Há críticas exageradas que descaracterizam totalmente a importância e o lugar do Cristianismo na cultura ocidental e lançam diversas acusações, algumas até sem fundamentos, contra a religião cristã. Não é o caso aqui. Não pretendemos afirmar que a “igreja matou milhões na idade média”, como já foi propagado, antes, confrontar veemente a apologética cristã revisionista que declara em tom solene e ousado – como é o caso do escritor norte-americano Thomas Woods – que a “Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental”.
A noção de “civilização ocidental” é, antes de tudo, controversa. A rigor, não existe civilização ocidental. Historicamente, falando em Antiguidade, podemos conhecer através de registros históricos e arqueológicos a existência de dezenas de civilizações, dentre elas a mesopotâmica, egeia, chinesa, grega, maia, inca, hebraica, romana, egípcia, hindu, entre outras, mas não civilização ocidental. Os registros históricos mostram que o conceito de civilização ocidental se perde na antiguidade [1]. Em relação a esse conceito, o que existe é uma narrativa, com pressupostos teológicos e filosóficos, donde brota o eurocentrismo, afirmando que há valores, cultura, tradições, etc. exclusivas do mundo ocidental.
Entretanto, desde Heródoto (485?–420 a.C), o “Pai da História”, podemos observar um intercâmbio cultural, uma miscigenação de costumes entre o Ocidente e o Oriente. Houve vários encontros entre Ocidente e Oriente, desde a mítica Guerra de Tróia até as guerras em tempos históricos, como as guerras greco-pérsicas. A língua, a religião e mitologia grega têm berço na antiga Mesopotâmia, no Vale do Hindu e na antiga civilização hitita (o hitita, suspeitam alguns filólogos, é a primeira língua indo-européia e não o sânscrito, como todos pensam); enfim, fenícios, árabes, chineses, persas e egípcios, todos possuem participação na construção da miscelânea que é a cultura ocidental [2]. Modernamente falando, a “Civilização Ocidental” é um mix da cultura greco-romano, direito Romano e, sim, não negamos, do sistema judaico-cristão; por sua vez, tudo isso é um mix de culturas antigas que se perdem na noite dos tempos. Não obstante, utilizaremos aqui o termo “civilização ocidental” para fins práticos.
A nossa herança intelectual é inteiramente grega. Como diria o poeta inglês Percy Shelley, “Somos todos gregos”. O berço da filosofia, da ciência política, da ciência, do teatro, das artes e do direitos é a Grécia, e, de forma geral, a civilização greco-romana [3-4]. O Cristianismo, além de ter pouquíssimo papel intelectual, bebeu, falando de escolástica, da cultura grega; a ética cristã e o Direito Canônico encontram ecos no direito romano, por exemplo, em Cícero, chamado pelos escolásticos de “o bom pagão”. No entanto, o Cristianismo também atrapalhou muito o desenvolvimento intelectual, por condenar a curiosidade. Neste momento, hei de dizer que o Cristianismo Ortodoxo era extremamente prejudicial intelectualmente; os Padres da Igreja condenavam o amor ao conhecimento pelo conhecimento, e como tudo, incluindo a cultura, as universidades, o conhecimento e as artes, subordinavam à gloria dei.
Milhares de manuscritos foram queimados, a exemplo dos manuscritos gnósticos, descobertos recentemente na Biblioteca Copta de Nag Hammadi [5]. Isso sem falar da literatura e da própria cultura judaica, vitimadas na Europa pelo Cristianismo por mais de 1000 anos, culminando no Holocausto de Hitler. Esse é um fato histórico interessante, pois, apesar de, teologicamente, o Cristianismo ter brotado no seio do Judaísmo, os judeus da diáspora, após o estabelecimento do Cristianismo como religião oficial do império, nunca mais foram vistos com bons olhos pelos cristãos. Durante séculos, predominou a ideia de que os judeus eram responsáveis pela morte do Cristo.
Por outro lado, a Reforma Protestante, no embalo do Renascimento, operou grandes mudanças. Esse sim é um evento importante historicamente para a cultura ocidental. Porém, os reformadores pouco tinham/têm da Ortodoxia Cristã Romana; o protestantismo, aliás, por um “erro” teológico — separar o conhecimento secular do divino –, acabou beneficiando a cultura de várias formas, incluindo a educação [7].
Há muitas outras coisas para discutir. Geralmente, os apologistas cristãos resumem tudo citando grandes nomes da ciência, filosofia e artes, suas criações e descobertas, como sendo cristão, para concluir apressadamente o argumento que aqui tratamos. Nas palavras de Thomas Woods:
Certos acadêmicos chegam a dizer que, inclusive, a Igreja teve certas ideias que foram indispensáveis ao desenvolvimento das ciências – além da inúmeras quantidades de padres, Santos, bem-aventurados e leigos fervorosamente católicos que iniciaram grandes descobertas científicas e tecnológicas em plena Idade Média. Entre esses historiadores atuais, podemos citar Thomas Goldstein, Toby Huff e Edward Grant. O desenvolvimento da ciência atual só foi possível devido ao pensamento de grandes professores da Idade Média, que afirmavam, com base na citação bíblica Sabedoria 1,21, que o mundo foi criado por um Deus supremo e ordenado que o fez de modo ordenado.
Há alguns problemas nessa declaração:
Primeiro, esses grandes pensadores e cientistas, e.g. Agostinho e Tomás de Aquino, Faraday ou Newton receberam influência de onde? O subjetivismo agostiniano, o tomismo, a escolástica, o nascimento da ciência moderna são assuntos bíblicos? O próprio cristianismo, quais suas origens culturais, teológicas e doutrinárias, além do judaísmo? Claro que na cultura, mitologia e paganismo greco-romana. Logo, o Cristianismo enquanto sistema religioso, não é responsável por construir a Civilização Ocidental. É o oposto. A Civilização construiu o Cristianismo. E isso do ponto de vista histórico, cultural, e também filosófico e teológico: os principais dogmas cristãos encontram ecos simbólicos no politeísmo e mitologia grega, suméria, egípcia e hindu [8]. A filosofia mostrou que nunca foi uma “Ancilla Theologiae” (escrava da teologia) como se supunha na Idade Média.
O segundo problema – e isso confirma o caráter monopolista e totalitarista da Igreja, em relação ao conhecimento e sua difusão – é o INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM. Os grandes nomes da filosofia, ciência, artes e literatura, renascentistas e modernos, que os católicos orgulham de terem sidos fervorosos cristãos, foram violentamente censurados e excomungados, quando não torturados e mortos, centena deles incluídos na maior lista de censura de todos os tempos. Alguns exemplos: Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Rene Descartes, Montesquieu, David Hume, Immanuel Kant , Vitor Hugo, Jonh Milton, Jean Paul Sartre e muitos outros. Enfim, há de se dizer que a cultura ocidental, a filosofia, ética, a ciência, se desenvolveu, em partes, por conta de homens e mulheres cristãos; mas, também, apesar do Cristianismo [9]. O empenho fervoro por parte dos historiadores e teólogos católicos, que costumeiramente citam e apresentam diversos outros historiadores e fontes para confirmarem suas afirmações, se trata de um viés de confirmação e redutibilidade da própria história ao viés que se pretende defender.
Geralmente, os especialistas nesse assunto, são fiéis, devotos, fanáticos, que, no alto do histrionismo, não aceitam discutir criticamente e considerar outros pontos de vista histórico. Ninguém nega que Isaac Newton foi um cristão, que George Lemaítre foi um padre ou que grande parte dos compositores clássicos foram religiosos. Tampouco que a ética e o nosso direito está profundamente enraizado na doutrina cristã. O que afirmamos é que a cultura, a história e o desenvolvimento do ocidentes são assuntos complexos, historicamente atulhado de várias correntes, pensamentos e construções distintas que se perdem no passado. E que não faz sentido utilizar a religião, como não faria utilizar a raça, cor ou sexo, como razão direta das criações, contribuições e descobertas das pessoas.
Finalmente, afirmamos que o mundo ocidental sofreu uma enorme transformação intelectual, científica, ética, política e cultural justamente após o Iluminismo, que representa o enfraquecimento do poderio da igreja na política e na sociedade. Falando em tecnologia, por exemplo, saímos das carroças para o espaço sideral e Inteligência Artificial. Portanto, ao que tudo indica, a apologética revisionista que defende que a ICAR construiu o ocidente é uma construção teológica, uma narrativa, ou melhor: um sonho, visando ressuscitar a glória do império papal e dos templários. Todos sabem que isso ficou apenas na literatura.
Referências
1. Dani, Ahmad Hasan; Mohen, J-P., eds. (1996). History of Humanity, Volume III, From the Third Millennium to the Seventh Century BC. New York/Paris: Routledge/UNESCO.
2. McNeill, William H. (1999) [1967]. “In The Beginning”. A World History (4th ed.). New York: Oxford University Press. p. 15.
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3. H. G. Wells (1920), The Outline of History Volume One, New York, MacMillan.
4. G. Parker (1997), The Times Atlas of World History, London, Times Books.
5. The Nag Hammadi Library: The Minor History Behind a Major Discovery
6. Aubin, Hermann; Champion, Timothy C.; Parker, N. Geoffrey; Salmon, John Hearsey McMillan; Treasure, Geoffrey Russell Richards; Weinstein, Donald (November 12, 2015). “History of Europe: The Middle Ages”. Encyclopaedia Brittanica. Retrieved November 24, 2016.
7. Breasted, J. H.; Robinson, J. H. (1920). History of Europe, ancient and medieval: Earliest man, the Orient, Greece and Rome. Boston: Ginn.
8. J. N. Hillgarth, ed., Christianity and Paganism, 350-750: The Conversion of Western Europe, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1986, p. 2; Theodosian Code, XVI, 10, 12 (392), trad. de Pharr, pp. 473-74.
9. Taylor, Charles, and Charles Taylor. A secular age. Harvard University Press, 2009