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Inteligência: mais cultural do que genética

Por Sergio Morales Inga
Publicado na Cultura y Evolución

Tradução de Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Definir inteligência é um assunto tão delicado que até mesmo especialistas estão em controvérsias há décadas (Troy, 1994). A definição mais amplamente aceita indica que inteligência se refere à capacidade de resolver problemas. Diz-se que uma maneira aceitável de medir a inteligência é através de testes de quociente de inteligência (QI). Usando essas ferramentas, obtém-se um número que representa um resultado específico: [inteligência] média, acima da média, superior e assim por diante.

Embora não sejam iguais, diversas coisas foram ditas sobre QI e inteligência. Talvez a mais polêmica seja que ambas dependem da genética, ou seja, que existem traços genéticos que influenciam fortemente nos resultados dos testes de QI – e, consequentemente, na inteligência. O quão verdadeiro é isso? Podemos realmente dizer que a inteligência é genética? De acordo com alguns estudos, o QI é altamente hereditário. Isso significa que a inteligência pode ser transmitida de pai para filho.

No entanto, foi recentemente estabelecido que a herdabilidade da inteligência não é o que algumas pessoas acreditam. Afirmar que o QI ou inteligência é herdável não significa que pode ser herdado geneticamente sem a influência de variáveis ​​ambientais. Na verdade, nenhum estudo provou que a herdabilidade de QI ocorre por si só. Como tal, a herdabilidade do IQ não ocorre independentemente do ambiente, mas graças ao ambiente.

“Mas, no mínimo, essas descobertas deveriam fazer você pensar duas vezes sobre o significado da frase ‘herdabilidade da inteligência’. Em vez de um índice do quão ‘genético’ é um teste de QI, é mais provável que na sociedade ocidental, onde as oportunidades de aprendizagem diferem tão dramaticamente umas das outras, a herdabilidade diga o quanto a cultura influencia o teste”. (Kaufman, 2013)

“Todas os traços mostram uma influência ambiental substancial, pois a herdabilidade não é 100% para nenhuma característica. A aceitação da importância das influências genéticas e ambientais leva a um interesse na interação entre os genes e o ambiente, como sua interação (moderação) e correlação (mediação) no desenvolvimento de traços complexos”. (Plomin e Deary , 2015, p. 98)

Muitos testes de QI contêm questões sobre raciocínio verbal, raciocínio matemático ou história universal – portanto, as pessoas que não receberam aulas sobre esses tópicos dificilmente poderão responder. A herdabilidade do QI ocorre quando pais e filhos tiveram uma educação de qualidade. Se um pai teve educação, mas seu filho não, seus genes podem ser herdados, mas seus resultados de QI serão desfavoráveis. O IQ é herdável apenas se o ambiente facilitar essa herdabilidade. Portanto, pode-se dizer que o meio ambiente é o fator mais importante para a inteligência.

“Para ser claro: essas descobertas não significam que as diferenças de inteligência sejam completamente determinadas pela cultura. Numerosos pesquisadores descobriram que a estrutura das habilidades cognitivas é fortemente influenciada pelos genes (embora não tenhamos a menor ideia de quais genes são confiavelmente importantes). O que essas descobertas sugerem é que a cultura, a educação e a experiência desempenham um papel muito maior no desenvolvimento da inteligência do que as teorias tradicionais da inteligência supõem”. (Kaufman, 2013)

Apesar disso, algumas pessoas consideram que a genética tem uma influência maior no QI e na inteligência. O problema é que isso não é sustentado por evidências concretas, mas pela suposição de que, se os genes não influenciassem a genética, a seleção natural não poderia agir sobre a inteligência, portanto, nossa inteligência seria a mesma de uma lagartixa. Essas inferências são claramente mal formuladas. Embora seja verdade que o QI pode ser herdado, o que determina essa herdabilidade não são os próprios traços genéticos ou biológicos, mas o ambiente.

Isso significa que o [componente] genético influencia a herdabilidade do QI, mas apenas se o ambiente permitir e a nível individual. Apelar à genética para explicar as diferenças de QI entre os indivíduos não é problemático (exceto para algumas pessoas). O que é passível de crítica é a ideia de explicar o QI de uma população inteira apenas apelando para a genética. Para o neurogeneticista Kevin Mitchell (2018), embora a genética contribua para explicar as diferenças de inteligência entre os indivíduos, “é improvável que existam diferenças genéticas estáveis ​​e sistemáticas que tornem uma população mais inteligente do que a outra”.

Quando alguém diz que a inteligência é genética, está falando de uma maneira geral. Isso equivale a dizer que a pobreza é um fato social ou e a corrupção é um fato político. Embora alguns casos de pobreza ou corrupção dependam de fatores não sociais ou políticos, na maioria dos casos, em geral, a pobreza e a corrupção dependem desses fatores. Luís pode ter mais QI do que Juan por razões genéticas, mas essa resposta não se aplica se quisermos saber por que os latino-americanos têm menos QI do que os asiáticos. Melhor do que dizer que a inteligência é genética, seria dizer que a inteligência não é genética, já que na maioria dos casos o QI não depende de fatores genéticos, mas de fatores socioeconômicos e educacionais.

“James Flynn, um filósofo neozelandês e especialista em QI, estabeleceu que em todo o mundo ocidental o QI aumentou acentuadamente de 1947 a 2002. Só nos Estados Unidos, aumentou 18 pontos. Nossos genes não poderiam ter mudado o suficiente em um período tão curto de tempo para explicar a mudança; deve ter sido resultado de fatores sociais poderosos. […] E o mais importante, sabemos que intervenções em todas as idades, da infância até a vida universitária, podem reduzir as diferenças raciais tanto no QI quanto no desempenho acadêmico, às vezes, em quantidades substanciais em um tempo surpreendentemente curto. Essa mutabilidade é mais uma prova de que as diferenças de QI têm causas ambientais, não causas genéticas”. (Nisbett, 2007)

A suprema importância do meio ambiente na herdabilidade do QI significa que, para algumas pessoas, a inteligência não é um fenômeno genético ou psicológico, mas cultural. Como tal, a cultura não só é capaz de permitir a herdabilidade do QI, mas também de estipular o que constitui uma pessoa inteligente. Na verdade, segundo os antropólogos, os testes de QI são culturalmente enviesados, ou seja, medem o que a nossa sociedade considera um sinal de inteligência (Crosser, 2010; Cohen, 2011). Dado que a inteligência é a capacidade de resolver problemas, é claro que os problemas do povo hadza, do norte da Tanzânia, são diferentes dos problemas do povo de São Paulo.

“Certa vez, o psicólogo Michael Cole e alguns colegas deram aos membros da tribo Kpelle, na Libéria, uma versão semelhante do teste de WISC: eles pegaram uma cesta de alimentos, ferramentas, recipientes e roupas e perguntaram aos membros da tribo para classificá-los em categorias apropriadas. Para a frustração dos pesquisadores, os Kpelles escolheram pares funcionais. Eles colocaram uma batata e uma faca juntas, porque uma faca é utilizada para cortar uma batata. ‘Um homem sábio só pode fazer isso e aquilo’, explicaram. Finalmente, os pesquisadores perguntaram: ‘Como um tolo faria isso?’ Os membros da tribo reclassificaram imediatamente os itens nas categorias ‘corretas’”. (Gladwell, 2007)

“O teste de QI é um teste cultural, afinal, é uma medida do que ‘nós’ valorizamos como inteligência. Em sua maior parte, uma abordagem típica da antropologia cultural seria atacar os ‘fundamentalistas do QI’ e examinar seus preconceitos e processos de poder que ajudam a sustentar esse discurso pernicioso. Uma antropologia biológica informada continuará a apontar que não há base biológica para nossa classificação social de ‘raças’, uma vez que as variações dentro dessas raças são geneticamente maiores do que aquelas encontradas entre nossas raças socialmente definidas, bem como o fato de que traços biológicos não se enquadram em uma clara ‘categoria racial’, mas variam de forma não concordante entre as populações do mundo”. (Lende, 2007)

Como foi mostrado, antes de perguntarmos o quão genética é a inteligência, devemos perguntar o quão importantes são o meio ambiente e a cultura. Só depois de questionarmos isso, podemos responder se algum traço genético é relevante o suficiente para afirmar, de uma maneira geral, que a inteligência é genética.

Referências

Sergio Morales

Sergio Morales

Bacharelado em Antropologia e Mestrado em Epistemologia pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Possui publicações em periódicos acadêmicos no Peru, Colômbia, Argentina, Espanha e Reino Unido. Colunista de evolução humana, gênero e epistemologia das ciências sociais. Também aborda o campo da evolução cultural através do projeto “Cultura y Evolución”.