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Justificando as premissas “injustificáveis” da ciência

Por Riis Rhavia Assis Bachega
Revisão: Francisco Quimento e Douglas Rodrigues

Foi publicado em setembro do ano passado no site “Papo de Homem” um texto intitulado “As premissas injustificáveis da ciência”, do colunista Eduardo Pinheiro[1]. O texto aborda muito bem o fato de que a ciência assume uma série de premissas de cunho metafísico, e que a maioria dos cientistas e entusiastas da ciência ignora essas premissas (ou finge ignorar). Trata-se de um texto longo e bastante denso, criticando a “fé” na ciência e forma como ela é feita. O meu objetivo aqui é tecer uma “crítica da crítica”, elogiando os acertos do texto, mas apontando falhas no mesmo. Focarei nas considerações do autor sobre a física, que é meu campo de atuação. Questão como a natureza da consciência, muito interessante por sinal, me omitirei por falta de conhecimentos aprofundados.

Começarei elogiando a forma como o autor aponta muito bem o fato de que a ciência assume uma série de premissas que não podem ser justificadas pelo próprio método científico. O autor aponta o instrumentalismo, o realismo, o fisicalismo, a causalidade e determinismo entre essas premissas. O autor aponta o quanto os cientistas parecem ignorar essas premissas e não questionam sua validade. Pela minha experiência construída na carreira científica, eu posso afirmar que a maioria dos cientistas sequer tem noção de que a ciência está assentada sobre pressupostos de natureza metafísica que não podem ser justificada pelo próprio método científico. Isso se deve à formação rasa dos cientistas em filosofia e do desdém que tem por esta, muitas vezes associada a “discussões inúteis e intermináveis”. Não raramente vemos cientistas falando que “filosofia não serve pra nada”.

A superficialidade filosófica da maioria dos físicos tem sido muito prejudicial, principalmente nas áreas de fronteira, como a cosmologia e a gravitação quântica[2]. O ensino de física focado em cálculos algébricos mecânicos com pouca preocupação na interpretação física dos resultados e um sistema de fomento à pesquisa que prioriza a quantidade de publicações, transformando o processo de criação científica a uma produção em série ao melhor estilo Fordismo-Taylorismo, leva a uma produção científica de pouca profundidade. Uma fração ínfima dos trabalhos publicados representa avanços significativos na compreensão da natureza. A grande maioria são aplicações de métodos já bem estabelecido em casos ligeiramente diferentes dos já publicados, o que eu chamo de ciência de correção de vírgulas. Muita preocupação em publicar trabalhos e pouca preocupação sobre o quão bem fundamentados do ponto de vista epistêmico estão esses trabalhos.

Essa superficialidade na compreensão da ciência pelos próprios cientistas, aliada às pressões que sofrem por publicações das agências de fomento, aliada a um péssimo ensino de ciências, que foca no acúmulo de fatos empíricos e cálculos mecânicos, e não no pensamento sistemático necessário pra prática científica, aliado ainda a uma divulgação científica que trata a ciência de forma romantizada[3], são os ingredientes perfeitos pra uma terrível incompreensão da prática científica em uma sociedade que depende cada vez mais da ciência. A ciência está cada vez mais presente na vida das pessoas por meio de seu principal subproduto, a tecnologia, no entanto sua compreensão é por demais superficial, quase mística, o que eu chamo de senso comum da ciência.

Como bem aponta o texto:

O problema, no mais das vezes, são o que se poderia chamar de “premissas ocultas”. Isto é, partes da visão de mundo científica que não chegam a ser examinadas pelos cientistas, muitas vezes não são reconhecidas ou são deliberadamente evitadas. São problemas que, se o cientista parasse para resolver, ele não faria ciência, ou pelo menos acredita que não sobraria tempo para isso.

Ele então simplesmente as sufoca, presumindo inexistência ou irrelevância.

E isto é bastante elogiável no texto. O autor apontar o desconhecimento ou o desdém dos cientistas no entendimento da própria prática científica. Mas depois dos elogios, vamos às críticas. As críticas que faço são justamente:

  1. O autor critica justamente esse senso comum da ciência achando que está criticando a própria ciência enquanto construção filosófica;
  2. O autor parece considerar que pelo fato de a ciência assumir premissas filosóficas que não podem ser justificadas pelo próprio método científico, logo essas premissas são injustificadas e irracionais;
  3. O autor não propõe nada que possa servir como alternativa as “falhas” que ele aponta na forma como é feita a ciência.

Agora tentarei aprofundar na “crítica da crítica”. A primeira das premissas que o autor descreve como “nem tão oculta” é a do enviesamento da ciência por servir a interesses do capital. É o famoso “mito da neutralidade científica”. Acontece que esse mito é que é um mito. À rigor, um cientista nunca vai ser “neutro”, porque ele sempre vai defender algum tipo de modelo hipotético, ele vai absorver os paradigmas dominantes do seu tempo (usando o jargão Khuniano), vai propor conjecturas para solucionar certos problemas. Enfim, a neutralidade não é possível nem desejável na prática científica!

O que a ciência pretende não é ser neutra, mas sim ser objetiva. A objetividade é um ideal, e para isso foi desenvolvido todo um sistema para assegurar que esse ideal de objetividade seja cumprido, o que passa não só pelo senso crítico do cientista, como também por sistema de revisão por pares, testes duplo cego, experimentos realizados de forma independente e com metodologias diferentes, além do crivo da comunidade científica. Este sistema está longe de ser perfeito, assim como qualquer instituição humana, as instituições científicas estão sujeitas a corrupção, tráfico de influências, etc. Mas esse sistema tem se mostrado eficiente e funcional. Eu diria que é o mais próximo de um sistema capaz de se autocorrigir que a humanidade já desenvolveu, com suas imperfeições, é claro, mas tem que ser muito ingênuo pra acreditar que elas não existem.

E quanto à submissão da ciência a interesses econômicos? É claro que para fazer ciência é necessário financiamento, afinal é necessário comprar equipamentos de laboratório, pagar bolsistas, viagens a congressos, etc. Tudo isso custa, no entanto, concluir que a prática científica é toda enviesada para mostrar o que os patrocinadores querem é um salto e tanto. Existem áreas da ciência que estão mais sujeita a esse tipo de viés, tal como a que desenvolve medicamentos, como o autor cita. Isso não significa que todas as áreas da ciência, desde a cosmologia observacional até a psicologia cognitiva, sejam enviesadas e, portanto, não confiáveis. O próprio caso citado de medicamentos antidepressivos exige análise de pessoas melhor entendidas do assunto, o que não é o meu caso. Só creio que sair por aí divulgando que antidepressivos não funcionam e que não se deve toma-los é um tanto irresponsável.

O próprio autor cita o lobby da indústria do cigarro para tentar negar que o tabaco é prejudicial à saúde, como exemplo de como a ciência é submissa a interesses. Pois eu digo que esse é justamente um exemplo do ideal de objetividade da ciência funcionando. Se as evidências forem muito fortes, lobby financeiro nenhum vai poder escondê-las, e esse foi o caso do impacto do tabagismo na saúde. Querer atacar a objetividade da ciência por ela estar sujeita a interesses é irresponsável, ainda mais numa época que políticas públicas na área de saúde, meio ambiente, recursos hídricos, exploração mineral e petrolífera, geração de energia, etc, depende fortemente de conhecimento técnico-científico. Acredito que o autor não gostaria de ver, em tempos de crise hídrica, que se esteja empregando rabdomantes ao invés de geólogos e geofísicos para manejar recursos hídricos.

Só para concluir essa parte, empregar conhecimento científico em questões práticas da vida está longe de significar que não existirão erros. Entretanto, se pode dizer que irá se errar muito menos do que pela mera tentativa e erro. Essa foi a forma como a humanidade desenvolveu tecnologia ao longo da maior parte da sua história, o emprego maciço de conhecimento científico para desenvolver tecnologias é um fenômeno recente, e podemos constatar o quanto isso acelerou o desenvolvimento tecnológico. Quando o autor ataca a falsa neutralidade da ciência, ele está atacando justamente esse senso comum sobre ela.

Premissas Ocultas da Ciência

Agora analisarei as críticas feitas as premissas que estão por trás da atividade científica.

  • Instrumentalismo

Instrumentalismo segundo o autor seria a atitude de não se preocupar com explicações finais, mas sim com resultados que podem ser calculados e testados. Não importa o que realmente acontece, mas apenas que o modelo funcione bem e produza resultados. Dessa maneira a ciência estaria sendo reduzida a uma mera engenharia segundo o autor, que ainda “culpa” Richard Feynman, maior físico do pós-guerra e de quem sou grande fã, por isso.

Ao contrário do que o autor faz parecer, Feynman estava longe de ser um cientista superficial que não estava preocupado com os fenômenos, apenas com a funcionalidade dos modelos. Eu mesmo já escrevi um texto falando da abordagem bastante profunda que Feynman tinha sobre a prática e a educação científica[4]. Os métodos de Feynman para resolução de problemas são considerados bastante irreverentes e originais, mesmo entre os grandes gênios. O seu método de quantização via integrais de trajetória, além de bastante útil, dá grandes insights sobre a quantização de teorias, embora não saibamos exatamente por que ele funciona. Ele também é conhecido por desenvolver os diagramas de Feynman, que são representações gráficas de processos de criação e aniquilação de partículas. Esses diagramas facilitam muito os cálculos de interações entre partículas, e dão resultados muito precisos[5].

Hoje a abordagem de Feynman é largamente adotada na física de partículas elementares. Ele introduziu a tradição de construir teorias efetivas que funcionam em determinadas escalas de energia. A Eletrodinâmica Quântica (QED) é funcional em uma dada escala, a Cromodinâmica Quântica (QCD) em escalas mais altas que a QED. Essa abordagem não é largamente adotada por que os físicos não estão mais interessados em explicações finais, mas porque os problemas são tão complexos que ter essas explicações é algo inviável no momento, e que o que resta é tentar teorias funcionais que talvez sejam suplantadas no futuro por explicações mais profundas. Um exemplo disso é o Modelo Padrão da Física de Partículas, que apesar de muito bem sucedido na descrição e previsão da existência de novas partículas elementares (o recém-descoberto Bóson de Higgs foi a última partícula que faltava para completar o Modelo Padrão), contém problemas que deixam os físicos nada satisfeitos, como o problema da hierarquia[6] e o problema da densidade de energia do vácuo[7].

O autor lembrou que esse tipo de abordagem já vinha desde a época de Newton, que foi muito criticado por não oferecer explicações para a real natureza da força gravitacional, e respondeu dizendo “não faço hipóteses”. Com o sucesso da teoria newtoniana em descrever o movimento dos corpos celestes, esse tipo de indagação foi deixada de lado frente ao sucesso funcional da teoria. Einstein nos deu um bom insight sobre a natureza da gravidade, mas ainda buscamos um entendimento mais profundo. Enquanto isso não vem, as teorias de Newton e Einstein estão aí provando sua efetividade, o que mostra que elas não são mero fruto da fantasia. Se o autor não está satisfeito com esse arranjo, eu o convido a vir trabalhar em problemas científicos reais, e mostrar as “explicações finais” que os cientistas, segundo ele, não se preocupam.

  • Realismo

A outra premissa que o autor descreve como mera “especulação filosófica” é o realismo. O realismo é a premissa de que o mundo existe e funciona de maneira independente de quem observa. A realidade é objetiva e as leis da natureza valem igualmente para todos independentes de cor, nacionalidade, credo, orientação sexual, etc. O realismo está explícito no primeiro postulado da Teoria da Relatividade Especial de Einstein, sendo algo sempre levado em consideração por ele ao elaborar suas teorias.

Mas como podemos saber se o realismo é verdade? Será que não podemos estar todos imersos em uma grande simulação de realidade virtual, numa matrix? Como saber se objetos físicos tem realidade própria mesmo quando ninguém os observa? Esses questionamentos eram colocados pelos filósofos da escola cética há uns 300 anos antes de Cristo, e até hoje não sabemos como dar uma resposta definitiva para eles. Talvez nunca saibamos. O certo é que se partimos da premissa que o mundo externo é mero fruto da imaginação e que qualquer um pode “criar” o mundo com o pensamento, o conhecimento científico é impossível. O realismo, como o autor muito bem coloca, não pode ser justificado pelo método científico. Muito pelo contrário, ele é uma premissa necessária para que o método científico funcione. Caso contrário, como poderíamos formular hipóteses e teorias sobre o funcionamento da natureza?

E a mecânica quântica? Ela não é irrealista? A resposta é um sonoro não! Sugiro que o autor procure conhecer melhor a mecânica quântica. A interpretação dominante, a de Copenhague, não é irrealista, ela é indeterminista. Não há nada dizendo que as leis da natureza à nível microscópico, dentro dos domínios da mecânica quântica, são dependentes de quem observa. Muito pelo contrário, leis fundamentais de conservação, como a do momento linear e angular, da energia e da carga elétrica continuam valendo. O que a mecânica quântica diz é que é impossível determinar estados físicos do sistema, apenas podemos dizer a probabilidade do sistema estar em um dado estado ou não. Como bem diz Mario Bunge[8], a mecânica quântica é tão realista como a mecânica clássica.

Diferente do que diz o autor, o instrumentalismo não é contrário ao realismo. Os cientistas dão explicações funcionais para certos fenômenos porque não encontram um jeito melhor de explica-los. A premissa de que as leis da natureza são independentes de quem observa é um pilar da ciência, sem a qual o método científico é inviável.

  • Fisicalismo

Esse é um dos pressupostos que o autor mais ataca como sendo injustificável. Mais uma vez o autor acerta: a crença de que tudo que existe é a substância física que pode ser detectada pelos métodos da física experimental é de fato uma crença metafísica que não pode ser justificada pelo método científico. Mais uma vez, o autor ataca um senso comum da ciência, pois qualquer cientista ou filósofo bem informado sabe que o fisicalismo não é justificado pelo método científico, antes ele é uma premissa deste.

O método científico propõe que façamos hipóteses para explicar fenômenos e que essas hipóteses devem ser testadas. E como testamos essas hipóteses? Fazendo experimentos. E como fazemos experimentos? Medindo coisas. Então, uma hipótese/teoria para ser testável precisa estar formulada em termos de parâmetros mensuráveis, que podem ser massa, carga elétrica, temperatura, pressão, corrente elétrica, etc. Esses parâmetros são propriedades físicas aos quais associamos os objetos da teoria. Se uma teoria não é formulada em termos de coisas que podemos medir, ela não é testável, e, portanto, não é científica!

É comum vermos crentes na existência de espíritos dizerem “não vemos os espíritos, mas também não vemos as ondas de rádio, e sabemos que elas existem”. Essa é uma comparação infeliz, pois, ao contrário de espíritos, podemos detectar ondas de rádio com uma antena, associar a elas propriedades físicas como temperatura, frequência, comprimento de onda. Isso torna sua detecção acessível a qualquer um que tenha um aparelho de rádio, já quanto a espíritos, até onde eu sei, isso não é possível.

Já é consagrado pelo método científico atribuir existência física a objetos não materiais e invisíveis quando estes podem ser associados a algum tipo de propriedade física. Um bom exemplo é a radiação infravermelha, descoberta em 1800 por William Herschel. Ele foi passando o termômetro por cada uma das cores do espectro luminoso decomposto em um prisma. Constatou que o calor era mais forte ao lado do vermelho do espectro, onde não havia luz. Daí ele descobriu a radiação infravermelha, por poder associar aquela parte do espectro a uma propriedade física, no caso, a temperatura. O mesmo vale para todas as faixas de frequência do espectro eletromagnético. Seguindo uma atitude anticientífica, poderíamos dizer que as faixas não visíveis do espectro eletromagnético são meramente ficcionais, coisas inventadas pelos próprios instrumentos científicos. Segundo essa abordagem, você não precisaria se preocupar em passar protetor solar da próxima vez que for a praia.

Aliás, o autor toca neste ponto: o que tem existência física é o que pode ser detectado por instrumentos de medida, que por sua vez são projetados baseados em modelos teóricos que esses instrumentos pretendem testar. Teríamos aí uma circularidade. Será que um objeto que medimos só tem existência por que construímos um instrumento feito pra medir esse objeto? Partículas subatômicas, por exemplo, que são detectadas em aceleradores de partículas. Aceleradores são projetados tendo em mente conceitos da teoria eletromagnética, visam medir propriedades como massa, carga e spin, conceitos abstratos que criamos. Será que as partículas subatômicas não são meros entes ficcionais?

Para vermos como essa hipótese é implausível, tomemos um exemplo mais cotidiano. Quando vamos a farmácia medir nossa massa corpórea em uma balança. Como é projetada a balança? Temos uma plataforma, embaixo dela temos uma mola. Quando pisamos na balança, nosso peso comprime a mola. Pela lei de ação e reação de Newton, temos que o nosso peso é igual a força elástica exercida pela mola dada pela Lei de Hooke, ou seja, mg = kx, em que m é a nossa massa, g é a aceleração da gravidade, k é a constante elástica da mola e x é o deslocamento sofrido pela mola. Medimos esse deslocamento, conhecemos a constante elástica e a aceleração local da gravidade, podemos saber a nossa massa corpórea. Quanto maior a nossa massa corpórea, maior a compressão sofrida pela mola. Como podemos ver mesmo uma medida tão cotidiana, já requer conceitos físicos de certa abstração. Isso significa que podemos considerar ficcionais aqueles quilinhos a mais que ganhamos? Eu não acharia essa uma escolha muito saudável.

Instrumentos de medida, desde balanças de farmácia até aceleradores de partículas, só são concebíveis à luz de conceitos físicos prévios. Isso não significa que o que eles medem são coisas meramente ficcionais. Atribuir existência a objetos que podemos atribuir propriedades físicas mensuráveis, ou seja, o fisicalismo é uma premissa sem a qual o método científico não funciona. Talvez a maioria dos cientistas nem saiba que o fisicalismo é uma premissa, tamanha familiaridade que tem com ele. Isso não descarta a priori a existência de divindades, fadas, duendes, espíritos, alma, anjos, demônios e coisas do gênero, só porque não podemos associar a eles propriedades físicas. Esses entes simplesmente não são objetos de estudo da ciência.

  • Causalidade, Determinismo e Uniformidade da Natureza

O autor trata de questões referentes ao problema mente/cérebro, das quais me absterei de comentar por ter pouca leitura nesse tipo de discussão. Depois ele indaga: “não seria a crença na causalidade uma superstição?”

O fato é que assumimos que eventos passados condicionam eventos presentes, que por sua vez condicionarão eventos futuros. Essa sequência de eventos condicionados são as sequencias causais. Se não soubermos as sequencias causal, não podemos explicar por que certos fenômenos são da forma que são. Também não poderemos predizer estados futuros, o que possibilita que nossas teorias sejam testáveis.

A possibilidade de prever estados futuros de um sistema quando conhecemos as condições iniciais e as leis que o governam é o que chamamos de determinismo. O conceito de determinismo está intrinsecamente associado ao de causalidade, e é fundamental na física. Mesmo a mecânica quântica, em que não podemos determinar com precisão os estados do sistema, ainda possui um determinismo probabilista, pois podemos dizer qual probabilidade do sistema se encontrar em um dado estado.

Outra premissa é a da uniformidade das leis da física. Como saber se as leis da física que conhecemos são válidas de maneira uniforme no espaço e no tempo? Como saber se constantes como a velocidade da luz no vácuo e a constante de Planck não variariam no passado ou não podem variar no futuro? A verdade é que não sabemos, apenas assumimos. Existem hipóteses que especulam se as leis da física não podem mudar, existe muita discussão sobre o porquê da constante cosmológica ter o valor que tem o que dá margem para uma série de argumentos antrópicos e de ajuste fino.

  • A Ideia de Deus na Ciência

Como bem observou o autor, a ciência está impregnada da ideia de Deus. Nada mais natural, visto que a ciência ocidental se desenvolveu em sociedades teístas, e não teria como não ser influenciado por este. Podemos dividir a história do desenvolvimento científico em três grandes surtos: o período clássico greco-romano sobre influência do politeísmo pagão, o período da Idade de Ouro do Islã entre os séculos VIII e XVII, e a ciência moderna europeia a partir do século XVII. Esses dois últimos surtos se deram sobre influência das religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo).

As religiões monoteístas creem que o universo é obra de um criador inteligente que planejou o universo de forma ordenada com algum propósito. Se o universo foi criado e planejado, ele funciona de maneira regular, ou seja, por leis. E se ele funciona por leis, podemos conhecer essas leis. A crença no universo como obra de um criador é que estabelece outro pressuposto básico da ciência: a de que o universo é cognoscível. Este pressuposto está expresso numa célebre frase de Einstein:

A coisa mais incompreensível sobre o universo é que ele é compreensível”.

Mesmo que o conceito de Deus das religiões monoteístas pareça superado para boa parte dos cientistas, a ideia de uma mente inteligente por trás disso tudo ainda é bastante atrativa, seja pro Deísmo Iluminista, pro Panteísmo de Spinoza (que influenciou muito Einstein) ou mesmo para o Ateísmo. Não por acaso, mesmo cientistas não religiosos como Einstein e Stephen Hawking falam constantemente em “conhecer a mente de Deus”.

A crença de que o universo é ordenado por leis causais e determinísticas, e que podemos conhecer essas leis, uma crença herdada da influência das religiões monoteísticas, é que possibilitou o desenvolvimento da ciência. Dessa maneira, todos os cientistas, mesmo os ateus (dos quais eu me incluo), acreditam de alguma forma em Deus.

Conclusão: o que o autor realmente propõe?

O autor Eduardo Pinheiro poderia ter sido muito feliz se ele limitasse sua crítica à falta de conhecimento que o comum das pessoas, e mesmo boa parte dos cientistas, tem acerca das premissas metafísicas da ciência. Ele acredita que o fato dessas premissas não serem justificadas pelo método científico as tornem injustificáveis, mera superstição, e que isso mina a credibilidade da Ciência. É visível o tom de desdém que ele tem pelo conhecimento científico em algumas partes do texto.

Eu me pergunto, aonde ele quer chegar com isso? O texto carece de soluções para os problemas que ele aponta (que na verdade são pseudoproblemas como eu tentei demonstrar), e não há no texto respostas para essa indagação. No entanto, é bom olhar os comentários que possuem boas discussões. Um comentário que eu considero que revela bem as pretensões do autor. Ao ser interrogado sobre quais as alternativas que ele propõe, ele responde:

Muito simples, tá no texto, embora seja tão inusitado que alguém pode não conseguir ler: fazer ciência direito. Isto é, sem as atividades místicas ou religiosas do FISICALISMO, REALISMO, INSTRUMENTALISMO (=ironia, já que as pessoas não consideram isso misticismo, EMBORA SEJA, por ser injustificado e não poder ser falseável, como descrito no texto).

A melhor alternativa à ciência com defeitos é a ciência com menos defeitos, menos bias, menos premissas ocultas e injustificadas, menos teismo, menos deísmo, menos presunção metafísica, e principalmente menos realismo e fisicalismo. O pulo do gato aqui é que o fisicalismo não se considera uma presunção metafisica, mas o que é uma afirmação sobre substância, circular e injustificada, senão uma afirmação metafísica? O outro pulo do gato, este sim não ficou totalmente explicito no texto, mas está implicado, é que o realismo (e em parte o fisicalismo) são premissas que evoluiram a partir da religião abraamica, e carregam noções de imanência própria desses cultos tribais particulares. Eu, como budista, me considero ultrajado quando a base metafísica de Stephen Hawking, por exemplo, se demonstra abraamica. Ele até pode achar que não, mas a genealogia do realismo científico é a crença num criador, coisa que eu, como budista, acredito ter refutado. A ciência precisa ser bem mais neutra do que isso! Se nao vai aceitar as minhas premissas injustificadas, que é justo, que não fique aceitando o que é próprio dos mitos de sua tribo, já bem disfarçados, é claro.

Os ideais da ciência são bons, se ao menos os cientistas se ativerem a eles. Isso é, se livrarem do bias econômico, instrumental, realista, e fisicalista. E conhecer bem as outras limitações do que a ciência pode ou não dizer.

Isso é bom/útil por dois motivos:

  1. ao fazer ciência melhor, descobrirão mais coisas. Toda grande descoberta é, no fundo, o desvelar de um viés que todo mundo aceitava e que se revela falso;
  2. as pessoas adorarão menos o mundo niilista do materialismo fisicalista, colocarão menos fé cega na ciência (que desconhecem, mas adoram) e viverão melhor suas vidinhas não cientificas;”

Esse comentário escancara os equívocos do autor. Primeiro porque ele considera o fisicalismo, o realismo e o instrumentalismo como um tipo de “misticismo” por não ser falseável e, portanto, não justificável. Parece que o senhor Eduardo não entendeu que o conceito de falseabilidade é aplicado a teorias científicas. Os conceitos que ele enumerou são conceitos filosóficos sobre os quais o método científico está assentado, sendo assim, não faz menor sentido falar em falsear o fisicalismo ou o realismo.

Outro ponto que se pode destacar é quando o senhor Eduardo diz se sentir “ultrajado enquanto budista quando a base metafísica de Stephen Hawking é Abraâmica”. Ele acerta em dizer que o realismo tem sua origem na crença de um criador, e que ele como budista acredita ter refutado. Ele acredita que a ciência deveria ser mais neutra (o que eu mostrei no início, é impossível) e diz como a ciência poderia ser melhor.

Eu enquanto cientista é que deveria me sentir ultrajado por alguém que não trabalha com ciência dar “pitaco” sobre como a ciência deveria funcionar. Mas o que eu já propus ao autor é que ele venha trabalhar em um problema científico para mostrar que o que ele acredita ser “boa ciência” realmente é bom.

Uma coisa que o senhor Eduardo sempre faz questão de mencionar é que ele é budista. Isso também pode dar algumas pistas sobre o que ele pretende com esse texto. Eu particularmente sou muito simpático ao Budismo, e, até onde sei, os budistas em geral tem uma postura de diálogo com a ciência. O próprio Dalai Lama chegou a falar que “se a ciência mostrar que alguma coisa no budismo está errada, cabe ao budismo se corrigir”. Eu sei que o Dalai Lama está muito longe de ser um “Papa” do budismo, mas ele é uma voz importante. Eu sei também que existem várias escolas budistas e não sei qual delas o senhor Eduardo segue.

Não sei se essa é uma crença geral do budismo ou de alguma escola específica, mas existe a crença (também presente em algumas correntes do Hinduísmo) de que tudo é uma ilusão e o mundo externo é criação da mente. Parece-me que o senhor Eduardo é simpático a essa ideia.

Como eu já argumentei antes, com crenças desse tipo é impossível que o conhecimento científico se desenvolva. Talvez essa seja uma das razões pela qual a ciência se desenvolveu no Ocidente e não na China ou na Índia. Essas civilizações, embora tenham dado contribuições valiosas ao conhecimento científico (a pólvora e a bússola no caso dos chineses, a álgebra e o conceito de zero no caso dos indianos), nunca desenvolveram um corpo de conhecimento sistemático como o que se desenvolveu no Ocidente.

Foi a influência das religiões monoteístas que pressupunham um criador, um universo ordenado por leis e cognoscível, e a crença numa realidade objetiva, que possibilitaram o desenvolvimento da ciência moderna no mundo ocidental. Mesmo sendo ateu, não posso deixar de reconhecer a contribuição das religiões monoteístas em assentar conceitos fundamentais para que a ciência pudesse se desenvolver.

O senhor Eduardo se diz “ultrajado enquanto budista pela ciência adotar conceitos advindos das religiões abraâmicas”. Sinto dizer a ele que a ciência se desenvolveu no Ocidente e não na China ou no Tibete, e que é inevitável que ela absorva conceitos da religião dominante no Ocidente. Também é muita pretensão da parte dele achar que os cientistas devem mudar toda a forma de fazer ciência para se adequar ao budismo que o senhor Eduardo acredita.

Ele acredita que a ciência deve se livrar dos seus pressupostos para ser mais “neutra”. Neutralidade é impossível. Mesmo que modifiquemos toda a estrutura conceitual do método científico para fundarmos uma nova “ciência budista” com a qual o senhor Eduardo parece sonhar, ainda assim ela vai estar enviesada por novos pressupostos filosóficos. Sobre a questão do enviesamento econômico, é impossível fazer ciência sem recursos, o que a torna vulnerável a lobby, mas isso é um problema que pode ser prevenido.

Os pressupostos filosóficos da ciência estão longe de ser mero “misticismo” só porque não podem ser justificados pelo próprio método científico. Eles são fruto de séculos de desenvolvimento da tradição filosófica do Ocidente. Eu sugiro ao autor tentar fazer ciência sem levar em consideração esses pressupostos. E caso esse texto chegue a ele ou a seguidores das ideias dele, seria uma ótima oportunidade para um bom diálogo. O texto do senhor Eduardo é muito bom não pelas conclusões que chega, mas por abrir caminho para um bom debate.


[1] Link para o texto: http://www.papodehomem.com.br/as-premissas-injustificadas-da-ciencia-wtf-44/

[2] Ver a excelente entrevista do físico Carlo Rovelli https://netnature.wordpress.com/2014/10/28/especialista-em-gravidade-quantica-diz-que-a-superficialidade-filosofica-tem-prejudicado-a-fisica/

[3] Essa romantização da ciência em programas de divulgação científica como a série “Cosmos” já foi alvo de crítica minha no texto //www.universoracionalista.org/cosmos-e-a-romantizacao-da-ciencia/

[4] Ver  //www.universoracionalista.org/richard-feynman-e-os-fundamentos-da-educacao-libertaria/

[5] A Eletrodinâmica Quântica, teoria que Feynman ajudou a desenvolver, é a mais precisa já desenvolvida, com concordância experimental de mais de 30 casas decimais!

[6] Problema da Hierarquia: Entender por que as partículas do modelo padrão tem a massa que tem. Para se conseguir reproduzir a massa das partículas é necessário um ajuste fino dos parâmetros do modelo. Também pode ser formulado como: Por que as 4 forças fundamentais possuem diferentes intensidades e por que três delas (a eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca) são tão mais intensas que a gravitação?

[7] Problema da densidade de energia do vácuo: A previsão teórica da densidade de energia do vácuo é da ordem de 10^121 ordens de grandeza maior do que o valor estimado.

[8] Ver //www.universoracionalista.org/em-defesa-do-realismo-e-do-cientificismo/

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega possui graduação em física pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestrado em Cosmologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é doutorando dessa mesma universidade.