando nos deparamos com situações em que há campanhas para que supostos “remédios milagrosos” sejam disponibilizados à população sem que haja estudos mais aprofundados. Além disso, no discurso de Fleming há informações valiosas sobre como as guerras mundiais influenciaram nas pesquisas científicas.
– Quando nos livramos do preconceito de que “os pensadores de antigamente eram ignorantes por não perceberem coisas tão óbvias quanto as que sabemos hoje em dia”, podemos ter contato, por exemplo, com todo um espectro de debates que já existiram sobre a forma do nosso planeta e os argumentos razoáveis, baseados em razão e em evidência, que cientistas antigos davam para defenderem uma visão diferente da que temos hoje em dia. Entender como a ciência valida seu conhecimento, e a forma como certas observações foram refutadas, além de ajudar a resolver questões como “a Terra é redonda mesmo?”, faz com que aprendamos efetivamente muito conteúdo científico. Nesse caso, por exemplo, podemos aprender sobre como algumas conclusões e generalizações que fazemos do mundo natural podem ser provisórias, mesmo quando concordam com experimentos – e como outros experimentos, e como argumentos mais complexos, menos óbvios, às vezes são necessários para nos mostrar como o mundo funciona.
– As diversas discussões, debates e brigas que existem no tema “ciência x religião” as vezes trazem informações ingênuas e que não são baseadas em evidências, por exemplo a ideia de que um bom cientista não pode ter crenças religiosas, e que absolutamente nenhum progresso científico pôde ser feito durante a idade média, marcada por um forte domínio da igreja católica na Europa. É claro que existem e existiram muitos cientistas ateus excelentes, mas também existem e existiram cientistas com crenças, e isso não os tornam menos competentes. Historicamente, muitos dos ícones da ciência eram bem ligados a crenças que hoje em dia consideramos completamente anticientíficas. Casos como o de Isaac Newton, que dedicou cerca de 90% de seus estudos a temas místicos, e foi influenciado diretamente por eles para desenvolver sua mecânica [6], ou o de Johannes Kepler, que fazia até mapas astrais pra galera da época dele [7], e até mesmo o de Galileu Galilei, que, contrário ao mito criado, era até financiado pela igreja católica em seus estudos [8], mostram que essa questão é bem mais profunda do que uma dicotomia “ciência versus religião”. Qual o papel da crença no trabalho científico? Em que casos uma crença pessoal atrapalha o desenvolvimento científico? Existe algum caso em que ela possa ajudar? Qual o interesse das instituições religiosas no desenvolvimento da ciência, se é que existe algum?
Enfim, nesse texto procurei dar uma atualizada sobre como tem andado a historiografia da ciência nos tempos atuais, e como o que um historiador faz é muito mais do que “ficar contando história”. O passado está lá, mas não podemos acessá-lo diretamente. Então não dá pra saber “de uma vez por todas” o que aconteceu, pois dependemos de documentos, depoimentos, fragmentos de tempo que não trazem interpretações por si próprios, e cujos significados não são independentes da nossa época atual e do que consideramos importante ou relevante de ser considerado. O historiador, além de somente descrever o que houve lá atrás, também dá significado a esses eventos, relaciona acontecimentos aparentemente desconexos, busca um sentido onde só há velharia morta, mofada e amarelada em processo de decomposição. E isso pode trazer conhecimento novo sobre o que consideramos “terminado” na ciência!
Nossa ciência foi construída não por um ou dois iluminados, mas por muita gente, e da maior parte delas a gente nunca vai saber o nome. E não foi fácil chegar até aqui, assim como não é fácil continuar andando. É bom que saibamos os porquês da ciência, o porquê do conhecimento científico não ser como qualquer outro, o porquê da ciência ser especialmente confiável para tomarmos decisões de interesse público, mas também sabermos as limitações e o campo de validade do conhecimento científico, para não cairmos numa ilusão fundamentalista de que “só pode ser verdade se for científico”, ou num reducionismo do tipo “qualquer coisa pode ser expressa cientificamente em sua totalidade”.
O mundo é bem mais louco que isso. Nós somos mais loucos que isso. Mas a ciência nos ajuda a ter um caminho bem seguro para caminharmos em nossa jornada de descobertas, e com certeza nos traz muitos motivos que fazem a vida valer mais a pena de ser vivida. :)
PS: Estamos em 2017, mas devo ressaltar que a Terra não é plana. Entender isso não é tão fácil ou óbvio quanto parece, mas, pelo que vemos por aí, é um conhecimento bem necessário nos nossos tempos!
José Guilherme Licio: é bacharel em física pelo Instituto de Física de São Carlos da USP, e atualmente desenvolve um projeto de mestrado em história e filosofia da ciência voltado para o ensino de física, também pela USP. É membro do Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências da USP. Contato: jguilherme137@gmail.com
Referências:
[1] Lembro-me, por exemplo, de encontrar num livro de cálculo a seguinte descrição “histórica” sobre um matemático: “Fulano era um homem bom e quieto”. Isso não me ajudou a entender o teorema que levava seu nome. O prolífico historiador Ronald L. Numbers reúne no livro “Newton’s Apple and other Myths about Science” alguns estudos de casos dessas anedotas, e como elas trazem informações distorcidas sobre os eventos abordados.
[2] Esse tipo de impasse não está longe nem das áreas mais técnicas da ciência. Recentemente, uma amiga minha que trabalha com termodinâmica relativística de buracos negros precisou esclarecer algumas coisas históricas em seu exame de qualificação, a fim de elucidar como a teoria clássica foi transformada até chegar no que ela usa; dessa forma, ela poderia entender melhor a própria teoria, a abrangência, as possíveis falhas que a teoria pode apresentar… O ponto não era falar dos “velhos barbudos”, mas entender melhor a teoria em si.
[3] A visão “internalista” da história da ciência, que dá esse enfoque às coisas que “deram certo” e ignora outros fatores que influenciaram no desenvolvimento científico, foi amplamente veiculada no começo do século XX, como forma de reafirmar a importância da ciência para a sociedade, enaltecendo os “herois da ciência” e fingindo que eles nunca cometiam erros nem eram influenciados por algo não-científico. Por consequência, muitos dos cientistas atuais tiveram contato somente com essa visão, e continuaram propagando essas informações, sem saber o quanto elas são distorcidas. Geralmente, quem escrevia a história da ciência eram cientistas sem estudos de história (por isso o nome “internalista”)… E isso causava uma certa bagunça nos métodos. Até hoje em dia vemos cursos de história da ciência serem dados por pessoas que não tem qualquer preparo em história da ciência, e dessa maneira todo o curso fica bastante questionável.
[4] Esse tipo de abordagem é importante quando queremos entender, por exemplo, como funciona a dinâmica da academia, qual o papel das disputas de poder dentro da ciência, como são definidos os critérios de “produtividade” dos cientistas, por que ganhar prêmios é algo tão importante para se medir a competência, por que os cientistas devem ter condições dignas de trabalho… Por outro lado, desprezar completamente a parte científica pode causar uma série de entendimentos errados sobre certos episódios. Então, no meu ponto de vista, não é bom ficar em nenhum dos extremos. Nem relativismo, nem cientificismo ingênuo.
[5] Repare que a ideia de que TUDO o que aprendemos de física TEM que ser aprendido com uma “introdução histórica” também já é obsoleta… Seria impossível dar conta de tanta coisa de um jeito minimamente razoável, e estudar poucos episódios, mas que sejam significativos, já nos ajuda a criar toda uma linha de raciocínio mais geral, e nos treina a ter uma leitura mais crítica sobre ciência mesmo num contexto atual ou sobre coisas que a gente nunca viu na vida.
[6] Para Newton, estudos de cabala, astrologia e alquimia não eram um passatempo, mas parte fundamental de seu trabalho (e isso não era incomum em sua época, nem mal visto). O conceito de inércia, por exemplo, tem relações com estudos alquímicos. Nesse aspecto, ver, por exemplo, FORATO, Thaís C. M. Os “poderes ocultos” da matéria e a gravitação universal. “Os Grandes Erros da Ciência”, Edição Especial Scientific American Brasil v. 6: pp. 38-43, 2006.
[7] O caso de Kepler é discutido no livro “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”, de Alexandre Koyré, sobretudo no terceiro capítulo. As “Leis de Kepler” para os movimentos planetários são consideradas como a única obra “realmente científica” dele.
[8] Existem muitos trabalhos sobre a influência da igreja na obra de Galileu. Recomendo, por exemplo, a leitura de MARTINS, Roberto de Andrade. O mito de Galileu desconstruído. Revista de História da Biblioteca Nacional, 5 (número especial de História da Ciência 1): 24-27, outubro de 2010. Também recomendo o livro “Galileo Goes to Jail And other myths about science and religion”, também de Ronald L. Numbers, que aborda esse debate “ciência x religião”.