“Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pode sonhar tua vã filosofia.”
~ William Shakespeare
“O que os homens querem de fato não é o conhecimento, é a certeza.”
~ Bertrand Russel
“A psicanálise é como o Deus do Antigo Testamento: não admite que haja outros deuses.”
~ Freud
Meu primeiro contato com a psicanálise foi em Quando Nietzsche Chorou, um excelente romance do psicólogo Irvin D. Yalom.. Numa mistura de fatos reais com ficção, Yalom descreve magistralmente a gênese da figura do psicanalista. A aura de mistério que a figura do jovem Sigmund Freud inspira é espetacular, com o ar ao mesmo tempo erudito, profundo e misterioso, daquele que detém uma verdade profunda demais para ser posta em palavras — muito embora na realidade o neurologista vienense tenha sido um dos melhores e mais didáticos escritores que já tive o prazer de ler, ao contrário dos herdeiros da tradição que se seguiram, como Lacan.
Tempos depois, estou na graduação do curso de psicologia, sentado numa sala com outros alunos igualmente ansiosos pela primeira aula do curso que vai realmente falar de psicologia — o primeiro período dos cursos de psicologia às vezes são uma mistura de matérias biológicas bem no estilo Ensino Médio com um pouco de filosofia, geralmente uma mistureba de muito Foucault, Nietzsche e Descartes (lamentavelmente, nada de filosofia analítica).
A disciplina era Psicologia I, e do nada entra em sala uma professora de aspecto gentil, porém quase espectral, com suas vestes obscuras, quase saídas de uma Inglaterra vitoriana ou da Viena de Freud e Charcot. Parecia um corvo muito elegante. Ela fala lindamente, com palavras bem articuladas e pausadas. Parece que estou num filme de suspense presenciando aquela parte em que o segredo da trama começa a ser desvelado de forma dramática. É maravilhoso. O vocabulário psicanalítico é permeado de profundidade, significados ocultos em cada palavra, cheio de um tom investigativo que parece muito o modo como imagino Sherlock Holmes narrando suas deduções e questões a Watson nos romances de Doyle — muito embora os ingleses sejam mil vezes mais claros e pragmáticos do que os cantos mais a leste europeu, berço do freudismo.
Acabo de narrar meus dois primeiros contatos com a psicanálise — e com qualquer coisa parecida com uma psicologia como área formal, não mais como um objeto filosófico vago. O mesmerismo sedutor causado pela estética do psicanalista fica na cabeça de qualquer aluno, assim como deve ter ficado na de todos que entraram em contato com a figura taciturna de Freud, com aqueles olhos que enxergam as pessoas por dentro.
Esse carisma e a possibilidade de explicar qualquer coisa (“Freud explica”) foi a receita perfeita para que a boa nova se espalhasse. Ainda hoje a psicanálise goza de tanto prestígio que todos ficam meio receosos em questionar sua autoridade, seu sistema teórico e principalmente seus resultados. É quase como criticar um mestre zen-budista, cuja didática pouco mastigada aumenta a eficiência em fisgar nosso intelecto, por mais que seja difícil entender sua lógica. É quase como um oráculo. O enigma dá a sensação de verdade e profundidade, mesmo que seja apenas efeito linguístico superficial.
Apesar desse escudo titânico contra questionamentos, alguns atrevidos — com críticas corretas ou não — se lançam nesse desafio quase profano.
Em junho foi divulgada um entrevista do proeminente neurocientista Ivan Izquierdo, que dispensa apresentações como um dos maiores estudiosos da memória. Nessa entrevista, Izquierdo deu uma derrapada diplomática ao falar que
“Toda teoria envelhece. Freud é uma grande referência, deu contribuições importantes. Mas a psicanálise foi superada pelos estudos em neurociência, é coisa de quando não tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar em inconsciente? Onde fica? Sou cientista, não posso acreditar em algo só porque é interessante. Para mim, a psicanálise hoje é um exercício estético, não um tratamento de saúde. Se a pessoa gosta, tudo bem, não faz mal, mas é uma pena quando alguém que tem um problema real que poderia ser tratado deixa de buscar um tratamento médico achando que psicanálise seria uma alternativa.”
Os erros e acertos de Izquierdo
Para além de admirar a iniciativa de Izquierdo em questionar a psicanálise — geralmente admiramos rebeldes que desafiam a ortodoxia, ou os queimamos — devemos verificar se suas críticas realmente procedem.
Eu concordaria com a maior parte da crítica, mas não tudo, e abaixo enumero brevemente os motivos.
(i) A psicanálise é uma disciplina interpretativa hermeticamente fechada, dialoga muito pouco ou nada com outras áreas do saber, o que é um problema. É como ser um astrólogo numa festa de astrônomos. É verdade que a psicanálise está inserida como apoio a outros campos, como a antropologia, e dialoga, em Lacan, com linguística e matemática, por exemplo. O problema é que um diálogo até excessivo com qualquer coisa também é esperado de qualquer chamada “teoria zero”, isto é, uma abordagem pouco sistemática que pode se encaixar como explicação pra qualquer fenômeno — basicamente o que acontece com a astrologia. Além disso, os ensaios do Imposturas Intelectuais, de Sokal, mostram claramente como Lacan não só estabelece conexões não justificadas principalmente com a matemática (não deixando claro até que ponto são só analogias ruins ou se de fato acha que os fenômenos estudados pela psicanálise são matemáticos em algum nível), como também simplesmente parece não entender o que são números complexos ou irracionais, os quais ele cita várias vezes.
(ii) A psicanálise não é uma ciência, isso é fato velho, mas isso não necessariamente é um problema; ainda restaria a ela ser uma filosofia, autoconhecimento ou psicoterapia, que não são ciências, mas os psicanalistas vez ou outra negam também estarem ligados a qualquer um desses campos.
(iii) A neurociência não superou a psicanálise; o crédito vai mais para a psicologia cognitiva, que faz parte da ciência cognitiva, que recebe massivo apoio da neurociência cognitiva e é um modelo psicológico mais frutífero do que o da psicanálise. O problema desta última é basear todo seu trabalho praticamente na clínica, sem estudos controlados nem nada.
(iv) Pode-se dizer que a psicanálise tem um objeto de estudo diferente do da neurociência, o que é verdade, mas disso não se segue que o objeto e as teorias psicanalíticas sejam automaticamente legítimos.
(v) a psicanálise se recusa, por diversos motivos, a se submeter a testes de eficácia; aliás, sequer acha que o tratamento psicanalítico pode ser classificado em algum gradiente entre eficaz e não eficaz.
Apesar de já ter dito que não acho que foi exatamente a neurociência que desbancou a psicanálise (foi a psicologia cognitiva), gostaria de investigar mais detidamente por qual motivo Izquierdo, assim como outros cientistas, insistiria nesse ponto.
A crítica no trecho destacado mais acima se refere basicamente ao fato de a ideia de inconsciente freudiano não ser visível (“onde está?”). As melhores teorias científicas atualmente lidam com variáveis invisíveis, alocais. Ninguém pode observar diretamente as variáveis da cosmologia ou da mecânica quântica, entretanto, essas teorias tem um apuradíssimo poder preditivo e explicativo. O mesmo serve para a psicologia em suas várias manifestações baseadas em pesquisas científicas. Lida-se basicamente com traços latentes que são inferidos empiricamente através de evidências indiretas. Não é de forma alguma a falta de localização do inconsciente o motivo principal de crítica da psicanálise, portanto.
Pode ser ingenuidade minha achar que Izquierdo teria um argumento tão falho na manga. Talvez ele tenha apenas feito referência à atividade básica da neurociência cognitiva que é observar quais áreas cerebrais estão ativadas durante determinado comportamento ou atividade cognitiva. Apesar de se tornar mais sofisticada, a crítica continua inválida, ao menos que se queira condenar todos os construtos que não tem localização funcional pontual — como é o caso do conceito moderno de inconsciente usado pela psicologia cognitiva, que em nada tem a ver com o conceito freudiano.
Supor uma dessas duas opções é cair no mesmo erro: supor que a melhor forma de entender a relação mente e cérebro é a teoria da identidade. Isso faria com que qualquer variável psicológica fosse sinônima de alguma atividade cerebral específica, mas esse tipo de frenologia moderna não encontra muito apoio — Nicolelis inclusive traça uma interessante crítica a isso em Muito Além do Nosso Eu. A correlação entre mente e cérebro é incontestável atualmente, mas como estabelecemos conceitualmente essa relação depende de uma filosofia mais refinada.
É provável que um dos problemas centrais da psicanálise seja exatamente esse. Seus modelos são alheios ao cérebro e suas hipóteses não são falseáveis. Nisso a psicologia cognitiva acaba ganhando.
A neurociência atropelou a psicanálise?
Quando se diz que a neurociência superou a psicanálise, em outras palavras, o que está em jogo é a pressuposição de que o nível de explicação neurocientífico possui um status mais verdadeiro do que o da psicanálise. Em termos ainda mais distintos, é como se explicações físicas fossem mais reais do que explicações mentais.
Esse dilema se insere especificamente no campo da filosofia da mente, pois é basicamente uma discussão conceitual sobre as definições de mente e cérebro e como ambos se relacionam. No caso dessa alegação de que a neurociência descreveria estados mentais de uma forma mais verdadeira, entramos especialmente no escopo do chamado materialismo eliminativista.
Pensando em termos mais gerais, os eliminativistas são reducionistas radicais no que tange às teorias científicas, e como tal, é bom esclarecer antes o que é o reducionismo (já que as ciências humanas fizeram um profundo desserviço ao transformar esse termo num xingamento chique).
Reducionistas propõem que as teorias científicas vão ficando melhores cada vez que elas vão explicando um fenômeno em seus níveis mais básicos. Por exemplo, podemos perfeitamente falar da água como uma substância líquida e molhada, mas ninguém implicaria com a descrição química da água, H2O, como sendo mais cientificamente acurada, explicando o que é a água num nível mais básico ainda. Isso é meramente ser reducionista, ou seja, alegar que é possível descrever um fenômeno numa esfera de análise cada vez mais fundamental.
Os materialistas eliminativistas são reducionistas mais radicais. Para eles não apenas podemos mais acuradamente descrever a água em termos de H2O, mas que essa seria uma descrição mais verdadeira do que simplesmente falar da água como ela nos parece do ângulo do senso comum.
Em termos de filosofia da mente, as explicações neurobiológicas operam numa esfera de análise mais básica que a das explicações psicológicas, e portanto, mais verdadeira. O fenômeno real ocorrendo não seria, por exemplo, a emoção, mas a ativação do sistema límbico. “Emoção” é um termo impreciso que usamos no dia-a-dia para nos comunicarmos melhor, mas as entidades criadas pela linguagem do senso comum (a folk psychology) não necessariamente correspondem a coisas que realmente existem. Segundo o eliminativismo a psicologia verdadeiramente científica teria que se mesclar à neurobiologia, explicando o comportamento em termos de redes neurais (conexionismo), ou seguir fadada ao fracasso como ocorreu com uma variável que os físicos usavam antes de Einstein, o éter, hoje completamente desnecessário em qualquer teoria na física.
Se a psicologia não é um domínio ontologicamente válido de análise (se as variáveis psicológicas não existem de verdade), mas apenas como ficções úteis, o status de qualquer área que se valha desse domínio está comprometido (leia-se psicologia e psicanálise).
É verdade, a psicologia se escora muito mais intimamente hoje na neurociência cognitiva, mas ainda assim o que temos são correlações entre estados mentais e estados físicos do cérebro. Não sabemos exatamente se um estado mental é idêntico a um estado físico (teoria da identidade; pouco defendida hoje), ou se os estados mentais são funções do cérebro (funcionalismo; menos defendido hoje do que já foi décadas atrás por causa do trabalho de Alan Turing), ou se a mente é algo que emerge como uma propriedade dos estados físicos do cérebro (alguns autores e cientistas hoje são um tanto emergentistas).
Em termos parcimoniosos: temos quilos de evidências científicas de que não existe mente sem cérebro, mas estamos ainda incrivelmente limitados conceitualmente para explicar o gap entre esses dois domínios lógicos distintos (simpatizo bastante com as ideias de Dennett, que une um pouco de funcionalismo e eliminativismo).
Resumindo, não deixe que o adágio de Shakespeare nos paralise em busca de melhores ideias
Em linhas gerais, meu argumento central aqui girou em torno de mostrar que a crítica que Izquierdo faz à psicanálise (como tendo sido superada pela neurociência) na verdade não se mantém por dois motivos:
(i) na verdade foi graças a um novo paradigma na psicologia que a psicanálise foi deixada cada vez mais de lado, o paradigma do processamento de informação, usado até hoje em peso nas ciências cognitivas (para uma crítica e uma contracrítica);
(ii) se a base da opinião de Izquierdo for mesmo o materialismo eliminativista, ele pode ser obrigado a também dizer que a neurociência superou a psicologia.
(iii) explicações psicológicas e neurobiológicas fazem parte de níveis explicativos diferentes (um utiliza termos de natureza psicológica, outro, termos anatômicos e fisiológicos), então não podemos explicar um fenômeno de uma esfera em função de outra e esperar que isso seja uma explicação satisfatória (ex: dizer que a neurobiologia se ativa quando sentimos medo não é explicar o medo, é apenas dizer quais estruturas tornam ele possível, como ele é realizável).
(iv) o problema da psicanálise não é o fato de ela oferecer modelos psicológicos funcionais, nem o fato de não fornecer um local para o inconsciente, mas é a falta de compromisso em testar suas hipóteses, a falta de hipóteses efetivamente falseáveis, uma filosofia sem agenda (poucas pesquisas, poucas questões gerais, e quando existe, é pela clínica e para a clínica) e como consequência de todas essas características, seu isolacionismo hermético, tornando-a quase iniciática.
Diante de todos esses fato, concluo que vários dos argumentos ingênuos a favor da neurociência e contra a psicanálise na verdade não se devem a características intrínsecas à psicanálise, mas das áreas que atuam (cientificamente ou não) na esfera lógica das explicações psicológicas. Pretendendo matar uma mosca, Izquierdo usou uma bazuca e matou muito mais, mas com a arma errada — se minha interpretação sobre os argumentos de Izquierdo estiverem corretos. Mas isso não representa uma escapatória para as imposturas teóricas e metodológicas da psicanálise.